Porém quantas vezes não esbarrei em barreiras que de alguma forma intencionavam me enclausurar, me dissecar, catalogar e principalmente me desvendar me colocando em rótulos, me guardando em potes como se fosse possível mutilar a personalidade e fazer dela compotas de sabores distintos. Quando na música "Ordinary Man" do Ozzy Osborne o Elton John canta "They tried to kill my rock'n'roll..." (Eles tentaram matar o meu rock'n'roll...) é sobre isso que ele está falando. Pelo menos é assim que eu me relaciono com esse trecho.
Entendo que o desconhecido causa apreensão e pode ser encarado como uma ameaça. Mas se formos realmente sinceros conosco sabemos que por mais autoconhecimento que possamos desfrutar que nem sobre nós mesmos é possível afirmar certezas absolutas. Não sabemos ao certo o que somos capazes de fazer dependendo das circunstâncias e essa dúvida nos tira dos pedestais que construímos para nós mesmos e nos coloca no mesmo nível da ralé que menosprezamos. A verdade é incômoda e por isso é tão confortável se fechar dentro de parâmetros para se sentir seguro. Ninguém é cidadão de bem porque ninguém é sempre bom.
Não somos diferentes das melhores e das piores pessoas. Na verdade, as melhores e as piores pessoas não são muito diferentes entre si. Tudo depende do ponto de vista. Porque sempre trata-se primordialmente de pessoas. Não existem monstros, inimigos ou outras criaturas que mais nos atormentem do que a nós mesmos. Humanos são os arqui-inimigos de humanos e também seus salvadores. Um homem que acredita no próprio mito entende que está fazendo o melhor para os demais já que o escolheram para guiá-los e por isso, seus opositores jamais estarão à altura de sua megalomaníaca estatura. Para evitarmos exemplos tristes como esse precisamos entender a nós mesmos e assim entender as demais pessoas.
Me lembro de quando era criança de ter medo dos adolescentes porque eles pareciam tão crueis uns com os outros e quando fui um, hoje, sei que fui tão idiota quanto qualquer adolescente que tenha me assustado enquanto criança. Este é um exemplo de reflexão tão esclarecedor quanto qualquer temporada de reality show. O mergulho no abismo pessoal acaba por nos mostrar revelações bombásticas que nos fariam querer cancelar qualquer pessoa, se acaso aquilo não se trata-se de nós mesmos. Nada como ser hipócrita para nos fazer sentir melhor sobre os nossos próprios problemas.
Fui um aluno que não gostava de estudar e me tornei professor. Tive professores admiráveis que marcaram a minha vida e talvez por isso me tornei esse paradoxo ambulante. Sou grato eternamente a eles porque com certeza a minha escolha de assumir esse papel tem a influência de seu trabalho. Mas me lembro claramente de falas quando comecei a fazer faculdade de gente dizendo que tinha pena de mim por escolher ser professor e que era uma profissão desmerecida e de pessoas frustradas e desoladas. Fazem dos professores mártires e mesmo quando tentam lhes mostrar respeito, os desrespeitam. Engraçado como me lembro dessas falas, mas não me recordo de quem as disse. Talvez porque a minha memória é convenientemente seletiva. Ou talvez seja porque realmente eram pessoas diminutas, desprezíveis e indignas de serem lembradas na minha saga épica pessoal.
E me lembro de colegas de aula que desrespeitavam os professores não porque tivessem algo contra eles, mas porque tinham problemas consigo mesmos. Feriam por estarem feridos. Essa tática é uma das primeiras que recorremos quando somos apresentados à selva social e é fácil perceber, depois de um certo treino, quando isso ocorre. Só não é fácil não se abalar e não permitir que o veneno alheio tire o nosso equilíbrio. E ninguém está imune a isso, nenhum professor ou aluno. Claro que estamos falando de uma relação entre adultos e jovens. É obrigação dos adulto serem maduros. Entretanto se perguntarmos por aí quantas pessoas conhecem professores que já choraram em sala de aula ou apresentaram comportamentos depressivos vocês vão entender a pressão que carregamos. Os atritos são invariavelmente complicados de se resolver e precisam ser revistos com menos julgamento e mais compreensão, já que nós estamos todos aprendendo. A lição é ter a humildade de reconhecer as falhas para fortalecer o espírito. Para nos curarmos. As palavras têm poder. E os professores sabem que mais importante do que tropeçar ou cair é não desistir de seguir em frente.
