O VISITANTE
Capítulo – III
O homem da lei tivera uma vida difícil. Nascera pobre, filho
de um pai bêbado que jamais lhe ensinou nada exceto a suportar a dor calado.
Sua mãe falecera no parto, sua primeira vítima. O menino jamais chorou ante os espancamentos
e aprendeu a cultivar o ódio como uma ostra criando uma pérola através do
sofrimento. Este sentimento de rancor e raiva lhe acompanhou desde então e a
violência fora uma constante em sua vida. Aprendeu com os tropeiros a rudeza da
estrada. A maneira de superar os traumas encontrada pelo menino foi se tornar
um homem tão cruel ou mais quanto seu pai corroborando como proferira Nietzsche
de que quem luta com monstros deve se precaver para que, no processo,
não se transforme também em monstro. O delegado não
tivera tanta sorte e se tornara exatamente um monstro como o que lhe moldou. Se
tornou então ironicamente defensor da lei e da ordem quando a idade começou a
pesar após escrever os capítulos mais sanguinários de sua história suja na
Revolta da Degola ele desejava conforto e paz para se aposentar e desfrutar do
inverno de sua existência sem preocupações. E assim fugindo da ira dos
familiares de suas vítimas no sul refugiou-se atrás do distintivo da primeira
cidade do sudoeste.
Em seu novo lar fez questão de honrar seu cargo e se tornou
o pesadelo dos bandoleiros, ladrões de gado, ciganos, ex-escravos e índios que
se recusavam ainda a acatar a autoridade da civilização e demais indesejáveis
que pudessem atrapalhar ou incomodar a visão higienista que vigorava na época.
Mendigos, vagabundos e desocupados desapareciam sem deixar vestígios. Bandidos
eram soltos nos limites da cidade, mas jamais chegavam às cidades vizinhas. Sozinho
ele estabeleceu uma pax romana à
região jamais vista. E deu sua contribuição com a agricultura ao abrir muitas
covas rasas adubando a terra com os pobres que tinham o azar de cair em suas
garras. As famílias dos poderosos latifundiários que garantiram por meios
escusos que a cidade fosse municipalizada tinham além do prefeito e o pároco como
ferramentas de seu sistema um temível cão de guarda. E durante quase dez anos eles
reinaram absolutos prosperando sobre a miséria alheia.
A tragédia deste paraíso maquiavélico se iniciara quando em
uma tarde fria de algum dia de outono de 1901 uma carta inesperada chegou às
mãos do alcaide. Nela o governo estadual transmitia um pedido feito pela França
ao Brasil para investigar e identificar a localização ou qualquer informação
sobre o paradeiro de um casal de procurados pela Legião Estrangeira que teria
cruzado a fronteira para o Paraná quase dez anos atrás. Os Foiz eram naturais
da Argélia e segundo a correspondência teriam praticados crimes hediondos inomináveis
vinculados ao ocultismo no seu país de origem e no Velho Mundo. A investigação
da gendarmerie alegava que os
criminosos teriam partido para o Brasil após terem lido uma suposta troca de
cartas secretas entre Saint-Hilaire e Debret onde ambos, botânico e pintor,
trocavam confissões sobre as terríveis experiências que tiveram em uma gruta
onde um rio havia aberto caminho entre as pedras próxima a um vilarejo no
interior de São Paulo. O pedido se encerrava com uma ênfase no caráter urgente
da questão ressaltando a exigência de extremo sigilo por se tratar de assunto
referente a segredo de Estado. Qualquer menção pública ou atraso seriam punidos
com o maior rigor possível e o governador em pessoa assinava dando o peso de
sua rubrica à mensagem. Os favores concedidos na municipalização eram agora
cobrados ferozmente colocando em risco a boa relação entre a política da elite
provinciana e o governo. E pego no fogo cruzado estava o delegado que
carregaria o peso de atender aos anseios internacionais e responder a contento
sua pátria e livrar seus patronos municipais da fúria de seus superiores
estaduais.
Contudo não havia pistas para se seguir nem rastros para
encontrar. Os criminosos não sabiam sobre eles, nem os nômades ou os
estrangeiros que chegavam para repor a mão de obra barata perdida com o fim da
escravidão. O padre vasculhara os pecados mais sombrios de seu rebanho em busca
de respostas e nada descobrira sobre os argelinos. Em nenhuma cidade e vilarejo
próximo havia quem soubesse alguma informação sobre os Foiz. O delegado usou de
todas as suas artimanhas: chantagem, suborno, ameaça e tortura e mesmo assim
não conseguiu descobrir coisa alguma. A camarilha instaurada entre os poderosos
revirou seus contatos e o grupo dos fundadores do município que agia mais como
um culto - um clube de elite com pretensões obscuras que nunca permitiu a
admissão do delegado - fez tudo o que podia, consultando forças deste mundo e
além e o silêncio continuou o mesmo.
