terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Píton


Sou serpente e mastigo entre os dentes
bocas, línguas e clitóris

Sou víbora e despejo veneno sobre coxas e seios

Respiro gemidos alheios
Me aqueço roubando o calor de outros corpos
Me escondo dentro das mulheres

Mordendo-lhes o pescoço
Até sangrar
Sugando a vida e o prazer

E em um abraço constritor
quebro-lhes o corpo
fazendo suas almas
gozarem

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Primavera


O vento devagar lambe a pedra
e a molda, invisível, transformando
o bruto em belo

E assim, sem pressa, brinca com a água salgada
e cria ondas que podem engolir praias
e destruir castelos

Mais além, faz carinho no jardim
e pétala por pétala, à flor da pele
causa arrepio, causa medo, calafrio
depois murmura e cala, e por fim
quando parece que não vai acontecer mais nada
aprendemos que simplesmente
nascera um jardim em outro lugar

Quem sabe no deserto de pedras lambidas pelo ar
Ou em uma ilha que há de afundar no mar
O importante é saber fazer tudo florir
E aprender a amar

sábado, 18 de dezembro de 2010

No harm done, No harm taken


Às vezes é mais fácil arranjar um pretexto
Mesmo que assim, sem jeito, sem nexo
Tem coisas que só se acalmam
com sexo
.
E a chuva nos molha de um jeito ou de outro
Sabemos que é uma busca por ouro de tolo
No entanto, não conseguimos deixar
de mergulhar no mar revolto
.
E assim é, E agora José?
hei de brindar o que vier
sem jamais me arrepender do passado
que estará para sempre enterrado
em cova rasa
.
e se o vento te balançar os cachos
saiba quem é que há de estar ao teu lado
só há uma ninfa, só há um sátiro

domingo, 12 de dezembro de 2010

Ao Gigante Adamastor


Não luto contra o tempo
Prefiro o momento
Não uso de argumento
Pra justificar a felicidade
Eu a crio, a busco, a presenteio

Não comparo, não invado
Não insulto, não desfaço
Não uso as ruínas alheias para elevar meus sentimentos
E a cada castelo de areia erigido, mesmo que efêmero
É para sempre meu, inclassificável, portento

E se o mar vence meus sonhos e minhas esperanças
com tempestades de ignorância
vou naufragar em outras praias
sem esquecer dos momentos vividos
com Vênus

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Lupino

Fiz da minha caça, troféu e templo
E de senhor passei a servo
Guardei as armas e marquei território
Mas uma vez que a besta nos mostra os dentes
Não há como ser diferente

Parti, queimando tudo que ficara para trás
E ao me condenar a liberdade
Longe de quem nunca quis me afastar, mas que sempre esteve
prestes a ser retalhada pela alcatéia alvoroçada

Acabei por vê-la finalmente
Sendo despedaçada por velhos coiotes
E tal visão fez o lobo em mim
Ganhar uma nova chance

Não me sinto feliz, nem bem
Mas vivo, pronto para a caçada
E a idéia me saliva a boca
Mesmo que talvez o coração não sinta mais nada

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Trecho de PULP, último livro de Bukowski


SOLITÁRIO? DEPRIMIDO? ALEGRE-SE. LIGUE PARA AS NOSSAS LINDAS GAROTAS. ELAS QUEREM FALAR COM VOCÊ. PAGUE COM O SEU CARTÃO DE CRÉDITO MASTER OU VISA. FALE COM KITTY, FRANCI OU BIANCA. TELEFONE 800-435-8745

Apareciam as meninas. Kitty era a melhor. Tomei um gole de uísque e disquei o número.
_ Sim? - era uma voz de homem. Parecia mau.
_ Kitty, por favor.
_ Você é maior de 21 anos?
_ Maior - eu disse.
_ Master ou Visa?
_ Visa.
_ Me dá teu número e data de validade. Também endereço, número de telefone, identidade e carteira de motorista.
_ Ei, como vou saber que você não vai usar essa informação pra você mesmo? Quer dizer, me fodendo. Usando a informação pra seu próprio lucro?
_ Ei, meu camarada, quer falar com Kitty?
_ Acho que sim.
_ A gente anuncia na televisão. Estamos neste negócio há dois anos.
_ Está bem, deixa eu pegar os cartões na carteira.
_ Camarada, se você não quer a gente, a gente não quer você.
_ Sobre o que a Kitty vai falar comigo?
_ Você vai gostar.
_ Como sabe que eu vou gostar?
_ Ei, camarada...
_ Está bem, está bem, espere um momento...
Dei a ele a informação. Houve uma pausa longa, enquanto conferiam o meu crédito. Aí ouvi uma voz.
_ Fala, gostoso, aqui é Kitty.
_ Alô, Kitty, meu nome é Nick.
_ Oooh, sua voz é tão sexy! Já estou ficando tesudona!
_ Não, minha voz não é sexy.
_ Oh, você é tão modesto.
_ Não, Kitty, não sou modesto...
_ Sabe de uma coisa? Eu me sinto tão perto de você! Parece que estou enroscada, sentada no seu colo, olhando nos seus olhos. Tenho ollhos grandes e azuis. Você está bem perto, querendo me beijar.
_ Isso é bobagem, Kitty. Estou aqui escutando a chuva cair e mamando meu uísque escocês.
_ Ouça, Nick, precisa usar um pouco a imaginação. Vamos tentar e você vai ficar surpreso com o que pode conseguir. Não gosta da minha voz? Não acha ela um pouco... ah, sexy?
_ É um pouco, mas não bastante. Parece resfriada. Está resfriada?
_ Nick, Nick, meu garoto. Eu sou quente demais pra ficar resfriada!
_ Como?
_ Eu disse que sou quente demais pra ficar resfriada!
_ Bem, parece resfriada. Talvez fume demais.
_ Eu só fumo uma coisa, Nick!
_ O que, Kitty?
_ Você não imagina?
_ Não...
_ Olhe pra você mesmo, Nick.
_ Tudo bem.
_ Que está vendo?
_ Bebida. O telefone.
_ Que mais, Nick?
_ Meus sapatos...
_ Nick, que coisa grande é essa se projetando de você enquanto fala comigo?
_ Ah, isso? É minha barriga!
_ Continue falando comigo, Nick. Continue ouvindo minha voz, pense em mim no seu colo, o vestido levantando, mostrando meus joelhos e minhas coxas. Eu tenho cabelos louros, compridos. Pense nisso tudo, Nick, pense em...
_ Tudo bem...
_ Tudo bem, que está vendo?
_ A mesma coisa: telefone, meus sapatos, minha bebida, minha barriga...
_ Nick, você é mau! Me dá vontade de ir aí e lhe dar uma surra. Ou talvez deixe você me dar uma surra!
_ Quê?
_ Me bate, me bate, Nick!
_ Kitty...
_ Sim?
_ Me desculpa um momento? Preciso ir ao banheiro.
_ Oh, Nick, sei o que vai fazer! Mas não precisa ir ao banheiro pra fazer isso, pode fazer no telefone, enquanto fala comigo!
_ Não dá, Kitty. Preciso mijar.
_ Nick - ela disse -, pode considerar nossa conversa terminada!
Desligou.

