terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Le Petit Chaperon Rouge


A Menina do Capuz Vermelho
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A capa vermelha se insinuava em meio ao cinza. Enquanto o capuz escondia o rosto o vestido curto demais revelava as pernas claras, provocantes. Este disfarce auxiliava Cecille a preservar sua identidade, todo cuidado era pouco. A ordem do tenente-general de polícia Gabriel Nicolas de la Reynie era clara: livrar Paris dos imigrantes indesejados, sem alarde, custasse o que custasse. E ninguém era mais indesejado do que as cortesãs.
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Dentre elas, as principais vítimas quase sempre eram pobres, velhas ou desagradáveis demais para subornarem os oficiais com seus serviços. Contudo, naqueles tempos as belas e jovens ou as que tinham a sorte de servirem um cliente rico também não estavam a salvo dos abusos da milícia. Afinal, quando os guardas cobravam sua parte havia apenas duas opções: pagar em dinheiro tendo que trabalhar em dobro para recuperar o prejuízo ou cedendo aos monstros que compunham a força policial parisiense.
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Por isso Cecille carregava consigo uma cesta com velas para se passar por vendedora. E ela até conseguia alguns trocados de vez em quando vendendo as velas que roubava da igreja - por Paris vale a pena ir a uma missa. No entanto, a verdadeira finalidade das velas era acobertar seus clientes que acompanhavam-na até os becos escuros. Ao perceberem o que de fato Cecille vendia, alguns fingiam-se ultrajados, mas todos acabavam usando as velas para iluminar seus pecados. Antes do fogo consumir metade das velas a maioria já estava despejando na pele rosada de Cecille um líquido tão quente quanto parafina derretida.
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Para aqueles que não sabiam de seu trottoir, uma órfã tão encantadora e meiga perdida nas esquinas como Cecille se arriscando tarde da noite daquela maneira era absurdo. Acreditanto em sua inocência um pobre padre ofecereu a Cecille um quarto em sua residência humilde. Obviamente Cecille aceitou. Dessa maneira conseguir velas quando a preguiça não a permitia ir a missa ficava muito mais fácil. Inconveniente era apenas ter de cuidar da casa. Quando sua falta de vocação para as tarefas domésticas tornavam-se muito evidentes, Cecille propositalmente esquecia-se de trancar-se ao fazer a toalete para permitir que o velho a espiasse.
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O Andarilho dos Cães
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Poucos na Paris do século XVII se atreviam a desafiar a lei, porque justamente os piores criminosos eram quem a compunha. Contudo os que o faziam, rapidamente tornavam-se conhecidos. Não obstante, apenas um havia se tornado uma lenda: o andarilho dos cães.
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Esse homem sempre acompanhado por uma matilha de vira-latas sobrevivia revirando o lixo pela corte dos milagres, lugar que ficou conhecido devido aos desaparecimentos da noite para o dia dos miseráveis. Jamais se dobrou a ninguém. Quando um destacamento foi designado para lhe colocar no lugar, aí então sua fama foi gerada. O que aconteceu possui muitos desfechos, a verdade, todavia, é que esses policiais nunca mais foram vistos novamente.
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O homem é o lobo do homem.
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O Lobo
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Cecille fora traída por sua beleza. Obcecado, o padre a seguiu e flagrou Cecille com dois homens ao mesmo tempo, usando sua boca e seu sexo para lhes arrancar prazer. Tomado de vergonha, ciúme e culpa por se deixar seduzir, o padre procurando vingança foi despejar seu veneno nos ouvidos dos homens da lei como uma raposa alcoviteira. Era tarde, chovia, o padre encontrou apenas um policial. Era o suficiente. Se tratava de ninguém menos que Choufon, célebre estuprador e sádico poupado da forca e recrutado para engrossar as fileiras da polícia.
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Chovia forte. O vestido encharcado colava-se como uma segunda pele sobre o corpo delgado de Cecille.
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Ela corria com o coração acelerado de um cervo assustado. O predador em seu encalço diminuía cada vez mais a distância entre eles. Choufon conhecia aqueles corredores como ninguém, crescera neles e deles tirava seu sustento. Aqueles becos eram o mais próximo do conceito de lar que conhecia.
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Com um único movimento Choufon a jogou contra parede. Não havia saída, três paredes de pedra fria e um homem perverso seguindo seu instinto mais primitivo. Era o fim para Cecille.
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Cecille sem chance de se defender e muito menos de rogar misericórdia fechou os olhos rezando para que tudo acabasse rapidamente.
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Choufon investiu duramente contra Cecille que mordia os lábios para calar o choro. Contudo, ao invés de violá-la, Choufon desabara sobre ela. Só quando o sangue quente lhe lavou as costas é que Cecille percebeu o que se passava.
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O corpo caiu a seus pés como um fantoche. Um outro vulto ocupou o lugar de Choufon. Confusa entre o medo e a gratidão Cecille olhou para trás sem saber se devia sentir-se agradecida ou perdida de vez.
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Um homem vestindo apenas um sobretudo e calças rotas fitava Choufon. Cães famintos esperavam obedientemente atrás dele. Segundos intermináveis se passaram até Cecille se dar conta que aquela era sua chance de fugir, devagar ela foi caminhando rente a parede, se afastando ao máximo dos rosnados ameaçadores. Quando finalmente ela se convencera de que conseguiria escapar ilesa, os cães avançaram contra o cadáver. Como que saído de um transe profundo o homem então voltou seus olhos vorazes para ela.
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Em suas mãos ele tinha uma adaga como a que os policiais carregavam. Cecille percebeu que se desse mais um passo terminaria exatamente como Choufon. Aquele homem tão assustador e solitário era o infame vagabundo que matara cinco oficiais na corte dos milagres. Os rumores diziam que ele era louco e uivava para a lua vivendo como os cães que o seguiam como um líder.
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Cecille baixou a cabeça, ele chegou mais perto. Ele passou o rosto farejando e sentindo sua pele com a língua inclusive colocando o rosto por baixo de seu vestido e provando seu sexo com a boca para reconhecê-la, como um cão. Cecille tremeu, para sua surpresa seu corpo estava úmido naquele ponto e não era em razão da chuva. Ele veio por trás e se jogou por cima dela, forçando Cecille a ficar de quatro. Ele se roçava em Cecille, mordendo-a. Cecille podia sentí-lo procurando seu caminho para dentro dela até que a sensação de que tanto se acostumara lhe preencheu de uma só vez, acertando o centro do seu corpo.
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Nenhuma experiência anterior se comparava àquilo. Pela primeira vez ela era mulher e não prostituta, deixava-se currar sem impedí-lo. Cecille não queria que ele parasse, ela acendera-se com a idéia de amar como os cães se adoram. Flagara-se desejando-o e para sua surpresa implorou para que ele continuasse. Por fim ela não saberia dizer por quanto tempo eles ficaram se amando. Cecille e o andarilho dormiram nus e exaustos, aquecidos pelos cães.
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Quando Cecille despertou todos haviam desaparecido. Cecille se vestiu e ao encontrar sua cesta viu dentro dela a adaga que degolara Choufon. Olhando para os lados como se aqueles olhos misteriosos ainda a espreitassem ela pegou tudo e retornou para o único homem que não tentara possuí-la.
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A Loba e a Raposa
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A sujeira, a lama e a água da chuva cobriam Cecille da cabeça aos pés. Sua capa vermelha não atraía mais os olhos de ninguém, tão pouco qualquer um notava suas pernas claras do modo como estavam, cobertas de barro. Sem ser notada Cecille voltou e encontrou o padre em seu aposento, masturbando-se sobre suas roupas, com lágrimas nos olhos, pedindo perdão por tê-la traído.
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Não era só o exterior de Cecille que mudara, uma transformação mais profunda e secreta acontecera também em seu interior, algo que não podia ser visto, somente sentido. Cecille sentiu a lâmina fria, suja de sangue. Colocou em silêncio a cesta em cima da mesa e descalça se aproximou. Somente quando o gélido beijo do aço tocou seu pescoço é que ele a percebeu. Sem olhar para ela, com as mãos ainda em si, ele a ouviu ordenar:
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_Continua. Faz. Forte.
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O velho tentou se explicar, pedir perdão, a voz de Cecille o impediu.
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_Uma palavra e você morre.
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Ele a obedeceu.
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Ele esporrou longe, tendo uma crise de tosse em seguida. Sua saúde era fraca, sua carne decrépita e ainda assim o velho se deixava encantar. Ele podia ser avô de Cecille.
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O sangue corría rápido naquelas veias. Por isso quando Cecille lhe abriu a garganta, os jatos de sangue jorraram mais longe do que o gozo fraco, manchando os lençóis em que Cecille costumava dormir. Ela não precisava mais daquilo, de cama ou roupas, de se vender, de dinheiro. Acendeu religiosamente pela última vez suas velas e antes de partir, deixou que uma caísse no chão. A madeira podre daquele lugar queimava rápido, logo todo o cortiço estava em chamas.
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Do coração da corte dos milagres os lobos viram a fumaça se erguendo até o céu estrelado e uivaram para a lua cheia. Os cães acompanharam o coral lúgubre; era um momento de celebração para a matilha. Finalmente o andarilho encontrara sua companheira.
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quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Gênesis


