domingo, 23 de setembro de 2018

O FRUTO - Interlúdio


O FRUTO
Interlúdio

O tempo corrói a tudo e a todos e parece exercer uma força mais opressora e direta nas pobres almas da cidadezinha perdida da fronteira de São Paulo com o Paraná. Em menos de uma geração a memória é deteriorada. Fatos se tornam lembranças confusas, nebulosas, sem nunca ninguém saber ao certo a verdade do que se passou. Estamos afogados em uma ignorância avassaladora.

Houve aqueles que foram convocados e rumaram além-mar para confrontar o nazismo e praticamente ninguém se lembra ou sabe deles. Apenas um memorial reside em uma pequena praça onde ninguém se dá o trabalho de ler a chapa de metal que guarda um pouco de sua memória. Os acontecimentos das Revoluções de 30 e 32 são igualmente ignorados mesmo que suas consequências sejam marcadas em brasa na nossa identidade. Outro monumento esquecido descansa no parque da Barreira sem que ninguém o visite.

Temos os nossos patronos do passado que nomeiam ruas e assim como foram importantes hoje são tão reconhecíveis como um indigente e os transeuntes pisam literal e metaforicamente neles todos os dias sem se dar conta do peso de seus passos sobre os alicerces da sociedade em que vivem. Há um busto na praça principal no coração da cidade que é vandalizado não só pelo tempo, mas também pelos pombos que defecam sem pudor sobre o legado dos imponentes demonstrando que a natureza não se curva ou respeita nada nem ninguém.

O celeiro de artistas que é Itararé está mais para um berço ingrato onde a arte e a cultura não possuem nenhum espaço e não compartilham do afeto da massa que segue hipnotizada sem conhecer os nomes que surgem dela. Todo ano o grande pão e circo ocorre com crueldade animal e mais do mesmo vazio. O pior de Roma vive aqui e a democracia coronelista convive com os vícios antigos da elite parasita.

O rádio é impregnado por bobagens e sensacionalismo sendo a voz de uma linhagem como um mantra de falas distorcidas por línguas bifurcadas de serpentes. Estamos intoxicados pelo populismo, soterrados pelo total descaso e viciados na violência, na tragédia e na mesquinharia. Até onde é mau-caratismo dos que estão acima de nós e que desejam nos manter assim tão cegos e perdidos e o quanto adoramos devorar este banquete de lixo é impossível dizer ao certo. Os nossos governantes são um reflexo de nós e ao contrário de Narciso achamos feio tudo que é espelho. Somos Dorian Grays modernos.

O fruto desta semente de ignorância e mau-agouro é a essência do nosso derrotismo, a fatalidade está no nosso DNA. Não nos surpreendemos com as desgraças, as recebemos de braços abertos como visitas a muito tempo aguardadas. Sabemos sem querer que há algo de muito errado entre nós, não sabemos exatamente o que é, mas é possível sentir no ar, no chão, algo respirando nas entranhas da terra. Profetas do azar.

No último século o mundo quase se abriu para que aqueles que dormem despertassem de seu sono lúcido, porém os sacrifícios necessários não foram feitos. Eles, que existem em todos os tempos e conhecem todas as realidades e dimensões aguardam pacientes, sabem que a sua vitória é certa e que não há nada que possa impedi-los. Eles são os Senhores do Caos e habitam o nosso mundo e o universo e todos os outros mundos e universos. Há uma porta que leva a um destes pesadelos - a cidade cantada por Robert W. Chambers que é só o início da jornada para a insanidade - e ela está entreaberta. O porta-voz - o monarca amarelo - destes deuses sussurra por entre esta abertura e tenta fazer com que os mortais pratiquem a mortandade necessária para que seu superior que dorme abaixo do Rio Itararé possa abrir seus medonhos olhos. A espera só o diverte ainda mais. Não há pressa, apenas prazer ao corromper. E a cada dia estamos mais próximos de cair e cumprir as sugestões de Nyarlathotep.

Eles vão saborear o doce fruto de sua influência perversamente desenvolvida nos arrebatando como moscas contra um furacão. Não somos nada para eles e esta verdade sozinha já é o suficiente para destroçar a mente dos mais incautos. Cada universo é uma caixinha de brinquedos e de possibilidades de tormentos esperando para serem postos em prática.

Antes nos enganarmos com falsas imagens e deuses customizados ou ainda a ignorância bela e presunçosa de sermos os únicos seres conscientes a existir. Reles imbecis. Coitados. Deixem que gozem de suas festas, a ignorância afinal é realmente uma benção. Usamos toda a capacidade de nosso cérebro o que desmente um mito popular sobre o potencial de nosso entendimento e mesmo assim não chegamos sequer a arranhar a superfície da verdade que há além porque é impossível para nós compreender a insanidade cósmica onipotente e onipresente. Conhecemos mais sobre o espaço do que o fundo dos oceanos e isto demonstra a fragilidade de nossas certezas. Cthulhu não deseja ser incomodado nas ruínas inundadas de sua metrópole, R'lyeh. "Há mais coisas entre o céu e a terra do que desconfia a nossa vã filosofia" - como diria Shakespeare. Acima ou abaixo não importa, estamos completamente perdidos.

Sendo assim, neste caso da ignorância ser mesmo uma dádiva, Itararé pode ser considerada uma das cidades mais afortunadas que existem.

O século XXI chega e as estrelas mortas novamente começam a se colocar em movimento para a grande conjunção. A oportunidade de retornar estará novamente ao alcance dos Grandes Antigos e talvez dessa vez nós seremos tolos o bastante para ceder e derramar o sangue necessário para pavimentar seu caminho. O fruto da semente da Discórdia está cada vez mais doce e atraente; ele é a isca na armadilha e nossos olhos brilham seduzidos ao mesmo tempo que nossas bocas salivam e nossas mãos se levantam para tocá-lo.

Não é preciso muito para nos derrubar e de qualquer forma nós adoramos mesmo rolar na lama no fim das contas. 

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Cosmonautas


Sou sol entre lua!
Sou só uma parte do teu sol.
Suas nuvens carregadas de amor,
fazem-me flutuar.
O seu dia parece, o meu.
O seu dia faz o meu.
O seu dia faz o meu!

Sou lua entre sol!
Sou só uma parte da sua lua.
Suas noites carregadas de dor,
fazem-me pensar.
A sua noite parece, a minha
A sua noite faz a minha.
A sua noite faz a minha!

No céu perco as horas
Contando as estrelas
Cego de luz

Vejo você e sorrio
A eternidade é só um triz
ao lado de quem nos faz feliz

O zodíaco não faz jus
Aos astros e desencontros
O horizonte em cruz
Na irís, só você reluz

Poesia feita em parceria com Fábio Ribas Macedo