Foi na escola que percebi que tinha talento com as palavras. Já pintei, desenhei, canto, toco violão, mas habilidade mesmo, com certeza é na escrita. Ser artista não requer habilidade. Porque você é o que você é independente das expectativas e comparações sociais. A arte não é uma disputa porque não é útil. A arte é inútil porque pode servir a qualquer propósito. Pode aflorar o melhor e o pior do ser humano e é exatamente por isso que é uma característica genuinamente humana. O mercado da arte é que quantifica likes, valores e repercussão. Quantas vezes recebi críticas e fui menosprezado porque estava fazendo o que gostava e segundo a noção do julgamento alheio eu não era bom o bastante. Eu faço aquilo que eu quero e o que eu gosto. Eu faço porque eu preciso fazer. E se isso incomoda, cumpre o papel da arte que é se conectar com os outros. A forma como lidamos com a expressão humana revela mais de nós mesmos do que da forma de expressão em si. E se expressar é mais do que gostar de se expressar, é uma necessidade. Eu defeco, urino, respiro e me expresso. E este texto é tão torto porque faz tempo que não escrevo e portanto estou escrevendo por necessidade, tendo mais uma vez uma recaída literária.
No ENEM fiz uma redação sobre como o Hino Nacional - embora o nosso hino seja um texto lindo que ao contrário de outros, não foca na celebração de vitórias bélicas e sim em outros traços do nosso país - tem uma construção não linear que me parece intencional para se fazer estranha à maioria das pessoas que não sabem cantá-lo por não compreendê-lo. Somos refugiados em nossa própria cultura porque com uma cultura tão rica e diversa que os padrões impostos para nos rotular acabaram nos fazendo estranhar a nossa própria identidade de ser plural. Estranhos em uma terra estranha. Não se preocupe também com isso, já que segundo Oscar Wilde "De perto ninguém é normal".
Lembro de uma aula que preparei no começo da minha carreira como professor que ensinava sobre o conceito de crônica e citava a fala de Fernando Sabino que "Crônica é tudo que o autor chamar de crônica". Este gênero literário possui uma estrutura curta, opinião do autor e sempre apresenta uma ligação com um tempo histórico. Então aproveitando esta explicação queria dizer, só para respeitar a estrutura que acabei de apresentar, que estes meus pensamentos ocorrem no segundo ano de pandemia quando ainda no nosso país não sabemos quando todos seremos vacinados, estamos tão confusos como quando precisamos interpretar o nosso hino. E registro que temo pelas vidas de professores, equipe de profissionais escolares, alunos e familiares com a decisão estapafúrdia de volta às aulas presenciais mesmo sem termos todos vacinados.
E me despeço humildemente deste desabafo, me sentindo melhor por exercitar a escrita, esperando que mesmo que este texto tenha nascido para me tirar a angústia de precisar me expressar que ele de alguma forma consiga se conectar com outras pessoas e prolifere a reflexão para compartilhar o ato de se autoanalisar tanto quanto aprecio fazer comigo mesmo. E assim me considero a minha melhor companhia. Nem sempre concordo comigo, mas me entendo e aceito. Ao sermos sinceros conosco somos capazes de nos aceitar e entender como podemos melhorar. E assim, ao nos tornarmos melhores tornamos o mundo melhor.
E sim, isso é uma crônica. Só que anacrônica.