domingo, 21 de novembro de 2010

Soneto de separação

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Vinícius de Moraes

sábado, 20 de novembro de 2010

I Am - DIO


I think I'm through with
just pretending
Knocking at a door
That I've been through before
Congratulations - at last
you've seen my light
Now it's you against the night

I think I'm never coming
after - after all
Now I become the cat
Who always lets you know that

I Am I Am - stronger than the wind
I Am I Am sin
I Am I Am - stronger without you
I Am

For all the words gone unspoken
Silence isn't gold
Or the story's never told
Investigation - at last
I've found my light
And we shine

So now I'm like the cat
Who always tells you this that

I Am I Am - stronger than the wind
I Am I Am sin
I Am I Am better without you
I Am

I think I'm way outside illusion
Breaking down the door
That locked me in before
Congratulations - now
that you've seen my light
- after all

And when I become the cat
I'll always let you know that

I Am I Am - stronger than the wind
I Am I Am sin
I Am I Am - stronger without you
I Am

I Am I Am - brighter than the sun
I Am I Am everyone
I Am I Am - better without you
I Am

I Am I Am - stronger than before
I Am I Am more
I Am I Am - ready to go on
I Am

domingo, 7 de novembro de 2010

Rélogio de não marcar Horas


o beijo dos cegos
dedos e corpos
sejam minha língua
pra te dizer

o que minha alma fala
em gritos e urros, falo
mais alto, em silêncio
fazendo cafuné em seus cachos

quero e me perco de desejo
com você em meus braços
dormindo em meu peito

sempre feliz como agora
perdendo ponteiros
esquecer as horas

sábado, 16 de outubro de 2010

HR Giger





http://www.hrgiger.com/frame.htm

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Bom Conselho - Chico Buarque


Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança

Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar

Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio o vento
Na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O Lobo do Brasil é o Brasileiro


O Brasil é um país em coma, insensível, viciado em placebos, em promessas e fórmulas prontas. Uma nação anestesiada que abusa de si própria, que se violenta e se vende, que faz de tudo para roubar de sua própria mesa migalhas cada vez maiores. Somos os nossos próprios ladrões, nossos próprios vilões, seja por cometer os crimes, negá-los, evitá-los ou fingindo com a demagogia dos prolixos vazios fazer diferença. Muitas palavra, ações inócuas. Ainda somos os mesmos e no entanto, nos tornamos piores. Porque somos mestres na auto-enganação, nos iludimos com uma fé cega de que tudo vai mudar por si só. Somos espectadores de nossas vidas.
.
O Brasil é um país de apátridas com Estados permanentemente ineficazes e de governos repetidamente descarrilhados. Todos são ilhas perdidos em um mar de tubarões, polvos e lulas. Sem oposição, sem razão e sem esperança. Não mudamos porque não temos vergonha na cara, todos conhecem as soluções, mas ninguém quer ser o primeiro a enfrentar o velho papel de vítima. Poderíamos estar no mais alto ponto, preferimos no entanto ficar de quatro, parece para maioria, infelizmente, a posição mais confortável.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Siringe

A ninfa descansava nua sob o sol com os cabelos dourados acariciados pela brisa quente, o calor agia devagar e lentamente o ar morno colocava todo o mundo fatigado.
.
Ao longe pastores guiavam seus rebanhos pelos campos e as árvores do bosque murmuravam uma canção de ninar em conjunto com as águas onde náiades se banhavam. No meio de seu devaneio ela sentia surgir sorrateiramente o ser meio-homem, meio-bode, que tanto abominava. Ele esgueirava-se e a encontrava indefesa e excitada. Sua língua quente e áspera de besta machucava o sexo de Siringe que se abria para sentir aquele incômodo prazeiroso. Ele encaixava a cabeça entre suas pernas e bebia qual um animal voraz dos lábios de Siringe. Seu beijo fazia-a contorcer-se, não podia acordar, sentia-se enfeitiçada e desesperada de lascívia.
.
Então ao se entregar Siringe acordava. Sonhava sempre o mesmo sonho e temia não resistir se o deus dos bosques fosse de fato procurá-la como Morfeu profetizava. Até que em uma tarde de verão aconteceu o que a ninfa tanto temia e aguardava. O sátiro surgiu da mata pronto para tomá-la e amedrontada pela paixão de seu perseguidor, Siringe pôs-se a correr. Contudo não havia para onde fugir e ao alcançar o rio Ladon, a ninfa implorou ajuda às náiades. Elas se compadeceram de seu medo e a transformaram. O fauno ao chegar às margens do Ladon encontrou apenas o vento fazendo os bambus cantarem, os bambus nos quais Siringe fora transformada.
.
Pã não desistiu. Enfurecido, expulsou as náiades, depois, fez dos bambus uma flauta, assim teria Siringe eternamente ao alcance de sua boca. E a julgar pelo som que a flauta produzia, não resta dúvida que Siringe se deixou levar pelos lábios do deus selvagem gemendo melodias e gozando todas as vezes que ele a tocava.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O JARDINEIRO (Capítulo Um)

O JARDINEIRO


(Capítulo Um)


Caim


Me lembro aos dez anos, mais ou menos, de ver meu pai sair de casa bem cedo. Sempre que o via pegar o rifle e o facão, mesmo correndo risco de apanhar, pedia para ir junto. Não era sua companhia que desejava, as armas era o que me atraía. (...) Minha vida se resumia em passar os dias ajudando minha mãe com os afazeres e a leitura dos livros mofados do nosso porão, minha única distração. (...) Foi com ela que aprendi a cuidar do jardim, a quebrar o pescoço das galinhas e a furar os porcos para fazê-los sangrar rapidamente. Nessa última lição, demorei a me aprimorar, por alguma razão me divertia errar e vê-los se debatendo e gritando esvaindo-se em sangue. (...) Um pouco depois, não me lembro bem, meu pai farto dos meus pedidos e mais bêbado do que o de costume me deu um canivete e um vira-lata pra que cuidasse. Somente eu seria o responsável pelo cachorro, sua vida estava em minhas mãos. Quando o cachorro estivesse grande e forte, eu poderia acompanhá-lo.

Cuidei do cachorro o melhor que pude. Minha mãe não gostava de tê-lo por perto e meu pai sempre o chutava quando passava por ele. Em pouco tempo o cachorro estava enorme, forte. Sempre tentava me defender quando meu pai avançava sobre mim, o que o deixava furioso. Esse cão foi o mais próximo de um amigo que tive e eu sabia que logo meu pai teria de cumprir sua promessa. Algo, no entanto, estava errado. Seu olhar malicioso deixava transparecer seus pensamentos obscuros. E em uma manhã, com poucas palavras ele me chamou. Fomos os três, ele eu e o cão. Deixou claro pra não esquecer o canivete. Ameaçador resmungou que era bom que eu tivesse tomado conta tão bem do canivete como tinha tomado do cachorro, pro meu próprio bem, finalizou.

