quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Gelo e Sangue


   O frio era tão intenso que parecia alcançar até os ossos. Aquele inverno parecia pior do que os piores invernos até então superados. Muitos haviam tombado e outros mais não sobreviveriam para ver o degelo das montanhas.

   A força dos homens estava na sua união. A caçada em conjunto, a partilha da carne, a coleta dos frutos da terra, a manufatura das peles.

   Com a perda dos companheiros o coletivo se enfraquecia. E os mais fortes não olhavam mais para os mais fracos como aliados.

   A fome rondava a tribo e em desespero caçadores começavam a olhar a si mesmos como caça.
   
   Como animais oportunistas os caçadores que ainda retinham forças confabulavam para trair e assassinar os companheiros enfraquecidos. Eles desejavam roubar suas mulheres e eliminar seus filhos para tomarem-nas para si e terem com elas seus próprios herdeiros.

   A revolução dos ômega.

   Os anciões foram os primeiros a partir com a queda da temperatura. A tribo sem a sabedoria dos mais velhos para aconselhá-los ficou perdida e cada macho viu uma chance de se tornar um alfa. 

   Os homens dizimariam seu povo próprio povo. Quando enfim o fim do inverno chegar eles não terão números suficiente para se manter. Sem conseguir caçar em grupo eles estavam fadados a minguar isolados e serem trucidados pela natureza.

   Ninguém da tribo conseguiu antever a tragédia anunciada estampada nos olhares dos caçadores que sucumbiriam rapidamente aos seus instintos primitivos condenando a todos.

   Ninguém exceto uma mãe.

   A mulher que notou como os companheiros de caça de seu marido começaram a olhar para ela e para seu filho com sorrisos sinistros e olhares bestiais ao perceber que ele não resistiria àquela noite. Eles não sentiam a perda, mas a aguardavam e celebravam em silêncio.

   Em silêncio ela vestiu as peles de caçador e pegou o arco e flecha e colocou seu filho no cesto de coleta nas costas e rumou para a escuridão. Os que tentaram impedi-la, ao serem desafiados por sua adaga de osso, decidiram deixá-la partir.

   Nenhum homem ficaria entre ela e seu filho.

   Para esses predadores covardes havia outras fêmeas menos ferozes a serem conquistadas.

   Ao menos era isso que eles pensaram ao deixá-la desaparecer na escuridão da noite.

***

   Sobreviver nos ermos e tundras era quase impossível. Os animais eram preparados para enfrentar as intempéries. O ser humano só possuía uma chance de sobreviver: através do trabalho em grupo.

   Ela sabia disso. E sabia que provavelmente iria morrer de fome, se tivesse sorte, ou então algum predador a surpreenderia dando um fim a ela e seu filho. 

   Mesmo assim aquele destino parecia mais digno do que ser violentada e subjugada pela sua própria espécie.

   Se ela encontraria seu fim que fosse lutando.

   Sabendo que suas chances eram maiores em grupo ela decidiu seguir a manada de um dos animais mais fortes daquele mundo. 

   Estes seres majestosos eram tão grandes, fortes e resistentes que nenhum predador ousava atacá-los diretamente. Os grandes felinos sempre os seguiam nas sombras, furtivamente, tentando encontrar uma abertura para abater um filhote desatento.

   E um ataque, mesmo contra um mero filhote, sempre se mostrava um risco. Mesmo um filhote poderia ferir mortalmente um agressor e a fúria do bando poderia facilmente pisotear e retalhar com suas longas presas qualquer criatura que se aproximasse com intenções hostis.

   Sua imponência era tamanha que os demais animais preferiam pastar e descansar nas planícies onde os magníficos mamutes escolhessem perambular. Eles eram os verdadeiros reis das estepes e nada rivaliza contra sua presença.

   Seguindo o exemplo das corças e outros animais a mulher seguiu os monstruosos paquidermes. No começo tentou encontrar comida na parca folhagem que não congelara. Mas quase tudo estava podre ou havia se tornado duro como pedra pelo frio.

   Então tentou armadilhas para pegar pequenos roedores. E aplicou tamanha dedicação nessa empreitada que conseguiu abater alguns coelhos, ratos e esquilos. O sangue e as carcaças, porém, atraíram a atenção de outros animais. 

   Os lobos caminhavam ao longe. Próximos para serem percebidos e distantes o suficiente para não perturbar os senhores das planícies. Salivando ao encararem a carne tenra da criança que descansava entre as peles no cesto, preso às costas da mulher, e uivando à noite lutando uns contra os outros, famintos.

   A caçadora evitava perturbar os outros animais que gozavam da proteção indireta dos mamutes porque sabia que poderia causar uma debandada que poderia aniquilar a todos. Contudo a fome de seu filho que não tinha mais força para sequer chorar a fez entender que para uma mãe nem mesmo os senhores da terra estavam acima de sua criança.

   Preparou o arco e a flecha e se afastou dos mamutes para que suas ações não causassem problemas. Se ajoelhou na neve e com o braço em riste, com a corda de tripa retesada ao máximo, segurando a respiração, mirou em um antílope que despretensiosamente vagava por ali. 

   A flecha voou rápida com um assovio pelo ar e surpreendeu o inocente animal que caiu sangrando pelo pescoço. Um ferimento mortal. 

   A caçadora sorriu e antes de poder guardar o arco e puxar sua adaga para dar um fim ao sofrimento de seu abate uma família de lobos surgiu se aproximando de sua presa.