O tempo foi passando descontentando os manipuladores que
sentiam a cada dia a pressão aumentar. Mais cartas foram recebidas exigindo um
parecer e depois de procurar em todos os lugares possíveis eles responderam a
única coisa que puderam: que não era possível afirmar nada sobre a passagem dos
Foiz e nenhuma informação sobre o paradeiro dos mesmos pode ser encontrada.
Esta derrota caiu como uma praga sobre o delegado que teve o seu nome manchado
irreversivelmente por sua incapacidade em cumprir sua missão. Ele perdera o
cargo e extraoficialmente estava banido da cidade sob pena de ter um fim tão
inconspícuo e não ortodoxo como ele garantira aos criminosos. Mais velho e
cansado do que nunca sua velhice lhe mordia os calcanhares e a esperança de
gozar de um fim de vida tranquilo fora por água abaixo.
O delegado agora novamente cidadão comum se viu obrigado a
fugir das terras da fronteira sem deixar vestígios e segundo contam realmente
houve quem o procurou com sede de vingança para lhe pagar a dívida de sangue
dos prisioneiros de guerra que ele abandonou no sul, gorgolejando no próprio
sangue com as gargantas dilaceradas. Isto corroborava sobre as lendas ao redor
do seu nome, de degolador, porém ninguém soube do homem após seu
desaparecimento no começo do século XX. Só boatos sobreviveram de seu fim e
colecionando hoje informações é que é possível vislumbrar um pouco da verdade.
E talvez, na luz de tal conhecimento, o que ficou na escuridão devesse assim
continuar. Entretanto os arcanos da Europa não esqueceram sobre Lucien e Marie
Foiz e o destino que eles teorizavam sobre o casal envolvia diretamente de
forma fatídica o delegado de Itararé.
***
Os Foiz adentraram um mundo muito particular de pessoas que
tropeçaram na verdade sobre o universo e que vislumbraram o que há além do véu
da ignorância que nos cobre e protege. Para alguns, fora através de livros como
o do árabe louco ou a peça de teatro maldita que este conhecimento lhes chegou.
Para outros, foi a mais pura sorte e infelicidade. Seja como for para os que
encaram tal magnitude de segredos as consequências são sempre profundas.
Suicídio e perda da sanidade são as mais comuns. Mas os Foiz não só abraçaram
tal verdade como procuraram mergulhar mais no conhecimento tentando se
comunicar com as forças além da imaginação que dançam entre dimensões. Os
arcanos tentavam impedir que pessoas como Lucien e Marie que se deparam com
tais segredos abrissem caminho para estes seres ancestrais. Eles procuravam
calar por qualquer meio necessário os mortais para que os deuses não
percebessem que sabemos de sua existência e não voltassem sua atenção para nós.
No passado os homens primitivos cultuavam estas divindades,
cidades e civilizações inteiras foram aniquiladas ao ousarem se ajoelhar aos
Grandes Antigos. Atlântida e a Cidade Perdida de Z são alguns exemplos que
sabemos dos que foram punidos por se sujeitarem aos deuses tentando barganhar
com seu poder incomensurável. Várias tribos ao redor do mundo relatam em
tradição oral e mais eventualmente em pinturas e escritas tais rituais para
conjurar os poderes sombrios. Eles atendem aos chamados quando querem e de
forma aleatória ou ao menos incompreensível aos nossos padrões e o resultado
destes contatos é imprevisível. Para realizar estes rituais é comum o
envolvimento de sacrifícios e oferendas e eles precisam ser feitos em lugares
específicos, especiais, onde as leis da natureza são mais flexíveis e permitem
que a realidade seja levemente alterada como um rasgo nos planos de nossa existência
que acessa ao dos monstros desconhecidos. Tais locais são raríssimos e
geralmente de difícil acesso rodeados de lendas de mau agouro. A energia
transcende nestes santuários perdidos como nas pedras de Stonehenge, ligadas
pelas linhas de Ley que os magos ingleses já supunham e que Alfred Watkins
viria a descobrir.