Caminhamos por um bom tempo até um lugar longe o suficiente para ninguém nos ouvir. Era uma clareira grande com um tronco no meio. Meu pai então me pediu com uma voz perversa, de quem aguardava há muito tempo por aquele momento, que eu amarrasse o cachorro ao tronco. Enquanto eu fazia isso ele começou a explicar que para aprender a caçar era preciso antes aprender a ser forte. Entender o que significava tirar uma vida. Ele havia preparado um ritual para matar o pouco da inocência que sobrevivera em mim, queria que eu me tornasse como ele. (...) Passei a tarde inteira enfrentando aquele que foi o único que me fizera sentir amado. A cada mordida e a cada golpe de canivete, gemidos e ganidos desesperados escapavam de nós. Só com o canivete eu o enfrentei, ele me amava, mas sabia que tinha que se defender porque eu iria matá-lo. E eu sabia que se não conseguisse vencer, meu pai não iria me salvar dos dentes que procuravam rasgar minha garganta. (...) Não sei quantas horas ficamos ali, eu, todo machucado, o cortava cada vez que ele se aproximava. Tentei fugir, mas meu pai me puxou de volta, gritando que se não matasse o cachorro, ele me mataria.

Finalmente tudo terminou quando enterrei o canivete em sua garganta. O abracei forte para não deixá-lo fugir e em silêncio, enquanto ele se debatia e seu coração pulsava cada vez mais fraco, me despedi. Meu pai orgulhoso das minhas feridas me obrigou a cavar com as mãos, no escuro, uma cova para minha primeira presa. Para dificultar ainda mais, uma chuva desabou sobre nós misturando o sangue à sujeira. A tempestade disfarçou minhas lágrimas. (...) Voltamos tarde da noite, minha mãe se assustou ao me ver todo ferido, sujo e tremendo de frio, porém não questionou meu pai. Estava exausto, ferido, triste, mas era enfim um homem. Sabia o que significava tirar uma vida e estava pronto para caçar.


***

Chegou ao quarto primeiro e certificou-se que o paisagista havia caprichado na decoração. A despedida tinha de ser especial, como nos filmes: vinho, música e pétalas vermelhas – e assim seria. Tomou seu banho, avisou que esperava companhia e aguardou ouvindo Every Time We Say Goodbye por John Coltrane. Uns vinte minutos depois o aviso que a acompanhante subia. Abriu a porta, colocou-a contra a parede e arrancou a toalha. Ela estava linda, vestia um casaco sobre um vestido curto e uma peruca para completar o disfarce, estava sem calcinha.

Berenice adorava provocar, ainda mais quando Allan lhe perguntava se ela gemia com Edgar como fazia com ele. Ela respondia sorrindo que Edgar não sabia tocá-la e que desde o princípio fantasiava em ser currada pelo irmão do seu namorado que diziam levar as mulheres à loucura.

Allan insultava o irmão e Berenice o noivo, excitava-lhes a sensação de sentirem-se perversos e devassos. Gozaram gritando e se mordendo como animais.

Saciados os corpos, a inadiável conversa sobre o casamento iminente começou regada a vinho tinto. Berenice iria se casar com Edgar, irmão de Allan. Ela cogitou por um segundo contar a Allan sobre o exame, mas a sua calma em se despedir a fez hesitar. Ela seria só de seu marido depois do casamento e Allan queria mesmo que Edgar fosse feliz, fora bom enquanto durou, porém havia outras mulheres no mundo esperando por ele. Adormeceram, tinham que repor as forças para ter prazer uma última vez.

Não teve certeza sobre o que o despertou, não havia música, tudo estava quieto e calmo. Sentiu algo úmido e quente sobre suas mãos e seu corpo, agradável. Ao revirar o lençol, encontrou entre pétalas vermelhas, Berenice degolada e a cama encharcada de sangue. Seu coração pulsava rápido e a cabeça doía com uma ressaca absurda, muito embora tivesse tomado apenas uma ou duas taças de vinho. Lavou-se rapidamente e vestiu-se apressado, deixou o quarto e correu para o estacionamento. No carro ligou o rádio que tocava a versão de Marilyn Manson de Sweet Dreams quando as lágrimas rolaram sobre seu rosto. Encostou-se no volante e se deixou levar pelo desespero, ao se inclinar para trás para retomar o fôlego, uma sombra o agarrou colocando algo sobre seu rosto. Não conseguiu ver pelo espelho nada mais que um vulto de um homem, contudo as palavras em tom sarcástico sussurradas em seu ouvido continuaram ecoando enquanto perdia a consciência.


_Boa noite, Cinderela...


Fora trazido de volta à lucidez por um jato de água fria. Estava nu e vendado, com os pulsos presos por correntes o forçando a ficar em pé. Allan entrou em pânico e começou a gritar sem parar quando um bastão brilhante estalando tocou seu peito. Seus dentes quase trincaram ao se cerrar tentando vencer os músculos das convulsões.

O cheiro de carne queimada provocou-lhe ânsia, mas não havia nada para vomitar a não ser uma saliva negra cheirando a vinho com gosto de bílis. Seu corpo estava em estado de choque. Sem controle, sentiu a urina correr pelas pernas.


_Silêncio! – Allan reconheceu a voz que ecoara em seus pesadelos, mesmo o sarcasmo sendo substituído por uma ordem.


_Muito bem, assim é melhor. – Allan tremia involuntariamente e embora tentasse falar, não podia. Sua garganta estava dolorida e sentia a boca anestesiada. Ouviu algo ser arrastado até sua frente, então o som de algo sendo ligado. Percebeu que o homem estava atrás de si e de repente o nó de sua venda fora desfeito. Seus olhos demoraram a se acostumar com a iluminação precária. Em sua frente estava uma mesa com rodas e sobre ela uma tv com um videocassete embutido.


_Quietinho... Ele ligou a tv com o controle e permaneceu vigiando para que Allan não desviasse os olhos da tela.


“_E agora mais surpreendentes notícias sobre o assassinato de Berenice.” – As imagens eram de um noticiário local mostrando fotos de Berenice e Edgar acompanhadas de uma narrativa sobre a vida de ambos e a dramatização de como Allan, irmão de Edgar teria engravidado Berenice e a assassinado cruelmente. Para fechar a matéria uma curta cena de Edgar tentando fugir dos repórteres e sua resposta furiosa quando perguntado sobre sua opinião a respeito da inocência de seu irmão.


“_Ele me traiu com aquela vagabunda e fez um filho nela. Não me importa se ele a matou, eu mesmo teria dado cabo dela se pudesse! Tudo que quero agora é ver aquele desgraçado morto.”


Os olhos de Allan se encheram de lágrimas, não conseguia acreditar no que acabara de assistir. Começou a repetir consigo mesmo que não podia ser verdade. Então o homem, antes de partir murmurou em seu ouvido:


_Agora preciso ir Allan, vou ver se o quão sério o seu irmão falou sobre você. Sabe, casos de família sempre me comovem... – Terminou de falar e não conteve uma risada sarcástica.

A tv saiu do ar e depois acabou desligando-se sozinha.

