domingo, 25 de fevereiro de 2018

Morra com memórias, não sonhos


Todos nós nascemos sozinhos e morremos sozinhos. E inquestionavelmente essas duas experiências vão envolver de alguma forma, dor. Mas entre estes momentos, embora a dor faça intrinsecamente parte da nossa vida, isso não precisa ser o que nos define. A vida é feita de escolhas e mesmo nós tendo tanto que já nos é imposto desde o começo, ainda assim as escolhas principais residem conosco. Por isso fazer o melhor com o que nos é apresentado é um desafio que cada um enfrenta e errar faz parte do processo. Cair nos ensina a termos força para nos reerguermos.

Eu particularmente tenho orgulho de cada fracasso, cada derrota, cada vez que fui vencido pois realmente sei que tentei. E nada deve ser pior do que sequer tentar. Beijar a lona faz parte da luta, mas para isso é preciso encarar o ringue. Se arriscar e assumir as consequências de suas escolhas. E cada tentativa, independente do erro, envolve o que há de melhor em nós: os nossos sonhos, a nossa esperança.

E embora possamos perder eventuais batalhas, a guerra jamais está perdida enquanto estivermos vivos. Ainda podemos nos transformar em pessoas melhores e refletirmos isso no mundo. O nosso legado é o que passamos para os nossos filhos e a verdade que carregamos dentro de nós. Podemos ser moldados por nosso meio ou usar as barreiras para vermos o quão longe podemos voar. Não é fácil, nada é, e se te disseram isso mentiram para você.

Sou professor e essa é a lição que a vida continua me ensinando: "morra com memórias, não sonhos".  

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

"O VISITANTE" Capítulo - III


O VISITANTE
Capítulo – III

O homem da lei tivera uma vida difícil. Nascera pobre, filho de um pai bêbado que jamais lhe ensinou nada exceto a suportar a dor calado. Sua mãe falecera no parto, sua primeira vítima. O menino jamais chorou ante os espancamentos e aprendeu a cultivar o ódio como uma ostra criando uma pérola através do sofrimento. Este sentimento de rancor e raiva lhe acompanhou desde então e a violência fora uma constante em sua vida. Aprendeu com os tropeiros a rudeza da estrada. A maneira de superar os traumas encontrada pelo menino foi se tornar um homem tão cruel ou mais quanto seu pai corroborando como proferira Nietzsche de que quem luta com monstros deve se precaver para que, no processo, não se transforme também em monstro. O delegado não tivera tanta sorte e se tornara exatamente um monstro como o que lhe moldou. Se tornou então ironicamente defensor da lei e da ordem quando a idade começou a pesar após escrever os capítulos mais sanguinários de sua história suja na Revolta da Degola ele desejava conforto e paz para se aposentar e desfrutar do inverno de sua existência sem preocupações. E assim fugindo da ira dos familiares de suas vítimas no sul refugiou-se atrás do distintivo da primeira cidade do sudoeste.

Em seu novo lar fez questão de honrar seu cargo e se tornou o pesadelo dos bandoleiros, ladrões de gado, ciganos, ex-escravos e índios que se recusavam ainda a acatar a autoridade da civilização e demais indesejáveis que pudessem atrapalhar ou incomodar a visão higienista que vigorava na época. Mendigos, vagabundos e desocupados desapareciam sem deixar vestígios. Bandidos eram soltos nos limites da cidade, mas jamais chegavam às cidades vizinhas. Sozinho ele estabeleceu uma pax romana à região jamais vista. E deu sua contribuição com a agricultura ao abrir muitas covas rasas adubando a terra com os pobres que tinham o azar de cair em suas garras. As famílias dos poderosos latifundiários que garantiram por meios escusos que a cidade fosse municipalizada tinham além do prefeito e o pároco como ferramentas de seu sistema um temível cão de guarda. E durante quase dez anos eles reinaram absolutos prosperando sobre a miséria alheia.

A tragédia deste paraíso maquiavélico se iniciara quando em uma tarde fria de algum dia de outono de 1901 uma carta inesperada chegou às mãos do alcaide. Nela o governo estadual transmitia um pedido feito pela França ao Brasil para investigar e identificar a localização ou qualquer informação sobre o paradeiro de um casal de procurados pela Legião Estrangeira que teria cruzado a fronteira para o Paraná quase dez anos atrás. Os Foiz eram naturais da Argélia e segundo a correspondência teriam praticados crimes hediondos inomináveis vinculados ao ocultismo no seu país de origem e no Velho Mundo. A investigação da gendarmerie alegava que os criminosos teriam partido para o Brasil após terem lido uma suposta troca de cartas secretas entre Saint-Hilaire e Debret onde ambos, botânico e pintor, trocavam confissões sobre as terríveis experiências que tiveram em uma gruta onde um rio havia aberto caminho entre as pedras próxima a um vilarejo no interior de São Paulo. O pedido se encerrava com uma ênfase no caráter urgente da questão ressaltando a exigência de extremo sigilo por se tratar de assunto referente a segredo de Estado. Qualquer menção pública ou atraso seriam punidos com o maior rigor possível e o governador em pessoa assinava dando o peso de sua rubrica à mensagem. Os favores concedidos na municipalização eram agora cobrados ferozmente colocando em risco a boa relação entre a política da elite provinciana e o governo. E pego no fogo cruzado estava o delegado que carregaria o peso de atender aos anseios internacionais e responder a contento sua pátria e livrar seus patronos municipais da fúria de seus superiores estaduais.

