quinta-feira, 11 de março de 2021

Os Gordos da Minha Vida

   

   Este é um texto que faz tempo que me ronda a mente, mas por algum motivo eu procrastinava sua escrita. Ao postergá-lo, imaginava eu o escrevendo em uma data especial e assim ao compartilhá-lo ele alcançaria mais pessoas e teria mais repercussão. Quem sabe talvez no meu aniversário como uma reflexão que indicasse que a soma de mais um ano de minha existência estivesse acumulando em mim sabedoria e desta forma eu poderia ter o meu ego massageado e conseguir me promover como escritor. Duas coisas que só demonstram que não tenho nada de sábio e que o tempo só consome e desgasta as coisas e as pessoas pois a sabedoria é fruto de um exercício constante e consciente de reflexão e humildade que eu estou longe de ser capaz de assumir. Seja como for, foi nesta madrugada que ao acordar antes do nascer do sol que eu tive coragem para sentar e começar a escrever sobre os gordos da minha vida.

   Com toda a certeza um dos fatores principais que me convenceram a me levantar e vir escrever ao invés de voltar a dormir é a constatação atual que todos nós estamos tendo sobre a brevidade da vida. Fazer planos futuros, mesmo que dentro de meses, nesta conjuntura é sempre uma promessa inocente e inconsequente já que não sabemos até quando seremos poupados do sorteio na grande loteria da morte. Tenho plena consciência que se caso eu me contaminar é o fim para mim. Um sujeito que sofre de dificuldade de respirar devido ao sobrepeso, bronquite, asma, rinite e de uns anos para cá de diabetes tipo 2 é um candidato a virar estatística com certeza. E este meu quadro clínico só demonstra o porquê eu sempre fui gordo desde criança, afinal, se respirar é um desafio, praticar qualquer atividade física um sofrimento, comer torna-se um alento. Me julguem o quanto quiserem, porém acho muito difícil quem na minha situação optasse por uma decisão diferente. Logo eu me concentrei em práticas mais individuais, passivas e confortáveis como jogar videogame, hábito que detenho desde o Atari; comer; ouvir música sendo sempre incentivado pela minha mãe - o meu primeiro contato com esse mundo se deu através de artistas e álbuns como Daniela Mercury, Chico César, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Chico Buarque, uma coletânea de Rock dos anos 70, uma coletânea de Blues, um álbum do Olodum, Skank e etc - e por último, um dos meus hábitos preferidos enquanto criança e jovem, assistir TV, comendo.

   Comecemos por um dos maiores, literalmente e abstratamente, dos gordos poderosos.

  Tim Maia é um fenômeno absurdo de um cara que tinha tudo para ser excluído e que com garra, atitude e talento de sobra se tornou um dos maiores ícones da música mundial. E percebendo tudo isso, aos poucos eu fui entendendo que era possível para um gordo chegar lá, mas que o mundo sempre colocaria barreiras e que o gordo paradoxalmente teria que se esforçar mais para conseguir chegar onde os outros menos volumosos chegavam mais facilmente. 

   Voltando ao início cronológico da minha história, na TV aberta o cara que eu considerava mais inteligente e legal e que eu sonhava um dia por ele ser entrevistado era o Jô Soares. Foi através dele que eu pude ver que se você fosse inteligente, mesmo que fosse gordo, você poderia ser respeitado e admirado. Todos que passavam pelo programa tinham uma reverência pelo seu entrevistador e eu ficava encantado com aquilo. Isso fez também que eu criasse um outro hábito que até hoje carrego que é de ser notívago, já que o Programa do Jô passava tarde da noite. Sendo assim, se eu não poderia ser o cara mais bonito, em forma e atraente eu decidi que eu poderia ser um cara inteligente e engraçado. Essa conclusão que muitos gordos chegam, principalmente na adolescência, é fruto de uma busca por uma resposta do bullying que nós sofremos. Se nós não poderíamos nos encaixar em um padrão, teríamos que ter outras coisas para oferecer. E eu aprendi rápido a desenvolver uma língua afiada que não devia nada ao Boca do Inferno ou o Bocage. No mesmo tempo que eu aprendia a argumentar e retrucar sendo extremamente sarcástico, cáustico e escroto quando preciso, algo que eu comecei inclusive a apreciar já que aparentemente eu tinha um certo talento para aquilo, eu encontrei o Rock. Com o Nevermind do Nirvana um novo mundo se abriu para mim onde aquela atitude que eu tinha como mecanismo de defesa era um estilo de vida. Antes de entender o que era ser alternativo eu era alternativo por falta de opção.

   Ainda na TV outro cara que descobri um pouco depois foi o Antônio Abujamra no programa Provocações na Cultura. Como não havia internet, era preciso garimpar a própria TV para encontrar entretenimento de melhor qualidade e propostas diferentes e eu saquei logo que as melhores coisas passavam na madrugada. O Abujamra era como o Jô, inteligentíssimo, contudo ele tinha um ar de desafiador, desconfortável, de acuar e realmente provocar o entrevistado que eu achei ainda mais parecido com a pessoa que eu estava me tornando. Até hoje procuro vídeos no Youtube de entrevistas do Jô e do Abujamra porque esses caras eram incríveis.