Não há como saber quanto tempo Allan permaneceu definhando no escuro com fome e sede. Por isso demorou a perceber a visita. Seu irmão trazia uma cadeira, sentou-se em sua frente e começou a falar. Seus olhos estavam em lágrimas, contudo sua voz era fria. Ele falou sobre a juventude de ambos, e de como sempre ele, Edgar, ajudou e protegeu seu irmão mais novo e o perdoou todas as vezes que ele o prejudicou. Eles nunca conheceram seu pai e sua mãe morreu após o parto de Allan, os irmãos cresceram em reformatórios e tiveram uma infância violenta. Entretanto Edgar conseguiu uma vida, estudar, um bom emprego e a mulher dos seus sonhos. Allan vivia para enfrentar para testar limites, sonhava grande e vivia uma vida medíocre. Depois dos últimos acontecimentos algo dentro de Edgar havia se transformado, a esperança e a bondade que sempre resistiram nele havia ruído com a traição de seu irmão. Contudo, não sabia se teria coragem para fazer o que tinha de fazer.

Viu uma segunda fita sobre a mesa e colocou para rodar. Allan não se calava tentando pedir perdão ao irmão, mas ao ver as imagens dele currando Berenice e perguntando a ela se ela gemia com ele como estava gemendo naquele instante o fizeram se calar. Edgar pegou uma caixa na parte debaixo da mesa e sorriu ao ver as facas. Allan não disse mais nada, sabia que merecia sofrer.

Rogou por misericórdia, pediu perdão, chorou e por fim, quando se deu conta que perderia sua vida, mostrou sua verdadeira face contando a seu irmão tudo que fizera com sua noiva e de como ela gostava e pedia sempre por mais. Edgar ouviu paciente e se despediu de sua humanidade a cada pedaço que arrancou do corpo de Allan. No fim, estava sorrindo e feliz com o bem que o mal lhe fizera.


Mais uma alma semeada no Jardim.


***

Esperei até a baixa estação, não queria correr risco de encontrar alguém. Lembro que fazia muito frio, as folhas úmidas de orvalho calavam nossos passos. Passamos o dia seguindo rastros, checando armadilhas. Conseguimos muito pouco, as trilhas se desfaziam com facilidade. O humor do meu pai após a morte de minha mãe tinha ficado pior, insuportável. Então a alça do rifle arrebentou e ele foi obrigado a me dar a arma já que precisava das mãos livres para abrir a mata com o facão. Isso o deixou no limite, ele nunca me deixava carregar o rifle, não confiava em mim.

Então meu pai encontrou algumas pegadas frescas na lama. Aguardamos em silêncio até que de trás de um arbusto surgiu a nossa presa. Era uma fêmea de cervo com um filhote morto ainda preso nela. Seu sofrimento era tão belo, como de minha mãe. Devagar, engatilhei o rifle. Ao ouvir o barulho da arma, meu pai desesperado pediu para eu baixar a arma. Ele entrou na minha mira e o animal aproveitou para fugir. Meu dedo coçava no gatilho, seria tão fácil, a tentação era enorme. Não podia ser assim, simples. Baixei a arma, aquele imprevisto me fez lembrar de uma citação de Samuel Butler: "A vida vale a pena? Isso não é pergunta que se faça a um homem, mas a um embrião." – e como por encantamento, estas palavras deram novo ânimo a meu pai, para minha sorte.

Decidimos dar o dia por encerrado e eu o convenci a pegar um atalho para voltarmos quando de repente o chão se abriu debaixo de seus pés e ele caiu em um fosso. Aquele cervo havia deixado meu pai distraído, mesmo com a camuflagem, não podia garantir que ele não perceberia a armadilha. (...) Enfim, na cova rasa com as estacas transpassando seu corpo meu pai me fitou com aqueles olhos de espanto que sempre vou lembrar e eu, mirando em sua testa, puxei o gatilho.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

O Complexo de Madre Teresa e de Mártir



Uma coisa infelizmente parece levar a outra. Mas antes de falarmos sobre essa ligação, precisamos deixar claro o que é o Complexo de Madre Teresa e de Mártir.

O Complexo de Madre Teresa trata-se daquela pessoa que não só não consegue dizer "não" para outras como também sente-se feliz, sente prazer e uma sensação de autorrealização quando ajuda o próximo. Aparentemente podemos considerar essa pessoa um exemplo raro de bom coração, porém não é tão simples assim. Se fizermos uma análise mais a fundo, percebemos que a pessoa que sofre do Complexo de Madre Teresa por seus próprios meios tenta sempre provar sua superioridade exaltando a miséria alheia e sua benevolência em combatê-la. Ele ama a fragilidade dos outros e os humilha com sua ajuda, obviamente mascarando esses sentimentos interpretando o personagem do herói dos fracos, como realmente fora Madre Teresa.

Já o Complexo de Mártir é mais fácil de ser identificado, simplesmente é a pessoa que se viciou em reclamar e se fazer de vítima. O mundo é um vilão e todos exceto quem sofre do complexo são mártires que são torturados pelos outros. O problema dos casos que sofrem do Complexo de Madre Teresa, quando deparados com a realidade de que não há como ajudar a todos sem se prejudicar ou sem sacrifícios, é a tendência em adquirir o Complexo de Mártir. Eles então sentem-se explorados por quem eles ajudaram e os encaram como aproveitadores, sendo o oposto a verdadeira realidade.

Entretanto o perigo se instala de fato quando uma pessoa que sofre desses dois males encara uma outra, que é devota da Santa Ignorância que não é conhecida por sua paciência, mas sim por sua sinceridade cáustica. Estes fiéis seguidores da honestidade "doa a quem doer" não engolem todo o jogo de valores invertidos e deformados e jogam na cara do doente a sua insanidade. Não é preciso dizer que esse confronto com sua própria loucura não é agradável, portanto toda a frustração do doente dos dois complexos recai sobre o impaciente em questão.

Enfim, seria mais saudável se os que sofrem de um ou dos dois complexos, já que eles são por natureza mais adaptáveis, aprendessem a lidar com as pessoas com menos paciência e mais sinceras. Elas jamais vão encontrar um ombro amigo para ser cúmplice de seu teatro intragável nestes indivíduos.

A conclusão que tiramos desses episódios é que devemos, em prol da boa convivência, aprender a respeitar a neurose do outro para mantermos a nossa neurose intacta.

De perto, realmente Wilde, ninguém é normal.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

A Incrível Arte da Proxilidade ou o Blá Blá Blá


O ato de falar tem uma função, transmitir informação. Contudo algumas pessoas conseguem transformar essa verdade básica da comunicação. Elas ficam falando por oras sem dizer coisa alguma. Simplesmente essas pessoas soam, são máquinas de sons que verbalizam o silêncio. A minha admiração por essa arte é enorme, porque simplesmente não consigo conceber essa possibilidade de escrever ou falar e não realmente me comunicar de alguma maneira. É um teatro mudo com falas.

Políticos, líderes religiosos e outras figuras de importância parecem adquirir essa habilidade para lidar com as massas e elas correspondem ouvindo aquela música sem sentido e assim hipnotizadas, não dizem nada. Não reclamam, não pensam, não criam.

Alguns chefes parecem também possuir essa característica sobrenatural, a enrolação em nível de tão alta falta de vergonha que você chega a duvidar que não haja realmente nenhum significado naquele discurso inteiro. Mas não se engane, essas falas são iguais a tambores, fazem muito barulho, porém são completamente vazios por dentro.