   A loba não avançava, pelo contrário, sentava e esperava com seus dois filhotes do lado a reação da caçadora.

   Eram duas fêmeas que viram-se forçadas a vagar no frio e a lutar para sobreviver para alimentar e proteger suas crias.

   Um impasse se estabelecera. A caçadora poderia lançar outra flecha contra o predador concorrente, mas algo no olhar da loba a fez lembrar de si mesma e ao contrário de afugentá-la decidiu se aproximar lentamente.

   Ao ver o tamanho do animal que ela finalmente matara com sua adaga a caçadora compreendeu que fora a ganância que a fez estar ali onde ela estava. Se os homens se tratassem como iguais e soubessem partilhar o que tinham ao invés de querer dominar os seus irmãos ela ainda estaria na caverna com sua tribo.

   A resposta para o dilema em que ela e a loba se encontravam era simples: havia carne para ambas as mães sanarem a fome de seus filhos. 

   E foi assim que a caçadora e a loba dividiram uma refeição tendo o rosto coberto pelo sangue quente do nobre animal que cedia sua carne para alimentá-las enquanto seus filhos já saciados brincavam uns com os outros.

***

   O inverno durara uma eternidade. A loba e a caçadora trabalharam juntas para caçar e sobreviver ao frio. O calor de uma aqueceu a outra e os filhotes aprenderam a conviver uns com os outros como uma família.

   Quando o degelo veio e o sol esquentou a relva novamente ela sabia que os traidores que abandonara do inverno retornariam para assombrá-la.

   Os homens que sobraram da tribo voltariam a caçar e iriam em algum momento encontrá-la nos campos onde as manadas pastavam.

   Com a sua companheira loba e os lobos filhotes ao seu lado ela sabia que tinha alguma chance de enfrentá-los. Entretanto não havia nela qualquer vontade de combater os seus antigos aliados. Ela só queria viver em paz. Sem precisar se provar contra os covardes que desgraçaram seu antigo clã.

   Qual não foi por isso sua surpresa ao encontrar nos campos de caça um bando de mulheres cobertas com pinturas de sangue, agindo em conjunto, com lanças, adagas e arcos iguais os usados pelos caçadores de sua tribo.

   As mulheres pareciam guerreiras ferozes com ossos e dentes humanos amarrados nas peles que trajavam ostentando aqueles adereços ameaçadores como um aviso do que aconteceria a qualquer outra tribo que se aproximasse.

   Mulheres que ao conviver com feras sentiram necessidade de também se tornar feras.

   Porém ao invés de atacar a líder das guerreiras impediu o avanço das irmãs quando perceberam a caçadora e a loba. E então elas se revelaram para a caçadora como sendo as mulheres da sua tribo.

   Sem entender o que aquilo significava nem as guerreiras compreendiam a antiga caçadora que agora caçava ao lado de uma loba e nem a caçadora entendia como era possível aquelas mulheres, suas antigas companheiras, estarem vivas e trabalhando juntas sem qualquer homem por perto.

   Então a líder das guerreiras e a caçadora guardaram suas armas e conversaram para tentar compreender como o inverno as transformara.

   Foi assim que a caçadora ouviu sobre as mulheres da tribo que ao verem a coragem de sua irmã caçadora de enfrentar os homens em nome de seu filho e encarar a noite e o frio sozinha inspirou as colegas a se rebelarem e a enfrentarem os homens da tribo.

   Em um combate frenético muitas mulheres tombaram e outras não resistiram aos ferimentos da batalha.

   Mas as mulheres da tribo mataram todos os homens que desejavam dominá-las e sobreviveram ao inverno comendo a carne deles. Seus filhos estavam mais gordos do que nunca e elas estavam livres para viver sem medo. 

   Elas voltaram a caçar e se banharam no sangue dos homens usando seus ossos e dentes para amedrontar qualquer outro macho que desejasse dominá-las.

   Foi desta maneira que a caçadora encontrou novamente uma tribo humana que a respeitava e com a qual ela poderia somar forças para contribuir e se proteger. 

   Um pacto foi selado entre as irmãs de sangue e a caçadora lupina naquele dia fundando uma nova tribo, um novo clã, uma nova forma de viver entre pessoas e animais onde ninguém haveria de tentar controlar o outro. 

   Com os lobos caçando ao lado das guerreiras a tribo das mulheres se tornou a mais próspera e poderosa. As caçadoras guerreiras acabaram impondo às demais tribos com quem negociavam que as mulheres fossem respeitadas. Nenhuma mulher dependeria da proteção de um pai ou marido. Elas seriam respeitadas porque eram fortes como qualquer homem e trabalhariam para alimentar a tribo como qualquer outro membro.

   Assim quando eras adiante os invernos deixaram de ser tão terríveis e duradouros e os mamutes desapareceram as tribos se uniram para cultivar a terra fértil e verdejante as primeiras divindades de tais povos eram nada menos que mulheres fortes e guerreiras que como a natureza gerava a vida e que como a natureza poderia ser também incrivelmente cruel.

   Os filhos destes povos nunca mais deixaram de ter por companhia os filhotes dos lobos convivendo com eles dentro de suas casas tratando-os como seus próprios filhos. 

   Dizem que os humanos se tornaram mais selvagens por conviver com os lobos e os lobos se tornaram mais sensíveis por conviver com os humanos.