sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

AD AETERNUM


   Sempre me desesperei ao ler os contos bizarros e grotescos de Edgar Allan Poe, acima de todos, o "Barril de Amontillado". Nesta obra excepcional um dos personagens ao final encontra seu fim sendo emparedado vivo na adega de seu companheiro, deixado no escuro para definhar até a morte, sozinho, para o júbilo de seu oponente.

   Afinal, pense comigo, imagine o desespero avassalador da situação: estar preso sem poder fugir e sem qualquer esperança de salvação. Totalmente envolto em trevas e em silêncio, começar a notar os seres decrépitos da noite rondando, vermes, insetos, passeando por seu corpo, aguardando ansiosos para se banquetear com a sua morte inegável. A impotência ante ao destino é o que me aterrorizava, a solidão perversa, o desprezo da humanidade que seguiria sem se ater ao desaparecimento de um dos seus. A importância mínima da vida, da existência, de mim, ao ser preso e esquecido como se nunca tivesse sequer existido. 

   Mas tratava-se apenas de uma obra literária, você pode pensar, nada que pudesse ter reflexo no mundo real. De fato eu também assim raciocinava para me vacinar contra o medo, entretanto, no fundo eu sabia que as coisas não eram tão simples assim. Mesmo naquela época eu já desconfiava que havia mais coisas entre o céu e a terra do que podia imaginar a nossa vã filosofia.

   Com o desenvolvimento da medicina começamos a rondar o reino das patologias e suas peculiaridades e desbravar que o impossível é tão somente a certeza do ignorante. A descoberta da "catalepsia" - uma doença rara que faz com que o enfermo caia em um sono tão profundo que se assemelha à morte, tendo os batimentos cardíacos e a respiração tão letárgicos que havia quem temesse ser enterrado vivo, sendo confundido com um cadáver - causou tanto alarde que houve uma época em que os mortos eram enterrados e preso a um dos seus dedos ficava uma linha esticada até um sino na superfície que deveria ser tocado caso o morto fosse um dos trágicos sofredores de tal mal para ser resgatado.

   No entanto com exames mais específicos e contundentes esta ameaça foi erradicada e os coveiros pararam de ter trabalho nas noites de ventania quando o arrebol da tempestade tocava todos os sinos sobre as covas, colocando uma linha tênue entre a vida e a morte.

   Com mais modernidade veio a necessidade de mais energia e novas formas de obliteração surgiram, como os mineiros presos e isolados em suas minas, sem água ou comida, esperando um salvamento que poderia esmagá-los ao retirar as toneladas de pedra que os separavam da superfície. Por isso jamais cheguei perto de uma mina, sempre cuidei da minha saúde para se caso tivesse algum quadro cataléptico, fosse tratado propriamente e tive enquanto vivo a certeza de que os combustíveis fósseis seriam o fim da Humanidade. Mas nada me salvou ou me preparou para o que estava por vir.

   Não era Edgar Allan Poe que eu deveria temer com seus contos de suspense psicológico, mas sim Bram Stoker era quem selaria o meu infortúnio. Mesmo que o mundo tenha deturpado a imagem ancestral das criaturas imortais, os senhores da noite, elas não deixaram de existir ou de influenciar o mundo escondidas nas sombras. Lendas de criaturas notívagas do além-túmulo existem em todas as culturas e era tão vívida a ameaça do vampirismo que havia séculos atrás quem enterrasse entes familiares com estacas cravadas no coração para prevenir que o parente pudesse ser transformado post-mortem. Descobri tarde demais para a minha sorte que a literatura possui raízes em origens perturbadoramente reais demais para serem aceitas pelos humanos e que os monstros não existem só em nossas cabeças, nos livros ou quando somos crianças.

   Esta revelação se deu da pior forma possível, pois fui transformado sem ter a mínima ideia do que se passava. Testemunhei meus conhecidos e aqueles que amei definharem e perecerem enquanto eu mantive, como um Dorian Gray pós-moderno, minha juventude intocável (a não ser pelo tom pálido e pelo semblante cadavérico). Fui introduzido então para um clube extremamente recluso de criaturas como eu, que temiam serem descobertos e causarem uma Nova Inquisição sendo queimados sem misericórdia pelos inferiores os quais eles predavam também inclementemente, principalmente os inocentes e incautos. E aprendi que a maior de suas regras era o sigilo total sobre nossa condição.

  Eu, contudo, com a minha sede de escrever, não me contive e comecei a descrever minha vida e meus hábitos, tudo de forma aparentemente ficcional, o que me tornou conhecido e visado. Meus hábitos peculiares e minhas aparições somente após o pôr-do-sol apenas serviram para aumentar o toque de excentricidade e aumentar a voracidade dos holofotes. A Camarilla não aprovou minha conduta e fui julgado e condenado pelos anciões, seres tão antigos que não se recordam em nada em como é sentir o calor do sol na pele ou respirar. E imaginem vocês qual foi a pena a mim eleita?

  Sim. Ser trancafiado nos domínios dos poderosos de nossa espécie onde os mortais não poderiam me encontrar e empalado por uma lança de prata que não me matará, mas me deixará em um estado de inanição completa, como um cataléptico. Permanecerei assim até que meu corpo se desfaça e sobre apenas pó o que devido à minha natureza sobrenatural pode levar toda a eternidade.

 Curioso não é mesmo, senhoras e senhores? A ironia cruel, o paradoxo infame que agora compartilho com vocês e que será carregado pelas nuvens de tempestade que tocavam os sinos dos mortos de outrora será o meu testamento para a Humanidade. Na internet residirá a minha obra de arte final que poderá ser encontrada através pelo título emprestado do poema de Augusto dos Anjos: A Psicologia de um Vencido. Eis o poema que descreve o meu fim...

"A PSICOLOGIA DE UM MALDITO"

"Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da minha infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Produndissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e que à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de-deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!"

   Por isso, cuidado!

  Nós existimos, somos reais e nos alimentamos de vocês, nós os desprezamos. Vocês são menos do que gado para os malditos. O meu mal foi manter a minha sensibilidade mesmo após o beijo de sangue. Que a minha história possa trazer à tona a verdade para os mortais, a lição da minha existência: 

   "A literatura, a arte, pode matar..."

   "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas..." - e assim, fazendo de Machado de Assis as minhas palavras, encerro com Lovecraft que insiste em me dar esperança mesmo ante ao abismo.

  "Não está morto o que eternamente jaz inanimado, e em estranhas realidades até a morte pode morrer..."