quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O Testemunho de um Maldito


  Os antigos incas ao contrário da maioria de nós olhavam os céus e não se encantavam com o brilho das estrelas, mas temiam a escuridão profunda entre elas. Eu era assim,  como eles: o céu, o espaço, o universo sempre me encantaram e me despertaram um temor inexplicável. Dediquei minha vida a compreender as teorias, filosofias e equações que poderiam explicar o inexplicável. Descobri que mais de três quartos do que compõe o nosso Universo é algo que não fazemos ideia do que seja: o "nada primordial". Um nada que é na verdade algo tão minúsculo e poderoso que comporia uma quarta dimensão na estrutura da Física, algo que iria além da nossa percepção e a partir desse ponto poderíamos supor que haveria não apenas novas dimensões no sentido de espaço/tempo, mas novos mundos, galáxias, universos. A questão é muito maior do que haver ou não vida fora do nosso planeta, a questão é compreender quantos Big Bangs poderiam ter existido e dado vida a universos inteiros como o nosso, só que diferentes e independentes. Algo que meus colegas e eu chamamos de "Multiverso". Contudo, tudo isso, todos esses mistérios se perderam no dia em que eu morri. Me perdoem, mas como estou prestes a ter a minha existência definitivamente extinta, estes sonhos e paixões que fizeram eu ser quem eu fui em vida ainda me movem, mesmo que eu seja apenas uma sombra do cientista e estudioso que viveu.

  A morte deveria ser o nosso verdadeiro foco penso eu agora, afinal, se não temos capacidade, tecnologia ou se simplesmente a natureza nos impede de descobrirmos todos os segredos do cosmos ao menos podemos compreender o mistério que envolve a todos nós. A nossa finalidade no sentido de fim e significado. Eu procurei por tanto tempo, com tamanha dedicação e obsessão diria até, as respostas para as perguntas da ciência sobre o Universo que quando me deparei me afogando com o meu próprio sangue caído na sarjeta após um assalto não pude aceitar que aquele seria o meu fim. O meu medíocre e banal fim violento que acabaria apenas como mais uma mera e desimportante estatística. Este meu rancor, minha incapacidade de aceitar o inevitável me fez despertar dentro de outra dimensão, aquilo tudo que eu queria saber sobre um mundo ao redor do nosso estava finalmente ao meu alcance. E era tudo um pesadelo sem fim.

  Tentei ao máximo me manter concentrado em explicações lógicas e racionais, entretanto quando você está a um passo do mundo que nós conhecemos, testemunhando a sua família envelhecer e superar a sua perda, sua mulher passar do luto a um novo casamento, seus filhos terem seus filhos e não lembrarem de como você os tratava para fazerem o mesmo com os filhos deles a lógica e a sua sanidade se desfazem. Eu estava no Purgatório. O lugar descrito por Dante Alighieri onde as almas ficavam presas no pós-vida para pagar por seus pecados na esperança de ascender ao Paraíso. Ao menos era essa a única absurda explicação que eu me recordava para aceitar o meu destino. E eu não era o único a jazer naquele lugar. Almas de pessoas esquecidas vagam sem rumo neste mundo de ruínas, dor e memórias e dentro deste reino cinzento uma nova sociedade se erguera em uma nova ordem mundial avassaladora. Tudo do outro lado do Véu é feito da mesma matéria, talvez, a tal matéria escura que comporia o "nada primordial". Nós, almas perdidas e tudo ao nosso redor é um pálido rascunho do mundo que existe e somos todos constituídos da mesma coisa: ectoplasma. Uma matéria viscosa e ao mesmo tempo gasosa que está em toda parte e em parte alguma simultaneamente. E esta cruel verdade nos transforma em moedas de trocas. Escravidão e tortura são realidades no reino das sombras e almas são rasgadas, aquecidas em fornos que ardem usando como combustível outras almas e despedaçadas para serem moldadas em criaturas bizarras, monstros, armas, moedas e até mesmo trens. Trens onde se levam mais almas para se construir mais de tudo, há mesmos cidades inteiras construídas desde tempos remotos com as almas humanas que não conseguem deixar suas existências para trás.