No começo existia somente a dor, excruciante, como se sua alma tivesse sido partida ao meio. Devagar ele foi reconhecendo o mundo a sua volta. A sensação da grama úmida sob a pele, a brisa arrepiando os pelos e fazendo seu corpo tremer.
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Seus olhos arderam ao abrir-se pela primeira vez e assim que pararam de queimar ele contemplou o céu negro sobre si e ao levantar-se o homem descobriu-se em um campo aberto, sozinho. Sem lembrança alguma até aquele momento, fraco e confuso começou a caminhar em busca de abrigo. Então clarões rasgaram o firmamento revelando na distância um vulto e logo depois seguiu-se um rugido e tudo fez-se novamente trevas.
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Fora só um relance, o suficiente no entanto para Adão ver a forma daquele ser que lembrava a sua própria. Contudo, mais suave, menor e mais delicada. Com curvas sutis e não com a dureza de suas linhas. Os cabelos longos esvoaçavam ao sabor do vento e ela caminhava tão perdida quanto ele. Novamente aquela dor terrível retornou e o fez cair por terra gritando. Só então sua mão descobriu a enorme cicatriz embaixo de seu braço esquerdo. A última coisa que seus olhos viram antes de ser engolido novamente pela escuridão foi o rosto de Eva.
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Perdidos naquele mundo homem e mulher se descobriram e se amaram tendo a natureza para lhes ensinar. Viviam para se alimentarem e fornicar, como animais, ignorantes de tudo. Eva era serva de Adão e ele a dominava como o predador governa sua presa. A existência era perfeita, até a inocência começar a ouvir sussuros vindos de dentro da noite. Sonhos com outros gostos por coisas estranhas que eles não sabiam como descrever ao acordar. Aos poucos o paraíso começava a se tornar uma prisão de ostracismo. Ambos cada vez mais preferiam andar cada um sozinho e pensar por si, ao existir como um único ser dividido em dois.
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E durante esses passeios Eva descobriu uma bela árvore com um único fruto vermelho, rubro como sangue, guardada por uma criatura igualmente única. Uma serpente de escamas negras reluzentes e asas de couro, o ser mais encantador que Eva tinha conhecido até então. A víbora sibilante falou a Eva sobre segredos desconhecidos, sem revelar nenhum. Subitamente uma fome que a mulher nunca antes havia sentido desabrochou no interior de seu corpo, fazendo-a arder em febre e desejo. Contudo para saborear daquele fruto e conhecer seus segredos era preciso pagar o preço daquele monstro. Confusa, Eva fugiu.
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Enquanto Eva lutava contra sua curiosidade, Adão taciturno olhava para o horizonte, desgostoso. Uma tempestade desabava como a que tomava o céu quando ele nascera, todavia não fora Eva que os relâmpagos revelaram caminhando pela relva, se aproximando rápida. Os movimentos daquela mulher não eram submissos, eram felinos, selvagens. A cada nova explosão de luz ela se aproximava mais e ele a via, orgulhosa e sensual. Temeroso e atraído por aquela fêmea desafiadora, Adão saiu em disparada, temendo o que seria dele caso ela o alcançasse.
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Por algum tempo eles evitaram o que se revolvia em suas mentes e quanto mais tentavam esconder seus desejos, mais evidentes eles se revelavam. Até finalmente a situação se tornar insuportável e um sem consultar o outro partir para pela primeira vez agir obedecendo somente aos próprios anseios.
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Eva correu até a árvore e ao invés da serpente alada de outrora, ela encontrou a vigiar o fruto, um homem com asas negras, belo e terrível, poderoso, sedutor e malicioso. Ele apresentou-se como Samael e determinou que aquela era a hora de se livrar das correntes.
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Adão mal podia se conter, tomado de loucura ele dirigiu-se ao local onde antes a mulher surgira. Novamente ela apareceu, ainda mais bela, com garras e dentes afiados e olhos bestiais. Seu nome era Lilith assim ela dizia e em um bote ela derrubou Adão.
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Eva ajoelhou-se e experimentou o gosto do pecado em sua boca, o beijo sujo da morte que a fez sentir viva pela primeira vez. As mãos, dedos, língua de Samael queimavam e faziam Eva esquecer-se de tudo e desejar apenas ser usada por ele, se deixar levar pelo mistério. Eva afogava seus gemidos cravando os dentes no fruto proibido, vermelho e macio; Samael cravava os dentes em sua carne rósea e perfumada, batendo as asas conforme a violava impiedosamente.
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Adão abatido assistia excitado Lilith cavalgá-lo, movimentando freneticamente os quadris para frente e para trás. Enquanto fazia isso, Lilith rasgava o peito de Adão com as garras e mordia sua boca com tamanha voracidade que chegava a arrancar sangue.
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A tempestade crescia e rugia, o paraíso tremia em condenação enquanto homem e mulher entregavam-se a dêmonios. Eva a ser currada pelo anjo caído Samael, o mais próximo da Luz e o grande rebelde que dividiu as falanges celestiais.
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E Adão a ser vencido por sua primeira mulher, feita do mesmo modo que ele, que se negara a ser sua serva e a obeder a Deus, unindo-se a Samael.
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Embora Adão não se lembrasse de Lilith, para ela, a vitória em humilhá-lo na cópula quase recompensava o asco de deixar-se invadir por tão fraco e prepotente ser. Samael tentava engolir seu desprezo por Eva enquanto a fazia um filho, o primeiro assassino do mundo. Samael e Lilith juraram profanar o trabalho de Deus e pagariam qualquer preço para derrotar seu inimigo.
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Javé pode ter nos amado, mas quem deitou-se conosco foram os demônios.
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terça-feira, 24 de novembro de 2009

