domingo, 14 de março de 2010

Oração à Lilith


Fui seduzido pelo inferno
Me deitei com uma cadela suja
Através de tal bruxa pratiquei a imundície
Sou agora mestre na arte impura da lascívia e da luxúria
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Cruzar como as feras
Copular como as bestas
Fornicar como os monstros
Me tornar demônio
Ser caído e rastejar
Sorrir ao queimar
Amar o fogo
Odiar a luz
Me misturar com as serpentes
Disseminar a verdadeira semente
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Relembrar a Criação
Revelar o Falo e a Vulva
Todos os possuem, Todos são maculados
Se Deus não amasse o pecado
Não haveria nos criado
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Fodam-se
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Amém

O Beijo da Serpente


Insetos invasivos são meus dedos entre os seus cabelos
Puxando e arrancando como se estivesse colhendo
Em um campo, flores do mal
E o vento forte se confunde com seus gritos
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O sangue embaixo das minhas unhas é tão nobre
Como a terra que se esconde nas mãos do jardineiro
E assim me dedico a tornar seu corpo vivo e florido
Tal uma rosa, em chamas, vivo, vermelho
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Os meus dentes se alimentam da sua carne
Cravando-se no banquete que você me proporciona
E seus pedidos de misericórdia soam como música para os meus ouvidos
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Minha sede é saciada na concha úmida que verte
As águas mais doces que a ambrosia dos deuses
Afinal o seu teatro de dor é quase real
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Contudo o seu sexo excitado não mente
E assim selo nosso amor com um beijo
Minha Eva, sou sua Serpente

domingo, 7 de março de 2010

Ira


Primeiro, ele entregou seus superiores para escapar da prisão os denunciando, sem cerimônia, aos russos.
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Isso serviu para demonstrar a ele próprio que, no fundo, nenhuma ideologia ou respeito à hierarquia era mais forte do que o seu instinto de autopreservação.
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Ele era um sobrevivente oportunista covarde nato e sabia disso.
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Por isso seu nome nunca foi citado no julgamento dos vinte dois réus em Nuremberg.
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Depois, subornou os agentes do governo soviético com bens roubados de judeus para fugir da Europa.

Estas joias, que pagaram a propina para ele escapar do Velho Mundo, ele mantivera consigo utilizando o sistema digestivo como cofre temporário, provando, de fato, que ele era capaz de qualquer coisa para conseguir escapar com vida do mundo pós-guerra.
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Remexer suas próprias fezes com as mãos nuas à procura daqueles brincos, anéis e pingentes e depois engolí-los novamente até poder encontrar alguém disposto a aceitá-los foi o preço para deixar para trás o sangue que estava em suas mãos.
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O ódio retroalimentado o consumia e o mantinha vivo.
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Aquilo era nojento, ao menos para os padrões comuns, entretanto para ele, um membro da SS que havia visto e vivido obscenidades que poucos seres humanos na era moderna tiveram a oportunidade de cometer e presenciar; para ele conviver com dejetos não o abalava da mesma maneira que uma pessoa normal.
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Ao menos desta vez eram suas próprias fezes.
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Não havia espaço para orgulho quando o assunto era sua vida e tudo valia a pena para manter viva a sua razão de viver: o odiar.
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Mesmo que ele tivesse que odiar em parâmetros indignos aos olhos alheios, ele sabia que sempre seria digno.
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O que aprendera com os ensinamentos da teosofia de Helena Blavatsky jamais iria esquecer: não importava o que acontecesse, ele era descendente da raça mais pura, do ser mais perfeito, ele fizera parte da Sociedade Thule e seus olhos foram abertos para as verdades desconhecidas do oculto.
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Se fosse um cientista, poderia ter sido selecionado pela Operação Paperclip dos Estados Unidos para continuar a trabalhar no outro lado do Atlântico.
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Como suas habilidades, a de torturar e quebrar o corpo e a mente humana, não eram tão interessantes quanto as descobertas dos cientistas de foguetes nazistas para o mundo nuclear que surgia, ele cogitou seriamente uma outra proposta: a de seguir o caminho de alguns dos seus pares que escolheram o trópico como seu novo lar.