Contudo não havia pistas para se seguir nem rastros para encontrar. Os criminosos não sabiam sobre eles, nem os nômades ou os estrangeiros que chegavam para repor a mão de obra barata perdida com o fim da escravidão. O padre vasculhara os pecados mais sombrios de seu rebanho em busca de respostas e nada descobrira sobre os argelinos. Em nenhuma cidade e vilarejo próximo havia quem soubesse alguma informação sobre os Foiz. O delegado usou de todas as suas artimanhas: chantagem, suborno, ameaça e tortura e mesmo assim não conseguiu descobrir coisa alguma. A camarilha instaurada entre os poderosos revirou seus contatos e o grupo dos fundadores do município que agia mais como um culto - um clube de elite com pretensões obscuras que nunca permitiu a admissão do delegado - fez tudo o que podia, consultando forças deste mundo e além e o silêncio continuou o mesmo.

O tempo foi passando descontentando os manipuladores que sentiam a cada dia a pressão aumentar. Mais cartas foram recebidas exigindo um parecer e depois de procurar em todos os lugares possíveis eles responderam a única coisa que puderam: que não era possível afirmar nada sobre a passagem dos Foiz e nenhuma informação sobre o paradeiro dos mesmos pode ser encontrada. Esta derrota caiu como uma praga sobre o delegado que teve o seu nome manchado irreversivelmente por sua incapacidade em cumprir sua missão. Ele perdera o cargo e extraoficialmente estava banido da cidade sob pena de ter um fim tão inconspícuo e não ortodoxo como ele garantira aos criminosos. Mais velho e cansado do que nunca sua velhice lhe mordia os calcanhares e a esperança de gozar de um fim de vida tranquilo fora por água abaixo.

O delegado agora novamente cidadão comum se viu obrigado a fugir das terras da fronteira sem deixar vestígios e segundo contam realmente houve quem o procurou com sede de vingança para lhe pagar a dívida de sangue dos prisioneiros de guerra que ele abandonou no sul, gorgolejando no próprio sangue com as gargantas dilaceradas. Isto corroborava sobre as lendas ao redor do seu nome, de degolador, porém ninguém soube do homem após seu desaparecimento no começo do século XX. Só boatos sobreviveram de seu fim e colecionando hoje informações é que é possível vislumbrar um pouco da verdade. E talvez, na luz de tal conhecimento, o que ficou na escuridão devesse assim continuar. Entretanto os arcanos da Europa não esqueceram sobre Lucien e Marie Foiz e o destino que eles teorizavam sobre o casal envolvia diretamente de forma fatídica o delegado de Itararé.

***

Os Foiz adentraram um mundo muito particular de pessoas que tropeçaram na verdade sobre o universo e que vislumbraram o que há além do véu da ignorância que nos cobre e protege. Para alguns, fora através de livros como o do árabe louco ou a peça de teatro maldita que este conhecimento lhes chegou. Para outros, foi a mais pura sorte e infelicidade. Seja como for para os que encaram tal magnitude de segredos as consequências são sempre profundas. Suicídio e perda da sanidade são as mais comuns. Mas os Foiz não só abraçaram tal verdade como procuraram mergulhar mais no conhecimento tentando se comunicar com as forças além da imaginação que dançam entre dimensões. Os arcanos tentavam impedir que pessoas como Lucien e Marie que se deparam com tais segredos abrissem caminho para estes seres ancestrais. Eles procuravam calar por qualquer meio necessário os mortais para que os deuses não percebessem que sabemos de sua existência e não voltassem sua atenção para nós.