Meu sincero parabéns para quem consegue ser cara-de-pau assim.
Agora cabe a você decidir se este texto fala sobre alguma coisa ou não.

domingo, 4 de julho de 2010

Seis Eunucos


O gosto de sangue entre os dentes era delicioso, a dor, uma sensação conhecida. Eram tantos vultos, homens animalescos reduzidos ao seu impulso mais primitivo. Ela, indefesa, abatida, foi rodeada e ferida por tantas flechas quanto São Sebastião pelos romanos. Eles a penetravam de tantas formas que a comparação a ajudava a suportar o insuportável. As amarras quando finalmente se saciaram estavam frouxas pelos movimentos frenéticos. Assim conseguiu alcançar uma faca e se soltar. Nua na cova dos leões como Daniel, com seis homens adormecidos ao seu redor, todos exaustos.
O sangue escorria por suas nádegas e descia pelas coxas. Os hematomas deformavam o outrora belo rosto. Carne viva. Um a um tocou vagarosamente e com carinho atou os nós delicadamente enquanto eles sonhavam. Um a um ela despertou. Eles ao perceberem que haviam sido mutilados, com o sangue jorrando forte de onde há pouco sua virilidade provara seu valor, gritavam em puro desespero e terror. Com uma paciência encantadora, suja de sangue e esperma, ela foi se banhar. Vestiu-se, pegou o dinheiro do resgate e desapareceu deixando seis eunucos para trás. Ela se tornara a mão esquerda de Deus.

sábado, 15 de maio de 2010

O Einherjar e a Valquíria


Os céus urravam em estrondosos trovões e a tempestade varria o outrora campo de batalha transformado em cemitério onde os grandes guerreiros nórdicos tombaram contra as hordas do caos. Entre aqueles que ali jaziam, homens e criaturas, apenas um se recusava a partir - não por temer o fim - mas por exigir o reconhecimento de seu lugar nos salões de Valhala pelos deuses. Ele fora o primeiro a investir contra as ondas de garras, chifres, espinhos e dentes e o último a cair empunhando a espada. Com uma fúria selvagem, um frenesi insano, ele se jogava na frente do inimigo desafiando a morte.

Agora, derrotado, ele observava as nuvens negras, a chuva lavando o sangue da terra e os corvos que sobrevoavam os corpos. Entre eles estavam Hugin e Munin, os olhos de Odin. Sua fé estava na esperança que o grande deus o visse também e percebesse o guerreiro agonizante que dedicara sua vida para se tornar um Einherjar. E do alto de seu trono em Asgard, o deus caolho o fitou e ordenou a Svana, a mais bela das valquírias, que fosse trazer o herói abatido até sua fortaleza.

Suas forças começavam a abandoná-lo quando o som de bater de asas ecoou na escuridão. Os céus se abriram e entre uma cortina de luz e cores, surgiu cavalgando um corcel alado e empunhando lança de guerra a rainha das valquírias. Imponente, o anjo de guerra com um só golpe enterrou a lança no peito do guerreiro afugentando os dedos gélidos do abraço inglório do esquecimento. A morte era para os fracos e covardes, a batalha duraria até o Ragnarök, o fim dos tempos, e o nome daqueles que estivessem nesse embate seria eterno.

Contudo não fora apenas Odin que voltara sua atenção para o mundo mortal. Farejando o odor de morte o filho de Loki, um monstro em forma de lobo chamado Fenrir, a ruína dos deuses, havia se libertado de suas correntes e procurava o lugar onde tantos haviam perecido para saciar sua fome. Entretanto não existia nada exceto os próprios deuses que pudesse aplacar a fome de tal criatura maldita e quanto mais o lobo devorava, mais sentia a urgência de destruir. Ao ver o Einherjar e Svana, os olhos de Fenrir brilharam de satisfação.

Uma batalha se iniciou e lançando luz no coração das trevas a valquíria em vão golpeava a bocarra negra que anseava engolí-la. Em pouco tempo Fenrir estava sobre a valquíria pronto para desfazê-la em pedaços quando o guerreiro com o peito aberto e o coração pulsando, desafiou a fera a abatê-lo. O sangue escorrendo da ferida excitou o lobo que correu para matar o Einherjar, então, nesse momento o sol levantou-se sobre a terra e a luz cegou Fenrir. Há muito tempo Fenrir sonhava em ter dentro de si tanto poder. Encantado e esfomeado ele foi-se caçando a luz, deixando para trás o guerreiro e a amazona.

Svana, trêmula, agradeceu o guerreiro que retribui seu gesto com violência. Ele jogou-a por terra e assumindo de onde Fenrir parara, ele a possui cruelmente. Ao contrário do monstro que queria a valquíria em suas entranhas, o guerreiro invadiu a valquíria e penetrou em sua carne que perdia sua luz e se ruborizava. Arfantes gemidos e súplicas sairam da boca da rainha que era feita de escrava, servindo ao desejo do guerreiro. Quando tudo acabou ele não mais se importava com a companhia dos deuses ou com a guerra final, apenas queria estar com Svana para batalhar o prazer, como acabara de fazer. E a valquíria, humilhada e currada, machucada, procurava o calor do homem para esquentá-la, já que seu corpo perdera a luz divina e ganhara o toque mortal.

domingo, 14 de março de 2010

Oração à Lilith


Fui seduzido pelo inferno
Me deitei com uma cadela suja
Através de tal bruxa pratiquei a imundície
Sou agora mestre na arte impura da lascívia e da luxúria
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Cruzar como as feras
Copular como as bestas
Fornicar como os monstros
Me tornar demônio
Ser caído e rastejar
Sorrir ao queimar
Amar o fogo
Odiar a luz
Me misturar com as serpentes
Disseminar a verdadeira semente
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Relembrar a Criação
Revelar o Falo e a Vulva
Todos os possuem, Todos são maculados
Se Deus não amasse o pecado
Não haveria nos criado
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Fodam-se
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Amém

O Beijo da Serpente


Insetos invasivos são meus dedos entre os seus cabelos
Puxando e arrancando como se estivesse colhendo
Em um campo, flores do mal
E o vento forte se confunde com seus gritos
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O sangue embaixo das minhas unhas é tão nobre
Como a terra que se esconde nas mãos do jardineiro
E assim me dedico a tornar seu corpo vivo e florido
Tal uma rosa, em chamas, vivo, vermelho
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Os meus dentes se alimentam da sua carne
Cravando-se no banquete que você me proporciona
E seus pedidos de misericórdia soam como música para os meus ouvidos
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Minha sede é saciada na concha úmida que verte
As águas mais doces que a ambrosia dos deuses
Afinal o seu teatro de dor é quase real
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Contudo o seu sexo excitado não mente
E assim selo nosso amor com um beijo
Minha Eva, sou sua Serpente

domingo, 7 de março de 2010

Ira


Primeiro, ele entregou seus superiores para escapar da prisão os denunciando, sem cerimônia, aos russos.
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Isso serviu para demonstrar a ele próprio que, no fundo, nenhuma ideologia ou respeito à hierarquia era mais forte do que o seu instinto de autopreservação.
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Ele era um sobrevivente oportunista covarde nato e sabia disso.
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Por isso seu nome nunca foi citado no julgamento dos vinte dois réus em Nuremberg.
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Depois, subornou os agentes do governo soviético com bens roubados de judeus para fugir da Europa.