A Tragicomédia da Felicidade e do Sofrimento




Os sentimentos são inerentes ao ser humano, mas isso não significa que conseguimos entendê-los. Seu mistério alimenta a arte desde sempre. Mudamos o formato, porém a essência é igual. Sofremos e somos felizes e procuramos algo que nos provoque aquela sensação para revivê-la novamente.
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Contudo, somos mais toleráveis ao que nos fere. O sofrimento nos acompanha desde o nascimento, a felicidade por outro lado é algo mais raro e demanda maturidade emocional. Nos machucamos e aprendemos a nos fortalecer com as feridas. Ao menos assim pensamos. Passamos boa parte da vida obedecendo o sofrimento e então, finalmente o tempo colhe aquela coisa estranha que incomodava nossa alma e que nós nunca entendemos exatamente qual a razão para sentirmos isso.
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Enfim a constatação de que nossas escolhas não foram nossas e sim do medo de encarar o passado e de aprender que ele não é o profeta absoluto do futuro nos arrasa. Descobrimos que nossa coragem não passa de covardia e que repetimos o mesmo erro inúmeras vezes. Somos viciados na dor e no pensamento de que seremos em algum ponto revisitados pelos fantasmas de antigos traumas. Então a dor que também estava reprisada, porque nunca a encaramos de frente, se apresenta, inteira. E exatamente quando estamos prestes a conhecer o que é felicidade, compreendemos a verdadeira dor.
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É nesse momento que provamos do que somos feitos. Porque as emoções não nos governam, nós decidimos como vamos viver. Muitos voltam para o que consideravam seguro, tentando fingir a ignorância de outrora. Outros sucumbem e se deixam invadir pela sensação de sofrimento o abraçando e fazendo dele sua casa. Poucos, muito poucos encaram a vida sem pintá-la como o céu ou o inferno. No máximo um purgatório pessoal onde somos nossos algozes.
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O que quer que venha de fora não nos atinge tanto quanto o que nos acerta na alma.
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Ser feliz é um desafio e tanto para quem se atreve a viver plenamente. Renunciar certezas e redescobrir o mundo e a nós mesmos pode assustar, mas o risco de ser feliz é o melhor risco que há. Basta apenas fé, algo que nunca pensei que teria ou recomendaria. Fé em nós mesmos. Na vida. Na felicidade. No amor.
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Entre a Tragicomédia da Felicidade e do Sofrimento e o romance, eu prefiro o romance. A dois.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