A lista de nazistas que foram para a América do Sul era grande, eles debandaram aos milhares, porém os nomes mais célebres são o do "Anjo da Morte" Josef Mengele que faleceu no Brasil em 1979, o "Carniceiro" Klaus Barbie que viveu na Bolívia até ser extraditado para a França em 1983, onde morreu em 1991, ou o próprio "Arquiteto do Holocausto" Adolf Eichmann que viveu na Argentina até 1960 quando o Mossad o encontrou, julgou e executou.
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O fugitivo não sabia até então que por mais que a História desconhecesse todos os crimes contra a humanidade perpetrados durante o regime nazista devido à destruição de provas e documentos; e por mais que muitos países acolhessem essa escória de braços abertos; o ódio que aquela ideologia nutria gerara um ódio semelhante em suas vítimas que nunca esqueceram ou desistiram de caçá-los e destruí-los.
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Enquanto pensava sobre o que faria, soube de um certo grupo na América do Norte e sentiu que ali, naquela nação e com aquele povo ele poderia continuar o espírito do Terceiro Reich e sem olhar para trás partiu de navio para o seio da Terra das Oportunidades e da Estátua da Liberdade.
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Os separatistas sulistas estadunidenses da Ku Klux Klan entendiam a sua luta e seria no coração dos inimigos que ele renovaria suas raízes, se alimentando do ódio racial para se reerguer.
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O novo americano, Howard, era um cidadão de bem, um homem respeitável, um pai de família (foi muito fácil encontrar uma bela mulher branca, recatada e do lar para tomar como esposa e cuidar da casa e dos herdeiros arianos, futuro da raça pura) admirado e acima de qualquer suspeita.
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Ninguém sabia de seu passado exceto o líder da KKK que dizia sentir orgulho em ter em seu grupo um verdadeiro defensor da supremacia branca.
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E na calada da noite, quando ninguém poderia vê-los, Howard e os seus companheiros vestidos de branco com o capuz do terror anônimo sobre seus rostos queimavam cruzes para aterrorizar e mandar a mensagem àqueles que construíram a América à força de que eles não eram bem-vindos ali e nunca seriam.
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A vida de Howard seguiu feliz por décadas alternando entre ser um membro exemplar da comunidade e o terror dos negros, imigrantes e demais minorias.
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E aos poucos, enquanto envelhecia, as leis e o mundo foram se transformando, impedindo que homens como ele agissem para realizar o seu sonho americano branco às custas do pesadelo de todo o resto.
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Os policiais não mais assistiam sorridentes os linchamentos e humilhações, mas passaram a proteger os negros que podiam agora conviver nos mesmos espaços que os brancos; uma afronta humilhante para a gente de bem que era obrigada a dividir os  ambientes com aqueles cidadãos de segunda classe.
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Howard sentiu-se furioso por assistir novamente os fracos conseguirem aplacar a ordem natural - os puros deveriam dominar os impuros - entretanto, ele tinha uma vida confortável e uma família perfeita, não podia mais se arriscar e continuar a ser o terror dos não-arianos.
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Sobrevivência sempre em primeiro lugar.
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Em seu coração sombrio ele poderia continuar alimentando o seu ódio sem limite.
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Ele (um Grande Mago, um Cavaleiro da Klan que sonhou em outra vida ser um Cavaleiro Teutônico da Camelot nazista em Wewelsburg ao lado de Heinrich Himmler, ex-Schutzstaffel, um guerreiro germânico genuíno) e o Grande Dragão encerraram suas atividades com a KKK sem nunca terem sido responsabilizados por seus crimes e isto era a sua maior vitória.
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Nunca foram pegos, o crime compensara.
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Envelheceram para se tornarem senhores inofensivos sem que ninguém soubesse do ódio efervescente que ardia em seu âmago.
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A intolerância nunca se aposenta, contudo o tempo não perdoa ninguém, muito menos os imperdoáveis.
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De repente veio a notícia da morte de um ex-companheiro da Klan.
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Em pouco tempo outro e mais outro.
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Mortes naturais, mas repentinas e em seguida.
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Howard era um sobrevivente, um oportunista e um covarde e entendia como assassinos, traidores e conspiradores agiam, porque ele era um pouco de tudo isso e muito mais.
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Não ousara entrar em contato com ninguém, alguém poderia estar ouvindo.
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A paranoia se instalou, o Grande Dragão partira.
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Por um lado aquilo era bom, ninguém mais sabia a verdade da sua vida pregressa e da sua verdadeira identidade.
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Em seus devaneios de perseguição ele refletiu se poderia haver alguém caçando antigos membros da KKK para fazê-los confessar seus crimes e depois os matando de maneira a fazer parecer que eles haviam morrido de morte natural ou acidental.
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"_Não é possível." - pensou Howard.
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Isso era algo que só alguém com uma obstinação como a dele em odiar poderia fazer e ninguém além dos descendentes de Atlântida eram capazes de sustentar aquela força "Vril".
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Isto era muito absurdo até mesmo para um paranóico como ele que conseguira viver aquela vida sórdida, secreta e inacreditavelmente impune.