Estas joias, que pagaram a propina para ele escapar do Velho Mundo, ele mantivera consigo utilizando o sistema digestivo como cofre temporário, provando, de fato, que ele era capaz de qualquer coisa para conseguir escapar com vida do mundo pós-guerra.
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Remexer suas próprias fezes com as mãos nuas à procura daqueles brincos, anéis e pingentes e depois engolí-los novamente até poder encontrar alguém disposto a aceitá-los foi o preço para deixar para trás o sangue que estava em suas mãos.
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O ódio retroalimentado o consumia e o mantinha vivo.
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Aquilo era nojento, ao menos para os padrões comuns, entretanto para ele, um membro da SS que havia visto e vivido obscenidades que poucos seres humanos na era moderna tiveram a oportunidade de cometer e presenciar; para ele conviver com dejetos não o abalava da mesma maneira que uma pessoa normal.
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Ao menos desta vez eram suas próprias fezes.
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Não havia espaço para orgulho quando o assunto era sua vida e tudo valia a pena para manter viva a sua razão de viver: o odiar.
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Mesmo que ele tivesse que odiar em parâmetros indignos aos olhos alheios, ele sabia que sempre seria digno.
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O que aprendera com os ensinamentos da teosofia de Helena Blavatsky jamais iria esquecer: não importava o que acontecesse, ele era descendente da raça mais pura, do ser mais perfeito, ele fizera parte da Sociedade Thule e seus olhos foram abertos para as verdades desconhecidas do oculto.
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Se fosse um cientista, poderia ter sido selecionado pela Operação Paperclip dos Estados Unidos para continuar a trabalhar no outro lado do Atlântico.
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Como suas habilidades, a de torturar e quebrar o corpo e a mente humana, não eram tão interessantes quanto as descobertas dos cientistas de foguetes nazistas para o mundo nuclear que surgia, ele cogitou seriamente uma outra proposta: a de seguir o caminho de alguns dos seus pares que escolheram o trópico como seu novo lar.