SODOMA


Há algum tempo encontrei
Entre dois alvos montes o caminho
Escondido, escuro, úmido e quente
Teu esconderijo íntimo
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Tu te fizestes de rogada
Proclamando que os portões jazeriam selados
Me convidando paro o pecado natural
Jamais no entanto desisti de tomá-la
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Ao velar teu sono eu a sitiava
E com dedos sôfregos abria caminho
Em êxtase cobria de beijos tuas nádegas
Propondo uma trégua para teus medos
Alimentando qual a uma cadela teus instintos
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No sonho tu se desfazias e gemendo
Arcava-se e tremia em terremoto
E a última vergonha era ameaçada
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Derrubei os pilares morais e o pudor caiu por terra
Lidas e novas guerras nos pertencem agora
Ambos tomados de lascívia somos e uma nova era
Sem muralhas, nosso gozo alcança a glória
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Hoje faço-te minha por inteiro
Insultando a quem quer que se ofenda
Com nosso sexo, canto, poemas
Ejaculando fogo-branco, oferenda
Ungido por mim será para sempre teu corpo


domingo, 1 de novembro de 2009

PARLA


Se eu pudesse transformaria o mais belo mármore

Talhando a pedra fria em tua carne

Desenhando teus olhos de moura, de lince

E faria de seus cabelos a perfeita moldura

Para desenhar o rosto teu, minha maior obra-de-arte

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A boca maliciosa e pequena

As maçãs que trazem consigo a perdição dos homens

O nariz indolente e austero que me fareja

E enfeita a face do meu mais doce pecado

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Eu faria com todo cuidado

Seu pescoço como um altar

Sustentando o orgulho, a vida e a morte

Ligando-os para o corpo perversamente

Esculpido em silhuetas

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E os seios fartos me tomariam tempo

Pois me provocariam, mesmo presos

Ao frio elemento imóvel

Do qual estaria eu a produzir minha fêmea

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E os braços fortes e singelos

Que se abririam me convidando

Ao apelo dos teus flancos

Possuidores do ritmo certo

Das amazonas e das ninfetas

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O sexo me tomaria décadas

Para que eu pudesse somente rascunhar

A divindade que se esconde

Entre tuas coxas

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E descendo cada vez mais

Iria finalmente chegar aos seus pés

E delicadamente os faria

Da maneira como tu és

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Completa afinal minha obra

Tal Pigmaleão eu ordenaria

Que a estátua do meu amor

Me dissesse apenas “Eu te amo”

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Qual seria então o meu engano

Minha dor e meu desencanto

Ao entender que nenhum homem

É capaz de reproduzir a cria dos deuses

Lasciva, impura e delirante como um demônio

Bela, fascinante e inominável como um anjo

Para saciar seus prazeres

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O Sal da Terra


A minha cidade é um fracasso que vem sendo travestida de personagem. Mas querem que ela seja santa, musa, eu a quero como ela é: uma meretriz em um cabaré. Amaldiçoada como conta sua origem, inútil, indecisa, perdida, mata virgem e puta desgraçada. Violenta e vagabunda, cemitério de elefantes e maternidade de viciados, playground de exilados saudosos e felizes por não se misturar. Paraíso de férias, tédio diário, terra prometida. Sodoma, Babel e Gomorra em uma só. Aqui não existe gente, há platéia que assiste a própria vida desfilar, sem graça, se arrastando, sem saber o que fazer e sem coragem pra morrer. Ultrajante e que nos insulta com o seu coração pulsando e cheio de esperança. Sonho prostituído e ainda assim, belo e idiota como só as utopias mais doces e poéticas podem ser. Uma piada, rimos e mostramos as nossas bocas desdentadas, podres e fétidas para a vida. Muitos são pobres, os ignorantes são felizes, poucos fazem alguma coisa, e desses quase nenhum vale merda nenhuma.
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Toda segunda tem circo na câmara, uma vez por ano temos o nosso carnaval de caubóis, de quatro em quatro anos acreditamos em nós mesmos e somos os nossos piores inimigos há mais de cem anos. Coisa que não deveria ter sobrevivido, aborto falido, orfão de São Paulo, sentinela cega que logo não terá nada para guardar. Isso é onde eu moro, assim é minha cidade, Itararé. Bem-vindo aos olhos de um filho da terra.

sábado, 17 de outubro de 2009

HILDA HILST

DO DESEJO
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Quem és? Perguntei ao desejo.
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.
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I
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Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.
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II
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Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de máscaras.
Que desenhos e rictus na tua cara
Como os frisos veementes dos tapetes antigos.
Que sombrio te tornas se repito
O sinuoso caminho que persigo: um desejo
E que escura me faço se abocanhas de mim
Agonias de grandes espessuras, embaçadas luas
Facas, tempestade. Ver-te. Tocar-te.
Cordura.
Crueldade.
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III
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Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosses nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.
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IV
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Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer? E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vêm sofomanias, adornos
Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?
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V
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Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quanto tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Este da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Saber por quê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.
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VI
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Aquele Outro não via minha muita amplidão.
Nada LHE bastava. Nem ígneas cantigas.
E agora vã, te pareço soberba, magnífica
E fodes como quem morre a última conquista
E ardes como desejei arder de santidade.
(E há luz na tua carne e tu palpitas.)
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Ah, por que me vejo vasta e inflexível
Desejando um desejo vizinhante
De uma Fome irada e obsessiva?
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VII
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Lembra-te que há um querer doloroso
E de fastio a que chamam de amor.
E outro de tulipas e de espelhos
Licencioso, indigno, a que chamam desejo.
Não caminhar um descaminho, um arrastar-se
Em direção aos ventos, aos açoites
E um único extraordinário turbilhão.
Por que me queres sempre nos espelhos
Naquele descaminhar, no pó dos impossíveis
Se só me quero viva nas tuas veias?
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VIII
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Se te ausentas há paredes em mim.
Friez de ruas duras
E um desvanecimento trêmulo de avencas.
Então me amas? te pões a perguntar.
E eu repito que há paredes, friez
Há molimentos, e nem por isso há chama.
DESEJO é um Todo lustroso de carícias
Uma boca sem forma, um Caracol de Fogo.
DESEJO é uma palavra com a vivez do sangue
E outra com a ferocidade de Um só Amante.
DESEJO é Outro. Voragem que me habita.
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IX
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E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubilta-te da memória de coitos e de acerto.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
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X
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Pulsas como se fossem de carne as borboletas.
E o que vem a ser isso? perguntas.
Digo que assim há de começar o meu poema.
Então te queixas que nunca estou contigo
Que de improviso lanço versos no ar
Ou falo de pinheiros escoceses, aqueles
que apetecia a Talleyrand cuidar.
Ou ainda quando grito ou desfaleço
Adivinhas sorrisos, códigos, conluios
Dizes que os devo ter nos meus avessos.