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Howard, ingênuo, não tinha como saber naquela época sobre o serviço secreto israelita chamado Mossad, o "Instituto das Sombras", que fazia exatamente o que ele temia e considerava impossível.
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Por isso, o velho alemão dormia tranquilo, como um bebê, completamente despreocupado.
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Mas antes de morrer lhe seria revelado o que um anjo do Mossad era capaz de fazer.
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Uma melodia acordou Howard de sopetão. 
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A cama e o quarto estavam vazios.
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Uma música alta, barulhenta, tocava em algum lugar.
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Colocou um roupão por cima do pijama e foi até o quarto da fillha, duvidando que ela pudesse lhe dar este desgosto de ouvir aquilo, naquela altura, mas ao não encontrar ninguém no quarto arrumado Howard ficou nervoso de verdade.
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A música vinha da sala.
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Ao descer as escadas, ele se arrependeu por não ter mantido de recordação a sua antiga Luger, se deparou com uma mulher sentada em uma cadeira branca na cozinha, à mesa, lhe esperando de maneira pertubadoramente calma.
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Ela vestia um vestido azul antiquado, mas bonito.
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A estranha de cabelos negros curtos parecia estar à vontade e sua atitude cordial causava mais estranheza do que se de fato Howard encontrasse um assaltante em flagrante tentando roubar sua casa.
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Ela bebericava algo escuro, deixando escapar propositalmente pelos lábios um líquido vermelho-negro semelhante a sangue que caía de sua boca, manchando o píres e escorrendo em gotas levemente sobre seu queixo e pingando em seu busto uma única gota.
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Aquela cena dramática era toda montada de forma proposital, embora Howard não fizesse a mínima ideia do que se tratava, ele sabia que aquilo era uma armadilha.
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"_John Coltrane." - ela falou e de alguma forma sua voz suave soou ainda mais desconcertante do que o silêncio anterior - "_Mas infelizmente receio que você não aprecie seu talento. Sabe, ele é negro."
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"_Quem é você?" - inquiriu ele com voz imperiosa, escondendo a preocupação sobre o comentário dela insinuando sobre sua natureza racista.
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Será que ela sabia sobre seu envolvimento com a Klan? Era disso que se tratava aquela loucura? - as perguntas disparavam em sua mente enquanto tentava decifrar o olhar de esfinge daquela mulher.
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"_Quem eu sou não é importante meu querido Howard, quem você é, é o que realmente importa aqui. No entanto, se precisa de um nome, você sabe, nomes são muito importantes, pode-me chamar de Ira. E aqui vai uma curiosidade só para você: em hebraico Ira significa vigilante, muito prazer. Faz muito tempo que desejo conhecê-lo." - disse ela sorrindo docemente, como uma maníaca.
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Uma linda psicopata judia.
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"_Me diga agora onde estão minha mulher e minha filha sua cadela judia!" - ele se aproximava devagar, esperando o momento certo para atacar e acabar com aquele pesadelo, ela despertara nele uma reação descontrolada que fazia tempo que não sentia e ele no fundo estava gostando de poder liberar um pouco daquele ódio rançoso, antiquado e podre.
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Ele estava com os punhos cerrados, os olhos vidrados, os dentes rangiam de raiva.
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E estava em seu direito, ela era a invasora.
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Ele poderia alegar legítima defesa quando ligasse para a polícia contando o porquê havia estrangulado uma mulher na sua cozinha.
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"_Se você quiser vê-las novamente, sente-se comigo. Por ora basta saber que elas estão seguras. Prometo não tomar-lhe muito tempo, caro Hess." - e um sorriso menor, sem mostrar os dentes se formou em seu rosto.
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O teatro acabara, aquilo era um xeque-mate.
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Ao ouvir aquele nome foi impossível para o velho nazista aposentado evitar a surpresa e o espanto estampados em seu rosto enrugado.
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Há anos... não, décadas... ...ninguém mais o chamava assim desde... ...desde Auschwitz!
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Nem ele mesmo se lembrava com certeza de seu nome de batismo e foi preciso forçar a memória para se recordar de sua mãe o chamando assim e confirmando quem ele era, ou fora, em outra vida, em outro mundo.
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Sem alternativa, hipnotizado, Hess sentou-se encarando aquela fantasma nos olhos, tentando se lembrar daquele rosto.
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"_Sim Herr Hess. Eu sei quem você é. Eu sei tudo sobre você, sobre seus segredos, sobre seus medos, desejos. Sei sobre o que você fazia no campo de concentração, sei de como você batia nos prisioneiros, de como abusava das mulheres. Sei até sobre coisas que você mesmo finge não lembrar. Dos rituais, das runas, das palavras proibidas."
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Os olhos esbugalhados e a boca aberta, paralisada, eram confissão suficiente para Ira.
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Hess era realmente quem ela procurava e ele sabia que estava perdido e que sua hora, depois de tantos anos, enfim chegara.