No passado os homens primitivos cultuavam estas divindades, cidades e civilizações inteiras foram aniquiladas ao ousarem se ajoelhar aos Grandes Antigos. Atlântida e a Cidade Perdida de Z são alguns exemplos que sabemos dos que foram punidos por se sujeitarem aos deuses tentando barganhar com seu poder incomensurável. Várias tribos ao redor do mundo relatam em tradição oral e mais eventualmente em pinturas e escritas tais rituais para conjurar os poderes sombrios. Eles atendem aos chamados quando querem e de forma aleatória ou ao menos incompreensível aos nossos padrões e o resultado destes contatos é imprevisível. Para realizar estes rituais é comum o envolvimento de sacrifícios e oferendas e eles precisam ser feitos em lugares específicos, especiais, onde as leis da natureza são mais flexíveis e permitem que a realidade seja levemente alterada como um rasgo nos planos de nossa existência que acessa ao dos monstros desconhecidos. Tais locais são raríssimos e geralmente de difícil acesso rodeados de lendas de mau agouro. A energia transcende nestes santuários perdidos como nas pedras de Stonehenge, ligadas pelas linhas de Ley que os magos ingleses já supunham e que Alfred Watkins viria a descobrir.

Saint-Hilaire e Debret descobriram por acaso a gruta da Barreira, uma greta aberta pela força das águas na fronteira entre os Estados de São Paulo e Paraná próxima a cidade de Itararé. Eles ao retornarem para a França trocaram correspondências sobre suas experiências terríveis e os Foiz acabaram tendo acesso a estes documentos e escaparam para o Brasil fugindo da lei e dos Herméticos que queriam lhes impedir e partindo ao encontro de seu destino.

Navegaram escondidos em navios de carga e viajaram ao lado dos ciganos. Acamparam na gruta e fizeram seus rituais obscenos para nunca mais serem vistos. Este, todavia, não fora o fim dos Foiz e sim o começo de algo muito pior. E neste momento em que o delegado já não mais era delegado fazia anos e se escondia na região de Itararé dentro da mata, vivendo praticamente sem contato com mais ninguém que algo o visitou.

Só sabemos deste acontecimento porque foi encontrado o casebre onde o delegado se escondera no fim da vida e onde morrera e ali ele registrara em um diário o que se passara, pois não havia ninguém para conversar. Neste diário ele promete a si mesmo queimá-lo antes de partir para que a humanidade fosse poupada da revelação que lhe fora feita. Aparentemente para a sorte de estudiosos como eu ele foi incapaz de cumprir tal promessa.

Em uma noite febril, quando uma tempestade de proporções bíblicas fustigava a terra, pesadelos de memórias do passado assombravam a mente por um fio do delegado. Suas vítimas degoladas se aproximavam de sua morada caminhando em meio ao bosque deixando um rastro de sangue prontos para arrastá-lo até o inferno e a cada relâmpago eles que eram invisíveis exceto pelo sangue no chão e movimentação dos galhos surgiam da escuridão. Ele ouve do lado de fora coisas rondando, a agitação de seus poucos animais e os gritos abafados dos mesmos ao serem mortos, degolados, sendo deixados estrebuchando no chão. Até que enfim, algo bate à sua porta. O homem que nunca fora religioso se lembrou do Velho Testamento, das lições da missa quando seu pai o levava para passar as tardes na catequese – seu pai que era o demônio em pessoa e extremamente religioso, uma ironia da qual o delegado sempre se confundia entre rir e se entristecer – quando o anjo da morte visita os primogênitos do Egito para cumprir a ira divina. Outra vez, mais uma batida. E mais uma. Dizem que o diabo só pode adentrar aqueles lugares no qual é convidado. Sem mais esperanças de fugir de sua tragédia particular o homem sonhando com tal visita convida aquilo que lhe perturba a adentrar sua mente.

***

No início tudo era trevas. Até que as estrelas começaram a brilhar uma a uma no céu como furos em um tecido negro deixando passar uma luz doente e distante. A luz de estrelas mortas. Então a brisa tocou seu rosto e a sua consciência retornou lenta. Levantou-se do chão e percebeu onde se encontrava. De alguma forma ele estava na entrada da gruta da Barreira e sabia que tudo o que quis saber sobre o paradeiro do casal argelino e da verdade por trás de todo o mistério que envolvia aquela terra estava prestes a lhe ser revelado. O seu coração batia rápido no velho peito carregado de mágoas e rancor.

Um dos sentimentos que mais inspirou nos outros lhe invadia por completo: o terror. Mas era um terror ainda pior. O total medo do desconhecido. Ao estar prestes a descobrir a verdade é que se percebe a benção da ignorância. Para ele, no entanto, era tarde demais. Caso não entrasse naquela caverna ele sabia que estaria contrariando forças muito além de sua capacidade e a opressão lhe ameaçava até os ossos como se olhos do fundo de um abismo infernal lhe acompanhassem. Sem escolhas entrou para dentro do esconderijo de pedras.