A lista de nazistas que foram para a América do Sul era grande, eles debandaram aos milhares, porém os nomes mais célebres são o do "Anjo da Morte" Josef Mengele que faleceu no Brasil em 1979, o "Carniceiro" Klaus Barbie que viveu na Bolívia até ser extraditado para a França em 1983, onde morreu em 1991, ou o próprio "Arquiteto do Holocausto" Adolf Eichmann que viveu na Argentina até 1960 quando o Mossad o encontrou, julgou e executou.
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O fugitivo não sabia até então que por mais que a História desconhecesse todos os crimes contra a humanidade perpetrados durante o regime nazista devido à destruição de provas e documentos; e por mais que muitos países acolhessem essa escória de braços abertos; o ódio que aquela ideologia nutria gerara um ódio semelhante em suas vítimas que nunca esqueceram ou desistiram de caçá-los e destruí-los.
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Enquanto pensava sobre o que faria, soube de um certo grupo na América do Norte e sentiu que ali, naquela nação e com aquele povo ele poderia continuar o espírito do Terceiro Reich e sem olhar para trás partiu de navio para o seio da Terra das Oportunidades e da Estátua da Liberdade.
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Os separatistas sulistas estadunidenses da Ku Klux Klan entendiam a sua luta e seria no coração dos inimigos que ele renovaria suas raízes, se alimentando do ódio racial para se reerguer.
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O novo americano, Howard, era um cidadão de bem, um homem respeitável, um pai de família (foi muito fácil encontrar uma bela mulher branca, recatada e do lar para tomar como esposa e cuidar da casa e dos herdeiros arianos, futuro da raça pura) admirado e acima de qualquer suspeita.
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Ninguém sabia de seu passado exceto o líder da KKK que dizia sentir orgulho em ter em seu grupo um verdadeiro defensor da supremacia branca.
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E na calada da noite, quando ninguém poderia vê-los, Howard e os seus companheiros vestidos de branco com o capuz do terror anônimo sobre seus rostos queimavam cruzes para aterrorizar e mandar a mensagem àqueles que construíram a América à força de que eles não eram bem-vindos ali e nunca seriam.
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A vida de Howard seguiu feliz por décadas alternando entre ser um membro exemplar da comunidade e o terror dos negros, imigrantes e demais minorias.
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E aos poucos, enquanto envelhecia, as leis e o mundo foram se transformando, impedindo que homens como ele agissem para realizar o seu sonho americano branco às custas do pesadelo de todo o resto.
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Os policiais não mais assistiam sorridentes os linchamentos e humilhações, mas passaram a proteger os negros que podiam agora conviver nos mesmos espaços que os brancos; uma afronta humilhante para a gente de bem que era obrigada a dividir os  ambientes com aqueles cidadãos de segunda classe.
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Howard sentiu-se furioso por assistir novamente os fracos conseguirem aplacar a ordem natural - os puros deveriam dominar os impuros - entretanto, ele tinha uma vida confortável e uma família perfeita, não podia mais se arriscar e continuar a ser o terror dos não-arianos.
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Sobrevivência sempre em primeiro lugar.
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Em seu coração sombrio ele poderia continuar alimentando o seu ódio sem limite.
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Ele (um Grande Mago, um Cavaleiro da Klan que sonhou em outra vida ser um Cavaleiro Teutônico da Camelot nazista em Wewelsburg ao lado de Heinrich Himmler, ex-Schutzstaffel, um guerreiro germânico genuíno) e o Grande Dragão encerraram suas atividades com a KKK sem nunca terem sido responsabilizados por seus crimes e isto era a sua maior vitória.
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Nunca foram pegos, o crime compensara.
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Envelheceram para se tornarem senhores inofensivos sem que ninguém soubesse do ódio efervescente que ardia em seu âmago.
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A intolerância nunca se aposenta, contudo o tempo não perdoa ninguém, muito menos os imperdoáveis.
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De repente veio a notícia da morte de um ex-companheiro da Klan.
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Em pouco tempo outro e mais outro.
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Mortes naturais, mas repentinas e em seguida.
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Howard era um sobrevivente, um oportunista e um covarde e entendia como assassinos, traidores e conspiradores agiam, porque ele era um pouco de tudo isso e muito mais.
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Não ousara entrar em contato com ninguém, alguém poderia estar ouvindo.
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A paranoia se instalou, o Grande Dragão partira.
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Por um lado aquilo era bom, ninguém mais sabia a verdade da sua vida pregressa e da sua verdadeira identidade.
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Em seus devaneios de perseguição ele refletiu se poderia haver alguém caçando antigos membros da KKK para fazê-los confessar seus crimes e depois os matando de maneira a fazer parecer que eles haviam morrido de morte natural ou acidental.
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"_Não é possível." - pensou Howard.
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Isso era algo que só alguém com uma obstinação como a dele em odiar poderia fazer e ninguém além dos descendentes de Atlântida eram capazes de sustentar aquela força "Vril".
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Isto era muito absurdo até mesmo para um paranóico como ele que conseguira viver aquela vida sórdida, secreta e inacreditavelmente impune.
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Howard, ingênuo, não tinha como saber naquela época sobre o serviço secreto israelita chamado Mossad, o "Instituto das Sombras", que fazia exatamente o que ele temia e considerava impossível.
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Por isso, o velho alemão dormia tranquilo, como um bebê, completamente despreocupado.
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Mas antes de morrer lhe seria revelado o que um anjo do Mossad era capaz de fazer.
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Uma melodia acordou Howard de sopetão. 
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A cama e o quarto estavam vazios.
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Uma música alta, barulhenta, tocava em algum lugar.
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Colocou um roupão por cima do pijama e foi até o quarto da fillha, duvidando que ela pudesse lhe dar este desgosto de ouvir aquilo, naquela altura, mas ao não encontrar ninguém no quarto arrumado Howard ficou nervoso de verdade.
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A música vinha da sala.
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Ao descer as escadas, ele se arrependeu por não ter mantido de recordação a sua antiga Luger, se deparou com uma mulher sentada em uma cadeira branca na cozinha, à mesa, lhe esperando de maneira pertubadoramente calma.
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Ela vestia um vestido azul antiquado, mas bonito.
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A estranha de cabelos negros curtos parecia estar à vontade e sua atitude cordial causava mais estranheza do que se de fato Howard encontrasse um assaltante em flagrante tentando roubar sua casa.
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Ela bebericava algo escuro, deixando escapar propositalmente pelos lábios um líquido vermelho-negro semelhante a sangue que caía de sua boca, manchando o píres e escorrendo em gotas levemente sobre seu queixo e pingando em seu busto uma única gota.
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Aquela cena dramática era toda montada de forma proposital, embora Howard não fizesse a mínima ideia do que se tratava, ele sabia que aquilo era uma armadilha.
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"_John Coltrane." - ela falou e de alguma forma sua voz suave soou ainda mais desconcertante do que o silêncio anterior - "_Mas infelizmente receio que você não aprecie seu talento. Sabe, ele é negro."
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"_Quem é você?" - inquiriu ele com voz imperiosa, escondendo a preocupação sobre o comentário dela insinuando sobre sua natureza racista.
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Será que ela sabia sobre seu envolvimento com a Klan? Era disso que se tratava aquela loucura? - as perguntas disparavam em sua mente enquanto tentava decifrar o olhar de esfinge daquela mulher.
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"_Quem eu sou não é importante meu querido Howard, quem você é, é o que realmente importa aqui. No entanto, se precisa de um nome, você sabe, nomes são muito importantes, pode-me chamar de Ira. E aqui vai uma curiosidade só para você: em hebraico Ira significa vigilante, muito prazer. Faz muito tempo que desejo conhecê-lo." - disse ela sorrindo docemente, como uma maníaca.
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Uma linda psicopata judia.
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"_Me diga agora onde estão minha mulher e minha filha sua cadela judia!" - ele se aproximava devagar, esperando o momento certo para atacar e acabar com aquele pesadelo, ela despertara nele uma reação descontrolada que fazia tempo que não sentia e ele no fundo estava gostando de poder liberar um pouco daquele ódio rançoso, antiquado e podre.
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Ele estava com os punhos cerrados, os olhos vidrados, os dentes rangiam de raiva.
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E estava em seu direito, ela era a invasora.
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Ele poderia alegar legítima defesa quando ligasse para a polícia contando o porquê havia estrangulado uma mulher na sua cozinha.
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"_Se você quiser vê-las novamente, sente-se comigo. Por ora basta saber que elas estão seguras. Prometo não tomar-lhe muito tempo, caro Hess." - e um sorriso menor, sem mostrar os dentes se formou em seu rosto.
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O teatro acabara, aquilo era um xeque-mate.
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Ao ouvir aquele nome foi impossível para o velho nazista aposentado evitar a surpresa e o espanto estampados em seu rosto enrugado.
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Há anos... não, décadas... ...ninguém mais o chamava assim desde... ...desde Auschwitz!
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Nem ele mesmo se lembrava com certeza de seu nome de batismo e foi preciso forçar a memória para se recordar de sua mãe o chamando assim e confirmando quem ele era, ou fora, em outra vida, em outro mundo.
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Sem alternativa, hipnotizado, Hess sentou-se encarando aquela fantasma nos olhos, tentando se lembrar daquele rosto.
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"_Sim Herr Hess. Eu sei quem você é. Eu sei tudo sobre você, sobre seus segredos, sobre seus medos, desejos. Sei sobre o que você fazia no campo de concentração, sei de como você batia nos prisioneiros, de como abusava das mulheres. Sei até sobre coisas que você mesmo finge não lembrar. Dos rituais, das runas, das palavras proibidas."
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Os olhos esbugalhados e a boca aberta, paralisada, eram confissão suficiente para Ira.
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Hess era realmente quem ela procurava e ele sabia que estava perdido e que sua hora, depois de tantos anos, enfim chegara.
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Ele estava perdido em seus pensamentos até que ela o trouxe de volta: "_Sua família está no porão..." - e ele se lembra da mulher e da filha.
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Aquilo que estava na xícara e que Ira derramava propositalmente em cima de si mesma para que ele pudesse ver era realmente sangue, conclui.
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O sangue puro e inocente da sua família, as herdeiras da Hiperbórea.
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"_Elas estão no porão!" - A voz dela, desta vez irrompeu monstruosa e abissal soando dentro da cabeça do velho como um trovão ecoando até zunir e fazê-lo gritar de dor e desespero o derrubando da cadeira.
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A vitrola não tocava mais, mas uma tormenta começara a cair subitamente do lado de fora da casa como se o mundo todo exterior tivesse desaparecido e sobrasse apenas aquela casa e aquele homem.
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Ira não estava mais ali, só sua xícara suja de sangue restara sobre a mesa.
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Howard começou a hiperventilar e enquanto pensava rapidamente, torceu para sofrer um infarto.
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Se os nazistas conseguiram fazer contato com seres de outros planetas e de outras dimensões, conforme acreditava Hess, porque os judeus através de sua cabala não poderiam fazer o mesmo?
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Tremendo, ele lentamente se levantou cambaleante e obedeceu à ordem de ir encontrar sua família.
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Ele sabia que se tentasse sair de casa, nunca mais veria sua família e teria que encarar a entidade que controlava aquele sonho abominável.
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Sem desejar ouvir aquela voz de novo ribombando em sua mente abriu a porta e começou a descer as escadas, suando frio, com as pernas bambas, se escorando nas paredes, rumo ao desconhecido.
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Quando acendeu a luz do porão viu sua mulher e filha sentadas no chão, com as costas apoiadas em um pilar de pedra, com as mãos e pés atados, mordaças na boca e vendas nos olhos, em silêncio.
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Ao ouvirem os passos se aproximando as mulheres começaram a chorar sem reconhecê-lo, desesperadas.
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Ele tentou acalmá-las, as abraçando e dizendo que tudo ficaria bem, prometendo que ele as tiraria dali.
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Ao sentir seu toque e ouvir sua voz elas entraram em frenesi, se debatendo com mais violência, gritando, possuídas pelo medo.
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Elas não o reconheciam mais como o marido fiel e pai exemplar de sempre, ele era agora Herr Hess, o homem que se tornara um monstro para milhares de pessoas e vivera para envelhecer esquecido, com uma máscara de civilidade, sem pagar por seus crimes.
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Ele nunca só seguira ordens, ele gostava do que fazia com os prisioneiros e fazia o que fazia porque gostava da sensação de poder, de superioridade, de decidir sobre a vida e a morte, de ser um deus.
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Aquilo era viciante e ele passara a vida toda tentando revisitar aquele sentimento.
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Nenhum momento em família, nenhuma noite com a esposa, nada lhe dava mais alegria do que o sofrimento alheio, a dor, a sensação de superioridade ao ver um ser humano implorar para ser morto para se livrar da agonia.
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Agora ele poderia sentir aquilo novamente, não com judeus, mas com sua própria família sob seu jugo.
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A porta do porão bateu com força o prendendo naquele cubículo.
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Ele pulou e deu um grito como resposta
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Foi então que Howard/Hess notou que em cima de uma mesa, no canto, havia uma faca.
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Não há como saber quanto tempo ele relutou, quantas vezes ele tentou tirar a mordaça e a venda delas só para colocá-las de novo por não conseguir aguentar os gritos e o temor refletido nos olhos delas.
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Pegou a faca e escolheu fugir, tentou abrir a fechadura, arrombar a porta, nada poderia livrá-lo daquela masmorra e então ele se deu conta de que tudo aquilo só poderia ser um sonho, um delírio, e desferiu um golpe fatal no coração.
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Só para descobrir que não lhe era permitido morrer.
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Mas a dor, isso ele sentia.
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Gritou, rolou no chão, chorou, implorou por perdão, orou fervorosamente e viu que não havia resposta.
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Ele sabia que alguém o vigiava, mas ele teria que descobrir sozinho como entreter o seu carcereiro se quisesse escapar.
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Sem saída, impotente diante daquela vontade indescritível que o deixou sem artifícios para recorrer, sem oportunidades de contornar o seu destino como até ali ele tinha feito, Hess/Howard pegou a faca, engoliu seco o seu orgulho e se fez o que tinha que fazer para sobreviver, como sempre fizera, desde a queda de Berlim. 
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Ira queria vê-lo assumir a sua verdadeira persona para sua família e ele aceitou que não tinha como escapar.
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Em sua mente ele tentava se iludir repetindo que aquilo era só um pesadelo e que ele iria acordar a qualquer momento, então, começou a talhar friamente uma suástica na testa de sua mulher e depois de sua filha enquanto citava trechos de Mein Kampf.