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Ele estava perdido em seus pensamentos até que ela o trouxe de volta: "_Sua família está no porão..." - e ele se lembra da mulher e da filha.
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Aquilo que estava na xícara e que Ira derramava propositalmente em cima de si mesma para que ele pudesse ver era realmente sangue, conclui.
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O sangue puro e inocente da sua família, as herdeiras da Hiperbórea.
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"_Elas estão no porão!" - A voz dela, desta vez irrompeu monstruosa e abissal soando dentro da cabeça do velho como um trovão ecoando até zunir e fazê-lo gritar de dor e desespero o derrubando da cadeira.
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A vitrola não tocava mais, mas uma tormenta começara a cair subitamente do lado de fora da casa como se o mundo todo exterior tivesse desaparecido e sobrasse apenas aquela casa e aquele homem.
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Ira não estava mais ali, só sua xícara suja de sangue restara sobre a mesa.
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Howard começou a hiperventilar e enquanto pensava rapidamente, torceu para sofrer um infarto.
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Se os nazistas conseguiram fazer contato com seres de outros planetas e de outras dimensões, conforme acreditava Hess, porque os judeus através de sua cabala não poderiam fazer o mesmo?
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Tremendo, ele lentamente se levantou cambaleante e obedeceu à ordem de ir encontrar sua família.
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Ele sabia que se tentasse sair de casa, nunca mais veria sua família e teria que encarar a entidade que controlava aquele sonho abominável.
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Sem desejar ouvir aquela voz de novo ribombando em sua mente abriu a porta e começou a descer as escadas, suando frio, com as pernas bambas, se escorando nas paredes, rumo ao desconhecido.
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Quando acendeu a luz do porão viu sua mulher e filha sentadas no chão, com as costas apoiadas em um pilar de pedra, com as mãos e pés atados, mordaças na boca e vendas nos olhos, em silêncio.
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Ao ouvirem os passos se aproximando as mulheres começaram a chorar sem reconhecê-lo, desesperadas.
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Ele tentou acalmá-las, as abraçando e dizendo que tudo ficaria bem, prometendo que ele as tiraria dali.
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Ao sentir seu toque e ouvir sua voz elas entraram em frenesi, se debatendo com mais violência, gritando, possuídas pelo medo.
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Elas não o reconheciam mais como o marido fiel e pai exemplar de sempre, ele era agora Herr Hess, o homem que se tornara um monstro para milhares de pessoas e vivera para envelhecer esquecido, com uma máscara de civilidade, sem pagar por seus crimes.
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Ele nunca só seguira ordens, ele gostava do que fazia com os prisioneiros e fazia o que fazia porque gostava da sensação de poder, de superioridade, de decidir sobre a vida e a morte, de ser um deus.
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Aquilo era viciante e ele passara a vida toda tentando revisitar aquele sentimento.
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Nenhum momento em família, nenhuma noite com a esposa, nada lhe dava mais alegria do que o sofrimento alheio, a dor, a sensação de superioridade ao ver um ser humano implorar para ser morto para se livrar da agonia.
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Agora ele poderia sentir aquilo novamente, não com judeus, mas com sua própria família sob seu jugo.
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A porta do porão bateu com força o prendendo naquele cubículo.
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Ele pulou e deu um grito como resposta
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Foi então que Howard/Hess notou que em cima de uma mesa, no canto, havia uma faca.
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Não há como saber quanto tempo ele relutou, quantas vezes ele tentou tirar a mordaça e a venda delas só para colocá-las de novo por não conseguir aguentar os gritos e o temor refletido nos olhos delas.
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Pegou a faca e escolheu fugir, tentou abrir a fechadura, arrombar a porta, nada poderia livrá-lo daquela masmorra e então ele se deu conta de que tudo aquilo só poderia ser um sonho, um delírio, e desferiu um golpe fatal no coração.
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Só para descobrir que não lhe era permitido morrer.
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Mas a dor, isso ele sentia.
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Gritou, rolou no chão, chorou, implorou por perdão, orou fervorosamente e viu que não havia resposta.
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Ele sabia que alguém o vigiava, mas ele teria que descobrir sozinho como entreter o seu carcereiro se quisesse escapar.
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Sem saída, impotente diante daquela vontade indescritível que o deixou sem artifícios para recorrer, sem oportunidades de contornar o seu destino como até ali ele tinha feito, Hess/Howard pegou a faca, engoliu seco o seu orgulho e se fez o que tinha que fazer para sobreviver, como sempre fizera, desde a queda de Berlim. 
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Ira queria vê-lo assumir a sua verdadeira persona para sua família e ele aceitou que não tinha como escapar.
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Em sua mente ele tentava se iludir repetindo que aquilo era só um pesadelo e que ele iria acordar a qualquer momento, então, começou a talhar friamente uma suástica na testa de sua mulher e depois de sua filha enquanto citava trechos de Mein Kampf.