   Nos tempos de escola o meu apelido "Balofo" foi cunhado e o carrego até hoje com orgulho. Desde que descobri que o primeiro vocalista do Exodus, uma banda americana de Thrash (e uma das bandas que mais curto neste estilo), se chamava Paul Ballof eu comecei a ostentar esse meu apelido porque agora eu não detinha só um termo que tentava me ridicularizar pela minha forma, eu encontrara um nome artístico que iria definir a minha personalidade no palco. Eu comecei lá pelos treze, quatorze anos a minha primeira banda e já nela eu cantava uma música do Exodus e então aquilo me fez sentir poderoso, eu não era mais um cara gordo que as pessoas riam. Eu era uma entidade que defendia a liberdade de se viver como se quisesse e que enfrentava qualquer um que quisesse impor a sua vontade e verdade. Antes do NÖ CLASS eu já era inclassificável.

   Outro vocalista do metal, Andreas Geremia, da banda alemã de Thrash, Tankard, tem em sua banda muito do que eu trouxe para o NÖ CLASS. A bebedeira, a loucura, o humor, são muito parecidos. E este vocalista não coincidentemente era gordo e é por isso que eu digo que é um caminho natural para o gordo se tornar engraçado como forma de procurar aceitação. Com o tempo fui compreendendo que não dava para defender a loucura sem responsabilidade e que há temas que precisam ser tocados com cuidado. A vida sem freios dos anos 80 do Rock ficou lá e muito poucos sobreviveram e os que o fizeram carregam sequelas eternas. Então, ao me dar conta que ao subir no palco eu me tornava um exemplo, mesmo que um mal exemplo, eu entendi que eu poderia utilizar aquele espaço para transmitir um pouco do que eu acredito e assim nasceu o conceito da Horda Desclassificada, a intenção por trás das músicas próprias e os trabalho de fotografia do NÖ CLASS.

    Cada gordo que eu encontrava que era foda eu tentava gravar na memória e ter como referência porque não era fácil encontrar exemplos de sucesso. Foi assim com o Bud Spencer na porrada nos filmes de ação que tinham coreografias de luta tão complexas quanto as da Turma do Didi. No cinema, caras como o John Goodman, Brendan Gleeson e Brian Cox eram os atores que sempre faziam papeis de personagens relevantes, importantes, ameaçadores, engraçados ou que meramente pelo talento destes atores brilhavam e eu ficava maravilhado em como mesmo o gordo quase nunca sendo protagonista, ele estava de alguma forma sendo memorável através destes caras. Até no pornô, com o Ron Jeremy, os gordos estavam conquistando espaços. 

   Hoje nós temos o Mário Sérgio Cortella, o meu filósofo brasileiro moderno preferido, inteligente e cheio de classe. O próprio Pavarotti era um belo exemplar de um gordo poderoso e impecável. Minha mãe adora a música que ele canta com o U2, "Miss Sarajevo", e ela sonha comigo cantando essa música incluindo a parte em italiano do Pavarotti. Quando criança na hora do banheiro o chuveiro era o meu momento e eu cantava a plenos pulmões tudo que eu gostava, de ópera a Elis Regina e Queen e essa mistura toda me fez ser o gordo que eu sou hoje. Quem sabe não faço um cover na voz e violão, sozinho, de Miss Sarajevo, mesmo sabendo que o italiano vai sair macarrônico, só para fazer a minha mãe feliz.

   Sou um gordo que tem sua própria banda e canta e se apresenta sem pudores. E que mesmo sendo obsceno, não é inconsequente. Um professor que se espelha nos grandes pensadores que me serviram de inspiração para não só transmitir o conhecimento e sim fazer com que o conteúdo agregue sentido na vida dos alunos para que eles se lembrem das aulas, da matéria e de mim como um desenvolvimento de potencial que envolve entretenimento e informação. Um escritor que se encontrava até hoje com um bloqueio criativo sofrendo com todo o clima terrível que paira sobre nós neste momento triste e que acordou hoje inspirado para celebrar os gordos da minha vida que me inspiraram de alguma forma porque não sabe se vai durar até o aniversário. 

   E um gordo que vibrou ao ver o Thor não só desempenhando o papel negativo que costumam representar os gordos como pessoas desleixadas, acabadas e derrotadas, mas que também demonstrou que os gordos são pessoas merecedoras e podem ser herois sem precisar terem uma barriga de tanquinho. 

   Com certeza esqueci de muitos outros gordos importantes, eu queria mesmo é só relembrar e sugerir nomes que talvez as pessoas não se lembrem ou não conheçam de pessoas extremamente talentosas cada uma em seu campo de trabalho. Então me perdoem os gordos que por ventura eu não mencionei e que sejamos todos grandes grandiosos e que a nossa gula seja perdoada porque somos reféns de nossos pecados carnais. 

   De todos os erros que podemos cometer por excesso, comer é inegavelmente um dos mais saborosos.

   Que possamos ser saudáveis sem que tenhamos que nos enquadrar nos padrões e que ostentemos as nossas barrigas como conquistas de uma vida de quem sabe o que é viver sem fome e medo.

   Um bom dia a todos e tomem um café da manhã bem reforçado.