Seus passos ecoavam na catedral da natureza. Do lado de fora as águas rugiam furiosas como bestas apocalípticas. Ali, iluminado por velas, ele reconheceu a figura de Lucien ajoelhado e no chão, Marie. O que até então ninguém sabia sobre o casal é que ela estava grávida e o parto fora feito naquele covil maligno onde olhos brilhantes de andorinhas curiosas escondidas em seus ninhos nas reentrâncias das paredes assistiam o homem trazer ao mundo seu filho das entranhas de sua mulher. Ao menos, foi o que o velho delegado pensou.

Sua presença parecia ser ignorada como se fosse um espírito testemunhando uma lembrança do passado. E o que aquele espírito, o que sua alma vira, nada no mundo poderia lhe fazer esquecer. O que Lucien retirou de dentro de sua mulher preso pelo cordão umbilical não era uma criança. Não há palavras para se descrever o horror que gritava incessante em agonia se debatendo nas mãos daquele homem. Lucien com uma faca cortou o cordão umbilical que ligava a mãe, ou melhor seria dizer: “hospedeira”. Marie parecia exausta, mas satisfeita por ter gerado a monstruosidade. Não obstante o sopro de vida daquela coisa foi breve e ela se silenciou antes que o casal pudesse entoar os cânticos profanos para evocar o Antigo que se enterrara abaixo do rio nas raízes do mundo. Estupefatos e desesperados Lucien atirou o ser nas águas que borbulharam ao tragar tal cadáver e com o próprio cordão umbilical enforcou a esposa que assentiu com um movimento de cabeça o próprio assassinato. Ao apertar o pescoço da mulher ele a encara nos olhos e cantava palavras ininteligíveis que soavam como facas contra os ouvidos.

Quando finalmente Marie perdeu o brilho no olhar depois de um momento que pareceu ter durado uma eternidade Lucien a arrastou até a margem das águas e a jogou sem remorso. Ele sorria em esperança de receber alguma resposta. E as águas se tornaram vermelhas como se o corpo tivesse sido devorado pelas correntes submersas e uma luz no fim da gruta que formava um túnel longo surgiu em um brilho amarelado. O homem estava satisfeito, aquela era a sua resposta. Um convite para conhecer o mundo além dos mundos. O portal estava aberto. A coisa abaixo mesmo inconsciente, estava desperta e havia aceitado o seu presente. Como o Messias nas Escrituras, Lucien caminhou sobre as águas em direção à luz no fim do túnel e antes de desaparecer como o brilho de uma estrela cadente ele olhou para trás e sorriu para o delegado que compreendeu que sua presença não era só sentida como prevista. Ele fazia parte do ritual. A testemunha do poder. Aquele que deveria anunciar para a humanidade que os que estivessem dispostos a se humilhar e comer a poeira e as cinzas de sua mediocridade seriam aceitos para servir ao “Caos Rastejante”. Bastava que profanassem seus filhos e assassinassem os seus amados quebrando todas as regras da natureza, da fé, da moral e da civilização. Eles eram insignificantes e deveriam se portar como tal ante ao desconhecido que brilhava como um Rei de Amarelo.

Tudo isso e muito mais foi registrado no diário pelo delegado assim que despertou em detalhes que são impossíveis de se repetir sem causar o mais profundo asco e repugnância. O delegado não iria jamais passar adiante o que o visitante lhe revelara porque sabia que isso apenas fortaleceria o obscuro ser que orquestrava a humilhação total de tudo. E como ele sabia que sua alma já estava danada, que a de mais ninguém fosse conspurcada por este conhecimento proibido e ignóbil. Se ao menos ele tivesse conseguido cumprir seu desejo de queimar tais páginas sua vontade em encerrar em si aquela história teria tido êxito.

Os mestres das artes ocultas enviaram seus próprios emissários para o nosso país e eles varreram a região até descobrirem o diário e o corpo do delegado e desvendaram o fim dos Foiz através deste documento que foi finalmente incinerado como queria seu autor. Só sabemos dele porque antes de ser entregue aos arcanos europeus os aldeões leram suas páginas malditas e reverberaram em sussurros as loucuras nelas contidas. Se os estudiosos místicos ficaram satisfeitos com a história contada pelo velho ex-delegado ermitão isso não há como saber.

Fora que outra questão permaneceu uma incógnita sobre quem haveria de ter cortado a garganta do homem e causado a sua morte. Concluíram sem muita reflexão que se tratara de um suicídio. Mas a forma escolhida de ceifar a própria vida ser a mesma que diziam ter sido a maneira que ele teria matado os prisioneiros inimigos na esquecida “Revolta da Degola” é um tanto quanto irônica. E a única lâmina encontrada que poderia ter sido usado para causar aquele ferimento fora encontrada longe do corpo, uma adaga com entalhes estranhos semelhantes aos encontrados recentemente em pinturas rupestres na Argélia.