Elas se debatiam como peixes fora d´água, tentando fugir de suas garras, porém algo tinha sido despertado em Hess/Howard.
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Ele começou a esmurrá-las para fazê-las se submeter a ele e aquilo o fez se sentir como quando jovem, um deus na Terra.
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Ao sentir o sangue quente nas mãos e ouvir a sinfonia de gritos, Hess/Howard sorriu e gargalhou insanamente, se libertando de quaisquer amarras que a vida civil lhe imputasse, deixando fluir a loucura de se sentir poderoso ao impor a dor a outrem.
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Aquilo pareceu durar uma eternidade, um inferno particular de loucura, epifania, prazer e desumanização.
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Ele não era mais um ser humano da raça pura.
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Era simplesmente puro monstro.
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Estava feito, estava livre.
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O ódio o consumira por inteiro.
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Sua família conhecera sua verdadeira face ao ter a carne retalhada pelo homem que amava.
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A ironia daquela catarse de carnificina era encontrar precisamente em sua algoz, Ira, a mesma fagulha de destruição que havia nele, que anulava qualquer chance de redenção de sua alma.
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O fogo eterno do ódio que não mais vê pessoas, só inimigos desumanizados, tornando de alguma forma neste processo Hess/Howard e Ira semelhantes.
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Ela não o enxergava como uma pessoa e ele também nunca vira um judeu como um ser humano.
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Odiar era a herança que aquele nazista legava ao mundo, às suas vítimas.
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Ao sentir os sinais vitais diminuindo ele deitou em meio às tripas de sua família e deixou-se mergulhar no sangue e órgãos dilacerados, se tornando um com a poça de sangue e carne.
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Enfrentara aquele inferno e o que viesse depois não podia ser tão ruim, pensou consigo.
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Não havia mais limites a superar, ele estava livre para aceitar seus pecados.
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Sem hipocrisia, sem demagogia, sem salvação, estava completamente perdido e sua morte o colocava longe dos homens e das ameaças de Deus. 
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Foi com esta sensação de paz que sentiu o início do perder da consciência, sendo levado por um mar invisível para longe, agradeceu por ser-lhe permitido descansar.
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Subitamente a casa toda acima de si foi varrida como que por um furacão, deixando apenas aquele porão intacto, enquanto o abismo de vento tubular vindo das imensidões parecia encarar o abismo de sua alma condenada.
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Do centro do túnel, o Olho de Deus, surgiu uma figura indescritível.
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Para os iniciados aquilo poderia ser nomeado "serafim", um globo com pares de asas flutuando, uma infinidade de olhos que brilhavam, rodas flamejantes douradas que giravam no ar, luz e majestade que vinha até Hess como um mensageiro para que ele soubesse que sua danação estava apenas começando.
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Ele e seus parceiros da Thule, no início do partido nazista, estudavam o oculto e praticavam magia proibida, antiga, entoando cânticos esquecidos em rituais profanos com sacrifício humano, sorrindo em sacrilégio ao provocar as forças divinas.
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Tudo na tentativa de alcançar o outro lado e consolidar o seu poder superior ariano.
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Nunca conseguiram ter uma resposta compreensível do além, mas sua heresia alcançou algo e reverberou até os confins de onde quer que viesse aquele ser.
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Hess praticamente nunca sentira medo, terror real em sua vida, nada de fato o fizera temer durante as décadas que gozou confortável sua posição privilegiada na sociedade racista que vivera e construíra.
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Só naquele instante ele acessou este sentimento e foi como se todo o medo resguardado viesse de uma vez, como o rompimento de um dique, o Horror o tomou como uma enxurrada.
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Ele começou a gritar, arrancar os cabelos, furar os próprios globos oculares com os dedos, se arranhava, batia a cabeça contra o chão, se estapeava e esmurrava, chorava, mordia a língua, qualquer coisa para tentar desparecer e não ver o que estava não diante de seus sentidos, mas de sua alma.
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E fora tudo em vão.
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Não havia mais escapatória.
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Quando finalmente os sonhos delirantes do homem que gemia de dor e exasperação cessaram, a jovem mulher terminou de tomar o seu chá.
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Ela havia injentado em Howard a droga que prometia ser a coisa mais alucinógena e perversa que a humanidade já desenvolvera.
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Uma substância proibida, secreta, que abriria as portas da percepção e destrancaria o subconsciente de maneira a acessar a imaginação fértil da própria vítima e provocar terrores grotescos psicológicos particulares sem comparação; a produção química do inferno em vida.
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A família de Howard dormia sedada, intocada, enquanto Ira assistira a febre que o soro causara naquele homem por horas a fio.
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A jovem sabia que a noção de tempo era totalmente distorcida quando sob efeito daquela droga e que para Howard aquela noite pareceria realmente eterna.