Pois pode ser.
Para pensar o Outro, eu deliro ou versejo.
Pensá-LO é gozo. Então não sabes? INCORPÓREO É O DESEJO.
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Os dez primeiros poemas do livro que ganhei de presente de aniversário da minha mulher. Fiquei tão apaixonado que resolvi compartilhar aqui um pouco dessa leitura deliciosa. Hilda Hilst é a minha mais nova descoberta, o combustível novo que alimenta o meu desejo por ela - a fonte inesgotável do meu prazer. Você, a quem devoro como lava, e sopro, como o vento o pó. Você é o meu maior presente.

domingo, 27 de setembro de 2009

Bondade

Eu sou a voz que você ouvia quando criança
O seu amigo invisível, o monstro debaixo da cama
Seu anjo da guarda, a voz em sua cabeça sussurrando
Aquele que está com você no escuro
Que conhece o seu passado e sabe que você não tem futuro
O primeiro e o último a te mostrar e tirar o mundo
Que balançou seu berço e cava o seu túmulo
Seu melhor amigo, seu inimigo que você deseja mais
Você conhece os meus sete filhos, vocês costumavam brincar juntos
Quem te inspira os sonhos mais absurdos
E orquestra os piores pesadelos
Que te salva do abismo
Que arranca as suas asas
E o único a te pegar quando você cai
Em quem você deu o seu primeiro beijo
Quem te ofereceu o prazer mais doce
E te faz sofrer a dor mais angustiante
Sim, eu sou o primeiro amante
Aquele que você quer esquecer e sente mais saudade
Justo quem você julgava tão mal te mostrou mais bondade

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A nossa trilha


Você que é forte e tem as rédeas da sua vida em mãos, cheia de cicatrizes, que foi se marcando com o tempo e alimentou medos agora comigo se desfaz dessa pele de lobo e volta a ser cordeiro. Pois é dobrando-se à minha vontade, subjugada e deposta do domínio sobre si própria, posse, não mais senhora, assim é que te torno livre. Porque te protejo e te castigo, faço-te mulher e torno mesmo o seu lado masculino sodomita, quero você minha, não mais sua. Pois é com a sensibilidade de Safo com que te exploro e sadicamente te torturo, para ser o seu deus que molda com as mãos sua Eva e deita-se com ela. Quero despir seu corpo e alma, para te fazer voltar a ser animal em cio, selvagemente adestrada para dar prazer, com a servidão e fidelidade de uma cadela. Vou te aliciar com palavras sujas e te humilhando me banho junto no lodo para mostrar que não importa como, nós somos o que somos e somos dessa maneira imperfeita, perfeitos um para o outro.
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E assim como serei o mais cruel, estupro consentido, porém sempre violento, serei o mais carinhoso dos seus amantes. Te dizendo as palavras que seus ouvidos sempre mereceram, mas que você procurou em outras bocas. O carrasco e o libertador, divino e profano, todos os papéis havemos de representar no palco dos lençóis porque em nós há uma legião de personagens que querem vida. No entanto só com você os meus demônios querem contracenar. E no inferno da carne o paraíso da alma reside, pleno por segundos eternos. E reduzidos na exposição dos sentidos excitados e abatidos, dos corpos, das almas que os governam, da razão que a própria razão desconhece, do mistério de amar, nos encontramos. Não existindo mais para onde ir quando se alcança o infinito, retornar a essa sensação redescobrindo os signos de cada tempo da nossa história será como se fosse a primeira e a última vez. Seremos felizes como somos agora e como fomos desde o começo e ainda assim, seremos muito mais felizes do que a língua dos anjos pode profetizar.
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Porque não há mapas a se seguir, mestres a consultar, só a nós cabe o direito e o insulto de ousar, e nós, humildemente o fazemos da melhor maneira possível. Toda a punição advinda dessa trilha será bem-vinda, porque o gozo é incomparavél, inesquecível.