Saint-Hilaire e Debret descobriram por acaso a gruta da
Barreira, uma greta aberta pela força das águas na fronteira entre os Estados
de São Paulo e Paraná próxima a cidade de Itararé. Eles ao retornarem para a
França trocaram correspondências sobre suas experiências terríveis e os Foiz
acabaram tendo acesso a estes documentos e escaparam para o Brasil fugindo da
lei e dos Herméticos que queriam lhes impedir e partindo ao encontro de seu
destino.
Navegaram escondidos em navios de carga e viajaram ao lado
dos ciganos. Acamparam na gruta e fizeram seus rituais obscenos para nunca mais
serem vistos. Este, todavia, não fora o fim dos Foiz e sim o começo de algo
muito pior. E neste momento em que o delegado já não mais era delegado fazia
anos e se escondia na região de Itararé dentro da mata, vivendo praticamente
sem contato com mais ninguém que algo o visitou.
Só sabemos deste acontecimento porque foi encontrado o
casebre onde o delegado se escondera no fim da vida e onde morrera e ali ele
registrara em um diário o que se passara, pois não havia ninguém para
conversar. Neste diário ele promete a si mesmo queimá-lo antes de partir para
que a humanidade fosse poupada da revelação que lhe fora feita. Aparentemente
para a sorte de estudiosos como eu ele foi incapaz de cumprir tal promessa.
Em uma noite febril, quando uma tempestade de proporções
bíblicas fustigava a terra, pesadelos de memórias do passado assombravam a
mente por um fio do delegado. Suas vítimas degoladas se aproximavam de sua
morada caminhando em meio ao bosque deixando um rastro de sangue prontos para
arrastá-lo até o inferno e a cada relâmpago eles que eram invisíveis exceto
pelo sangue no chão e movimentação dos galhos surgiam da escuridão. Ele ouve do
lado de fora coisas rondando, a agitação de seus poucos animais e os gritos
abafados dos mesmos ao serem mortos, degolados, sendo deixados estrebuchando no
chão. Até que enfim, algo bate à sua porta. O homem que nunca fora religioso se
lembrou do Velho Testamento, das lições da missa quando seu pai o levava para
passar as tardes na catequese – seu pai que era o demônio em pessoa e extremamente
religioso, uma ironia da qual o delegado sempre se confundia entre rir e se
entristecer – quando o anjo da morte visita os primogênitos do Egito para
cumprir a ira divina. Outra vez, mais uma batida. E mais uma. Dizem que o diabo
só pode adentrar aqueles lugares no qual é convidado. Sem mais esperanças de
fugir de sua tragédia particular o homem sonhando com tal visita convida aquilo
que lhe perturba a adentrar sua mente.
***
No início tudo era trevas. Até que as estrelas começaram a
brilhar uma a uma no céu como furos em um tecido negro deixando passar uma luz
doente e distante. A luz de estrelas mortas. Então a brisa tocou seu rosto e a
sua consciência retornou lenta. Levantou-se do chão e percebeu onde se
encontrava. De alguma forma ele estava na entrada da gruta da Barreira e sabia
que tudo o que quis saber sobre o paradeiro do casal argelino e da verdade por
trás de todo o mistério que envolvia aquela terra estava prestes a lhe ser
revelado. O seu coração batia rápido no velho peito carregado de mágoas e
rancor.
Um dos sentimentos que mais inspirou nos outros lhe invadia
por completo: o terror. Mas era um terror ainda pior. O total medo do
desconhecido. Ao estar prestes a descobrir a verdade é que se percebe a benção
da ignorância. Para ele, no entanto, era tarde demais. Caso não entrasse
naquela caverna ele sabia que estaria contrariando forças muito além de sua
capacidade e a opressão lhe ameaçava até os ossos como se olhos do fundo de um
abismo infernal lhe acompanhassem. Sem escolhas entrou para dentro do
esconderijo de pedras.
Seus passos ecoavam na catedral da natureza. Do lado de
fora as águas rugiam furiosas como bestas apocalípticas. Ali, iluminado por
velas, ele reconheceu a figura de Lucien ajoelhado e no chão, Marie. O que até
então ninguém sabia sobre o casal é que ela estava grávida e o parto fora feito
naquele covil maligno onde olhos brilhantes de andorinhas curiosas escondidas
em seus ninhos nas reentrâncias das paredes assistiam o homem trazer ao mundo
seu filho das entranhas de sua mulher. Ao menos, foi o que o velho delegado
pensou.