Herr Hess - o homem que estuprara sua avó no campo de concentração gerara sua mãe com esta violação, sua mãe crescera disposta a passar adiante à filha toda a lição que aprendera sobre a humanidade proporcionando desde concepção a missão de Ira: um fruto amargo de ódio e vingança contra o estuprador de seu povo, de sua família, de sua avó, uma mulher que existia para retribuir a dor aos que ninguém ousava punir - estava finalmente morto.
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A mulher e filha de Howard o encontrariam morto na cama acreditando que ele havia sofrido de um ataque cardíaco enquanto dormia.
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Nenhum vestígio daquela visitante ou do passado daquele homem restariam para contar sua história sinistra e repugnante.
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O mundo se esqueceria de Howard e Hess, assim como nunca saberia da existência de Ira.
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A história trágica de Ira, não obstante, não acabaria com a realização de sua vingança.
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Seus filhos e netos, corrompidos pelo nacionalismo, pervertidos pelo discurso de ódio sionista, se tornariam soldados de Israel.
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Assim como Hess, eles cometeriam as piores atrocidades com a certeza de que estavam fazendo a coisa certa, livrando o mundo de uma raça menor.
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A semente do ódio continuaria a dar frutos, transformando vítimas em monstros.
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Em algum lugar do inferno Hess ri, pensa Ira, antes de fechar amargamente os olhos derradeiramente.