domingo, 23 de agosto de 2009

Gargantua


O criminoso sobe arrastando-se pelos degraus até o cadafalso e lá na forca profere suas últimas palavras. Assim então o chão se abre como se o próprio demônio viesse buscar seu filho que expira como um pêndulo bailando sem ritmo no ar. A árvore onde Judas tirou sua vida retorceu-se em agonia por servir de remição para tal covarde. Desde então só as aves de mau agouro e corvos nela se empoleiram em seus galhos profanos. E a corda ainda está nela presa.
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As cabeças se amontoam na cesta a cada golpe da guilhotina e do machado do carrasco e assim a aristocracia e a realeza já não parecem mais tão imponentes. E quanto mais se humilha a elite na hora da morte, mais a plebe grita e comemora pela revolução burguesa que muda apenas os reis e bispos por outras peças, mas que continua usando os peões da mesma forma que seus antecessores.
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Com as próprias mãos enforcamos nossas vítimas enquanto dormem, tomados pelo ódio. Enlevados de adoração, damos os mais belos colares de diamantes para conquistar o coração da pessoa amada. Ou ao menos na esperança de comprar afeto. É por coleiras que domamos e puxamos os animais por nós subjugados, os cães, os corcéis, o gado e os escravos.
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A criança com sono se enlaça no pescoço do pai quando é levado em seu colo para cama. O afogado que é resgatado das águas agarra-se tal qual a criança agarra-se ao pai àquele que o salva.
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O soldado na luta bestial contra o inimigo, sem balas, pedras ou facas, estrangula o oponente e depois é condecorado e feito herói com uma pesada medalha que lhe pesa no peito, parecendo-lhe mais um fardo do que uma glória. No entanto, para o atleta que vence com sacrifício os adversários, nada lhe é mais recompensador do que os louros e o ouro reluzindo sobre seu coração.
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Os beijos dos amantes que escapam dos lábios precisam passar pelo pescoço, pela nuca, para anunciar a todo o corpo os prazeres que virão. O gozo que se inicia onde os sexos se misturam e se fundem escala a medula espalhando o aniquilamento e o ópio da carne pelos membros entorpecendo a alma.
As confissões feitas ao pé do ouvido são as que os apaixonados trocam, do mesmo modo os traidores, os mentirosos e os fomentadores de intriga despejam veneno no ouvido daqueles que enganam, pobres os que confiam no julgamento de serpentes. Menos perigoso seria se tivessem uma víbora envolta engasgando-lhe a fala.
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O assassino que cobre a boca daquele que lhe foi encomendado dar parte, corta-lhe a garganta fazendo uso da adaga. Da mesma maneira o faz com sutilidade o espinho que preso agarra-se sufocando a quem se acha seguro enquanto se alimenta.
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Dizia-se que para garantir que um defunto não sofresse de vampirismo era necessário separar o corpo da cabeça.
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A cabeça, o paraíso onde a razão impera é o lar das idéias e dos estratagemas e só através dessa ponte, dessa escadaria é que se liga ao corpo, terra dos prazeres e sofrimentos, das sensações e sentimentos, volúvel, imprevisível.
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Nada é mais belo do que os ombros nus de uma mulher e de sua cabeça erguida pelo pescoço orgulhoso por sustentar algo tão belo, enigmático, perigoso e feminino quanto uma esfinge, o rosto de uma fêmea consciente de seu poder.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

The Seven Deadly Sins - Os Sete Pecados Capitais

Luxúria
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Vaidade
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Avareza
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Preguiça
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Inveja
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Ira
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Gula
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Em qual deles você vai se deixar cair em tentação?

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Mulher & Vida



E no entanto a mulher, com lábios de framboesa
Coleando qual serpente ao pé da lenha acesa,
E o seio a comprimir sob o aço do espartilho,
Dizia, a voz imersa em bálsamo e tomilho:
- "A boca úmida eu tenho e trago em mim a ciência
De no fundo de um leito afogar a consciência.
As lágrimas eu seco em meios seios triunfantes,
E os velhos faço rir com o riso dos infantes.
Sou como, a quem me vê sem véus a imagem nua,
As estrelas, o sol, o firmamento e a lua!
Tão douta na volúpia eu sou, queridos sábios,
Quando um homem sufoco à borda de meus lábios,
Ou quando os seio oferto ao dente que o mordisca,
Ingênua ou libertina, apática ou arisca,
Que sobre tais coxins macios e envolventes
Perder-se-iam por mim os anjos impotentes!"

As Metamorfoses do Vampiro - primeira estrofe
Charles Baudelaire



Ela é misteriosa como as mulheres ciganas, tão cheia de segredos quanto a esfinge
Olhos quais os de uma moura, rasgados e desafiadores tais quais os de um lince
Sabe como a amante e a meretriz as artes secretas da sedução e do amor
Tão destemida, profana e inerente como as deusas da fertilidade pagãs
Conhece o futuro de um beijo como a mais sábia das sibilas
Me prende entre as coxas, a minha mais feroz inimiga
Sussurrando palavras mágicas dentro de meu ouvido
Deitando fogo em carne no meu leito, me servindo
À pira dos hereges, o fogo das feiticeiras
Nada queima tanto quanto sua pele
Me contaminando com seu desejo
Ardendo fico, doente e em febre
Envenenado por seus beijos
Dançarina do ventre
Serpente que baila
Enguia úmida que
Ao toque se abre
Flor e rio, ninfa
Vítima minha
Mulher

Cabelos vivos, que valsam com a brisa, medusa de olhar vítreo
Transformando aos meus olhos todas as outras em manequins ínfimos
Escravizando o meu desejo ao seu corpo quente, me viciando em seu cio
Amazona que aprisiona o corcel dentro de si, serva que é senhora no íntimo
Cantando gemidos, dançando com os quadris, coleando, osculante, perdidamente
Te cobrindo, currando, fornicando, cópula, cruzando juntos é que nos descobrimos
Enigma que se desfaz, profecias que não se cumprem, delírios insanos e conscientes
Guerra só de perdas e derrotas que somam gostos selvagens, batalhas de morte e vida
Ameaças deliciosas, armas de prazer, transformações bestiais, festivais de gozo e gritos
Feridas inesquecíveis, sensações plenas, certeza de que encontramos o cúmplice perfeito
Aos nossos crimes de volúpia, assassinatos de luxúria, condenados a não se satisfazer nunca
Eternamente implorando por mais, imponentes e orgulhosos de nossa pena, queremos pagá-la
Rastejando de fronte erguida, cuspindo na face divina, desafiando e provocando a todos por toda
Vida


terça-feira, 14 de julho de 2009

Incubus

Oh, Incubus maldito!
Derrama-te inteiro em meu ventre
Verbum caro factum est!
Materializa a palavra impura
Profana meu corpo indecente
Aspira minh'alma perdida
e prende minha pele em teus dentes.
Verbum caro factum est!
Teu verbo transborda em carne
E perverte as preces em grito
Penetra a cova macia
Oh, Incubus maldito!
Tua palavra me faz carne
E o coito segue glorioso
Verbum caro factum est!
Despeja espesso em mim
O verbo fluido e gozoso!