Sua presença parecia ser ignorada como se fosse um espírito
testemunhando uma lembrança do passado. E o que aquele espírito, o que sua alma
vira, nada no mundo poderia lhe fazer esquecer. O que Lucien retirou de dentro
de sua mulher preso pelo cordão umbilical não era uma criança. Não há palavras
para se descrever o horror que gritava incessante em agonia se debatendo nas
mãos daquele homem. Lucien com uma faca cortou o cordão umbilical que ligava a
mãe, ou melhor seria dizer: “hospedeira”. Marie parecia exausta, mas satisfeita
por ter gerado a monstruosidade. Não obstante o sopro de vida daquela coisa foi
breve e ela se silenciou antes que o casal pudesse entoar os cânticos profanos
para evocar o Antigo que se enterrara abaixo do rio nas raízes do mundo.
Estupefatos e desesperados Lucien atirou o ser nas águas que borbulharam ao
tragar tal cadáver e com o próprio cordão umbilical enforcou a esposa que
assentiu com um movimento de cabeça o próprio assassinato. Ao apertar o pescoço
da mulher ele a encara nos olhos e cantava palavras ininteligíveis que soavam
como facas contra os ouvidos.
Quando finalmente Marie perdeu o brilho no olhar depois de
um momento que pareceu ter durado uma eternidade Lucien a arrastou até a margem
das águas e a jogou sem remorso. Ele sorria em esperança de receber alguma
resposta. E as águas se tornaram vermelhas como se o corpo tivesse sido
devorado pelas correntes submersas e uma luz no fim da gruta que formava um
túnel longo surgiu em um brilho amarelado. O homem estava satisfeito, aquela
era a sua resposta. Um convite para conhecer o mundo além dos mundos. O portal
estava aberto. A coisa abaixo mesmo inconsciente, estava desperta e havia
aceitado o seu presente. Como o Messias nas Escrituras, Lucien caminhou sobre
as águas em direção à luz no fim do túnel e antes de desaparecer como o brilho
de uma estrela cadente ele olhou para trás e sorriu para o delegado que
compreendeu que sua presença não era só sentida como prevista. Ele fazia parte
do ritual. A testemunha do poder. Aquele que deveria anunciar para a humanidade
que os que estivessem dispostos a se humilhar e comer a poeira e as cinzas de
sua mediocridade seriam aceitos para servir ao “Caos Rastejante”. Bastava que
profanassem seus filhos e assassinassem os seus amados quebrando todas as
regras da natureza, da fé, da moral e da civilização. Eles eram insignificantes
e deveriam se portar como tal ante ao desconhecido que brilhava como um Rei de
Amarelo.
Tudo isso e muito mais foi registrado no diário pelo delegado
assim que despertou em detalhes que são impossíveis de se repetir sem causar o
mais profundo asco e repugnância. O delegado não iria jamais passar adiante o
que o visitante lhe revelara porque sabia que isso apenas fortaleceria o
obscuro ser que orquestrava a humilhação total de tudo. E como ele sabia que
sua alma já estava danada, que a de mais ninguém fosse conspurcada por este
conhecimento proibido e ignóbil. Se ao menos ele tivesse conseguido cumprir seu
desejo de queimar tais páginas sua vontade em encerrar em si aquela história
teria tido êxito.
Os mestres das artes ocultas enviaram seus próprios
emissários para o nosso país e eles varreram a região até descobrirem o diário
e o corpo do delegado e desvendaram o fim dos Foiz através deste documento que
foi finalmente incinerado como queria seu autor. Só sabemos dele porque antes
de ser entregue aos arcanos europeus os aldeões leram suas páginas malditas e
reverberaram em sussurros as loucuras nelas contidas. Se os estudiosos místicos
ficaram satisfeitos com a história contada pelo velho ex-delegado ermitão isso
não há como saber.
Fora que outra questão permaneceu uma incógnita sobre quem
haveria de ter cortado a garganta do homem e causado a sua morte. Concluíram
sem muita reflexão que se tratara de um suicídio. Mas a forma escolhida de
ceifar a própria vida ser a mesma que diziam ter sido a maneira que ele teria
matado os prisioneiros inimigos na esquecida “Revolta da Degola” é um tanto
quanto irônica. E a única lâmina encontrada que poderia ter sido usado para
causar aquele ferimento fora encontrada longe do corpo, uma adaga com entalhes
estranhos semelhantes aos encontrados recentemente em pinturas rupestres na
Argélia.
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