  E os anciões, aqueles que temem tanto o próprio fim, almas seculares, são os senhores destas terras. - os seus Lordes. Poucos duram nesta existência porque os anciões não querem que novas almas ganhem a experiência e a sabedoria que eles conquistaram através do tempo e da angústia. E além disso, todos nós partilhamos uma outra singularidade: somos todos tentados por nossas "sombras" a desistir e se entregar para o vácuo e assim desaparecer. A mais forte das consciências se enfraquece e se torna frágil quanto a de um suicida desequilibrado quando os anos mostram o quão insignificante fomos e somos e vemos tudo aquilo que perdemos se repetir em rostos diferentes que amam, gozam e desfrutam de prazeres que cada vez mais nos parecem distantes e ao mesmo tempo atraentes.

  Eu consegui ganhar espaço nesta nova sociedade porque havia ali um desespero tão colossal que todos, não apenas a mim, anseavam por algum tipo de resposta, de conforto. Alguma coisa que nos fizesse acreditar que existiria uma forma de ultrapassar todo aquele suplício. Eu, um homem da ciência, me tornei um líder religioso. Não como os pastores que exorcizam e praticam milagres na TV, eu acabei me tornando primeiramente para me confortar uma pessoa espiritualizada e repeti tantas vezes para mim que aquela dimensão mórbida era a prova definitiva de que havia uma força superior acima de todos nós que nos encurralara entre os mundos dos vivos e dos mortos que outras almas começaram a me ouvir. E a me seguir.

  Experimentei então o gosto de algo que jamais havia sentido antes: o sabor do poder. Eles me seguiam e me compreendiam e queriam acreditar em mim porque não havia nenhuma escolha. E logo, claro, os anciões souberam do que se passava e começaram a nos caçar. Eu me tornei uma ameaça e usei os meus fiéis como ovelhas para fugir dos lobos. Contudo eles eram incansáveis, possuíam a eternidade para me caçar e mais e mais eu era seduzido por minha própria ideia de grandeza. Me entregar ao poder maior, a Deus e me deixar levar pela entropia. Me desfazer em escuridão. A única coisa que me impedia de desistir era o desafio de sobreviver aos meus inimigos. Nesta luta me tornei novamente outra coisa: um guerreiro estrategista. 

  Perdi a noção do tempo, porque para nós o tempo se arrasta com uma monotonia opressora e temos os nossos grilhões pesados como âncoras que nos prendem aos nossos medos que nos deixam lentos. Destruí e ataquei muitos dos postos e batalhões inimigos. Sacrifiquei e distorci almas para me tornar perigoso e temível como aqueles que tentavam me vencer. Me tornei um monstro como eles. Na verdade - possivelmente sinto uma fagulha do que eu conhecia como orgulho - eu me tornei um monstro pior do que eles.

  Nem razão ou fé me salvaram de mim mesmo. E a minha arrogância e pretensão me levaram a minha derrocada. Quando enfim me colocaram de joelhos na sala mais escura da capital dos mortos, Estígia, no coração do Limbo ante aos pés do maior dos Lordes eu não sentia mais nada. Perdido entre tantas vidas sem vida, sem significado, abracei o meu fim. Os senhores dos mortos entenderam que eu queria ser derrotado e não me atiraram na Tempestade. Eles encontraram uma saída melhor. Eu hoje sou o relógio dos mortos que em gritos anuncia a passagem do tempo. Minhas engrenagens foram feitas a partir das minhas tripas ectoplasmáticas e eu fiquei desfigurado e a minha dor é infinitesimal. Agora não posso mais crer em deus algum, não acredito mais na ciência dos homens, não acredito mais em mim. Só o Tempo poderá me libertar da minha prisão incrustada e fabricada de mim mesmo. Aguardo a hora quando a Tempestade engolir a tudo e me tirar da eternidade onde me coloquei.

  Eu sou um aviso ambulante do que acontece para quem desafiar as leis dos mortos. Nada pode vencer a Morte. Eu sou Sísifo rolando a rocha morro acima e sendo esmagado por ela. Este é o meu testemunho antes de ser transformado em uma coisa que jamais deveria existir. Uma aberração em um mundo de espelhos enferrujados. 

  Ai de mim. Ai de quem não abraçar a morte e lamber os seus lábios gélidos em um beijo na derradeira hora. Ai das almas que se apegam àquilo que não mais lhes pertence. O Limbo os devorará por dentro, somos todos malditos.

Escutai mortais, esta é a minha sina e será a vossa se não me escutares.

E ninguém jamais me escutou.