POSTADO POR NINA


terça-feira, 30 de junho de 2009

Odisséia


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O rei Odisseu, que com a inspiração de Atena engendrou o Cavalo de Tróia decidindo assim a guerra, demorou dez anos para voltar a seu reino. Sua mulher, há vinte anos sem ter notícias do marido, continuou a se manter fiel, fugindo dos pretendentes que queriam através dela alcançar o poder. Todo mito, por mais épico e fantástico que seja, só sobrevive porque as pessoas podem entendê-lo em qualquer tempo ou lugar. Os sentimentos não foram privilégio só dos gregos e romanos: cada um ao seu modo interpreta os vícios e as virtudes dos personagens, deuses, monstros e heróis mitológicos.
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Não sonho com Ìtaca, mas sonho em voltar para os braços da minha mulher. Sinto sua falta tanto quanto Orfeu, que ao perder a sua amada Eurídice, desceu aos infernos na tentativa de salvá-la. A realidade também nos oferece oportunidades de realizar feitos fabulosos, amar sem medo e entregarmo-nos por completo é tão digno de ser lembrado quanto os Doze Trabalhos de Hércules.
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E nesse momento quero cantar a minha saudade. Toda noite quero me deitar com a minha mulher e não culpo Psique por querer contemplar Eros. Não há nada que meus olhos queiram mais do que assistir a minha musa mais bela e encantadora do que as Nove Musas de Apolo, a minha Afrodite dormir.
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Os dias me cansam tanto quanto o fardo de Atlas, porque Cronos parece gostar de me fazer esperar.
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Mas nem mesmo os mitos podem se comparar à felicidade, à alegria, à paz que sinto quando estou com você. Nem as Cárites, nem os deuses compreendem esse mistério, esse nosso segredo, esse sentimento que talvez seja o mais raro e o mais bonito que eu hei de experimentar por toda a minha vida. É ir ao paraíso sem precisar morrer.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

À Pequena Esfinge


Os sentimentos são cavalos selvagens. Inerentes e inevitáveis, belos como o amanhecer e terríveis como a tempestade. Não importa o quanto se esforce, é impossível livrar-se dos dolorosos e preservar somente os agradáveis. É da nossa natureza conviver com todos os tipos de experiência e a incapacidade de sentir é sempre mais perigosa do que de se deixar levar pelos sentimentos. Porque podemos aprender a vigiá-los, mas não podemos criá-los. Ou somos capazes de nos emocionar ou não. O quanto antes encararmos tal fato, mais cedo podemos descobrir como lutar contra os nossos demônios e melhor nos conhecermos. É preciso que sejamos o Cérbero de nossos Hades. Só através do confronto o portão para selar o que não deve prevalecer pode se manter hermeticamente fechado: olhando para o abismo tendo ciência que ele nos observa de volta.
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Antes de praguejar contra a escuridão acenda uma vela, mas esteja preparado para o que se esconde na escuridão. Ninguém está sozinho no escuro. É necessário ser muito destemido para lutar contra o monstro interior sem se tornar um; não há vitória jamais, no máximo uma trégua forçada. O que não nos destrói nos fortalece e a sabedoria para aceitar o que somos nasce de tais batalhas. Somos nosso pior inimigo, conhecemos nossos pontos fracos, mas só um pode ser capaz de perdurar - ou os sentimentos ou a razão.
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Eu arranquei as garras, os dentes e as asas do dragão mesmo sabendo que iriam crescer novamente, enquanto viver ele é uma ameaça. Mas desde que eu seja capaz de acorrentá-lo e não o contrário, serei feliz. E só posso ser feliz amando, o inferno ao tempo que fica mais distante se incendeia mais facilmente.
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A intimidade é algo sublime por permitir uma confiança em um nível que só se pode possuir com quem se ama e ninguém mais. No entanto permanecemos desarmados e vulneráveis aos sentimentos, dos mais elevados aos mais mesquinhos. E não temos o direito de atacar qualquer pessoa pelo que sentimos e ceder a esse pecado é inquestionavelmente um ato de covardia. Contudo, assim como unicamente Afrodite aplacava a fúria de sangue de Ares, só a minha mulher pode me ajudar a ser uma pessoa melhor. Quem deve lutar contra o meu pior sou eu, porém esse combate se tornou extremamente mais fácil desde que eu tenho você.
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Eternamente seremos um mistério um para o outro e eu quero morrer te decifrando. Porque apesar de cada ser humano ser um enigma inclusive para si mesmo, você será a pessoa que há de me conhecer como ninguém e a recíproca é verdadeira. Estou mergulhado em sua alma, tão fundo e ligado quanto nossos sexos fundidos na cama. A vida é mais intensa com a sua cumplicidade minha Pequena Esfinge, e muito mais completa.
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Eu te amo e serei grato ad aeternum pelo seu amor e compreensão.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Why So Serious?

SARCASMO
sar.cas.mosm (lat sarcasmu)
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1 Ironia ou zombaria mordaz e cruel.
2 Figura de retórica, que consiste em empregar esta espécie de escárnio para afrontar ou ofender pessoas ou coisas.
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CINISMO
ci.nis.mosm (gr kynismós)
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1 Sistema filosófico dos cínicos.
2 Descaramento, desfaçatez, desvergonha, impudência. Antôns (acepção 2): candura, reserva, pudor.
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Se o bufão não fizer o rei rir, morre. Mas se o rei soubesse quem inspira o bufão, ele se mataria.
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Não há virtude em ser ingenuinamente sincero. É preciso ser sincero, sem ser estúpido. Ser corajoso com a precaução do covarde. As palavras não precisam ser tratadas como serviço braçal, a marretadas. Em uma língua habilidosa, elas podem se tornar flores e venenos. Porém há algumas coisas que não podemos deixar de dizer sinceramente, olhando nos olhos, de todo o coração.
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Um bufão antes de mais nada é um encantador de serpentes. Porque ele carrega uma víbora atrás dos dentes que pode tanto trazer o paraíso como a ruína. E o seu beijo carrega a morte e a vida.
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Sua comédia é sempre uma máscara trágica. E a sua tragédia esconde sempre um gozo. Por que explicar se podemos confundir?

terça-feira, 21 de abril de 2009

MARIA


"Ave Maria cheia de Graça
o Senhor é convosco
Bendita sois vós entre as mulheres
Bendito é o fruto de vosso ventre..."
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. MARIA .

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Novamente ela rumava para o coração do bosque. A lua beijava seus pequeninos pés que ao andar, pareciam acariciar a grama molhada com a suavidade de seus passos. Não era dessa vez o desespero de ser obrigada por seus pais a se casar com um homem que ela não conhecia que a levava para o refúgio entre as feras: a razão de ela abandonar seu leito no meio da noite era a esperança de reencontrar o anjo que a visitou pela primeira vez e que prometeu revê-la naquela mesma clareira. Ele a visitava em seus sonhos e a chamava. Antes de Maria encontrá-lo, tudo que habitava suas noites eram horrendos pesadelos com cães cobrindo cadelas no cio e sendo apedrejados por crianças e a angústia da futura violação ao mesmo modo animalesco pelo homem que seus pais haviam escolhido para ser seu marido.
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Até a noite em que permanecendo em vigília, Maria ouviu sons de animais enraivecidos imitados por vozes humanas e seguindo-os ela chegou à porta entreaberta da alcova de seus pais. Em meio à escuridão, Maria demorou a reconhecer quem eram aqueles que se comportavam como os personagens dos seus pesadelos, até descobrir os rostos de seu pai e sua mãe nas figuras mal iluminadas. Um grito morreu na palma da mão que Maria pôs sobre a boca para não denunciar sua presença. Ela afastou-se chocada, com os olhos enevoados por lágrimas, tremendo. Mais revoltante do que a cena em si, fora perceber que ao contrário do asco que Maria imaginava que uma mulher nessa situação devesse sentir, sua mãe parecia em êxtase ao ser violentamente currada por seu pai. Estavam tão entregues e envolvidos em sua fornicação, inebriados pelo prazer, que nem perceberam sua filha os observando. Maria perturbada fugiu de casa e correndo a esmo adentrou a floresta.
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Talvez inconscientemente ela estivesse sendo guiada por ele para encontrá-lo. Assim, entre lágrimas e soluços aconteceu o encontro com Gabriel. Sua voz, seu toque, seu hálito quente, seu calor a acalmaram e trouxeram paz para o espírito revoltado da menina que estava prestes a se descobrir uma mulher. Maria partiu dali com o gosto de rosas em sua boca e a promessa de revê-lo. Ciente de ser a escolhida para gerar o seu filho.
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Desde então suas noites se transformaram de um iminente suplício a uma espera ansiosa, em descoberta do próprio corpo. Os sonhos de Maria derramavam orvalho entre as suas pernas que se comprimiam e se roçavam ao se imaginar na mesma posição de cadela que sua mãe ficava todas as noites, para ser invadida pelo amor divino. E Maria descobriu o doce sabor dessa fonte quente e eternamente úmida que residia em si, colhendo cada vez mais fundo com os dedos a seiva que escorria abundante. Enquanto as trevas não caiam sobre o mundo, Maria tratava de se mostrar alegre e entusiasmada para o dia de seu casamento. Sua alegria mascarava a origem de seu verdadeiro prazer, toda noite ela se banhava e perfumava-se para encontrar o seu prometido, e dormia gemendo.
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Então aconteceu. Ao anoitecer, uma impiedosa tempestade se abateu contra a cidade e nela, carregada nos ventos a voz inconfundível dele avisou-a para se preparar. No momento em que os céus cessassem de açoitar a terra, ela deveria sair. Obediente ela partiu quando as nuvens pararam de derramar sua fúria. Tão rápida andava ela que parecia flutuar, ao invés de caminhar pelas trilhas lamacentas e logo, sob o luar que surgira ela alcançou a clareira onde outrora havia conhecido Gabriel. O mundo estava calado e frio e um arrepio se espalhou como um sopro sobre a sua pele. A brisa leve cresceu varrendo o descampado e com o ritmo das batidas de um coração, o som do bater de enormes asas aproximou-se, no entanto nada via Maria. Porém, mesmo sem vê-lo, Maria sabia que era ele, podia sentir em seu corpo que respondia excitado a todos os estímulos. Cada vez mais severa se tornava a ventania e sem poder se segurar, Maria foi jogada contra a relva, machucando seus joelhos. Ao tentar se levantar ela sentiu algo a prendendo pela cintura, por trás. As mãos queimaram sua pele e ao invés de dedos, ela sentiu cravar-se em sua carne garras ávidas por mantê-la dominada, como um predador imobilizando sua presa. Era surpreendente como aquele tratamento brutal a estimulava.
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Suas roupas foram feitas em farrapos em pleno ar e sem esperá-la, de uma só vez a luz quente, ardente, sólida e macia se enterrou nela fazendo-a gritar. Maria sentiu suas entranhas se revolvendo, estranhando o corpo que a invadia e a machucava, forçando-a a se acostumar para recebê-lo na intimidade de seu ventre. A dor era deliciosa, o sangue queimando, misturado ao prazer, escorria por suas pernas claras. Seus cabelos eram puxados para trás, como as rédeas nas mãos de um domador que se depara com um corcel selvagem. Ao redor, todas as bestas assistiam a união entre o céu e a terra personificada no corpo daquela mulher e uivavam, gemiam, latiam, silvavam, cantavam e urravam em adoração.
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Maria sentia como se dentro dela houvesse uma brasa incandescente que fazia seu corpo se retorcer e a sensação de desespero e prazer aumentava na mesma medida, uma escalada que a alucinava. A voz, pois tudo que ele era se resumia em som, gemia em seus ouvidos, ofegando e a lambendo e mordendo. Marcando-a, como os cães fazem ao cobrir suas fêmeas.
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Antes de desmaiar, do universo se tornar negro e vazio, Maria olhou para a poça de chuva próxima e no reflexo do espelho d’água vislumbrou por um segundo Deus através de Gabriel, gozando vida dentro de seu corpo. Bradando aos céus e se desfazendo em luz.
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