Elas se debatiam como peixes fora d´água, tentando fugir de suas garras, porém algo tinha sido despertado em Hess/Howard.
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Ele começou a esmurrá-las para fazê-las se submeter a ele e aquilo o fez se sentir como quando jovem, um deus na Terra.
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Ao sentir o sangue quente nas mãos e ouvir a sinfonia de gritos, Hess/Howard sorriu e gargalhou insanamente, se libertando de quaisquer amarras que a vida civil lhe imputasse, deixando fluir a loucura de se sentir poderoso ao impor a dor a outrem.
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Aquilo pareceu durar uma eternidade, um inferno particular de loucura, epifania, prazer e desumanização.
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Ele não era mais um ser humano da raça pura.
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Era simplesmente puro monstro.
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Estava feito, estava livre.
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O ódio o consumira por inteiro.
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Sua família conhecera sua verdadeira face ao ter a carne retalhada pelo homem que amava.
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A ironia daquela catarse de carnificina era encontrar precisamente em sua algoz, Ira, a mesma fagulha de destruição que havia nele, que anulava qualquer chance de redenção de sua alma.
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O fogo eterno do ódio que não mais vê pessoas, só inimigos desumanizados, tornando de alguma forma neste processo Hess/Howard e Ira semelhantes.
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Ela não o enxergava como uma pessoa e ele também nunca vira um judeu como um ser humano.
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Odiar era a herança que aquele nazista legava ao mundo, às suas vítimas.
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Ao sentir os sinais vitais diminuindo ele deitou em meio às tripas de sua família e deixou-se mergulhar no sangue e órgãos dilacerados, se tornando um com a poça de sangue e carne.
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Enfrentara aquele inferno e o que viesse depois não podia ser tão ruim, pensou consigo.
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Não havia mais limites a superar, ele estava livre para aceitar seus pecados.
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Sem hipocrisia, sem demagogia, sem salvação, estava completamente perdido e sua morte o colocava longe dos homens e das ameaças de Deus. 
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Foi com esta sensação de paz que sentiu o início do perder da consciência, sendo levado por um mar invisível para longe, agradeceu por ser-lhe permitido descansar.
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Subitamente a casa toda acima de si foi varrida como que por um furacão, deixando apenas aquele porão intacto, enquanto o abismo de vento tubular vindo das imensidões parecia encarar o abismo de sua alma condenada.
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Do centro do túnel, o Olho de Deus, surgiu uma figura indescritível.
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Para os iniciados aquilo poderia ser nomeado "serafim", um globo com pares de asas flutuando, uma infinidade de olhos que brilhavam, rodas flamejantes douradas que giravam no ar, luz e majestade que vinha até Hess como um mensageiro para que ele soubesse que sua danação estava apenas começando.
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Ele e seus parceiros da Thule, no início do partido nazista, estudavam o oculto e praticavam magia proibida, antiga, entoando cânticos esquecidos em rituais profanos com sacrifício humano, sorrindo em sacrilégio ao provocar as forças divinas.
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Tudo na tentativa de alcançar o outro lado e consolidar o seu poder superior ariano.
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Nunca conseguiram ter uma resposta compreensível do além, mas sua heresia alcançou algo e reverberou até os confins de onde quer que viesse aquele ser.
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Hess praticamente nunca sentira medo, terror real em sua vida, nada de fato o fizera temer durante as décadas que gozou confortável sua posição privilegiada na sociedade racista que vivera e construíra.
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Só naquele instante ele acessou este sentimento e foi como se todo o medo resguardado viesse de uma vez, como o rompimento de um dique, o Horror o tomou como uma enxurrada.
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Ele começou a gritar, arrancar os cabelos, furar os próprios globos oculares com os dedos, se arranhava, batia a cabeça contra o chão, se estapeava e esmurrava, chorava, mordia a língua, qualquer coisa para tentar desparecer e não ver o que estava não diante de seus sentidos, mas de sua alma.
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E fora tudo em vão.
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Não havia mais escapatória.
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Quando finalmente os sonhos delirantes do homem que gemia de dor e exasperação cessaram, a jovem mulher terminou de tomar o seu chá.
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Ela havia injentado em Howard a droga que prometia ser a coisa mais alucinógena e perversa que a humanidade já desenvolvera.
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Uma substância proibida, secreta, que abriria as portas da percepção e destrancaria o subconsciente de maneira a acessar a imaginação fértil da própria vítima e provocar terrores grotescos psicológicos particulares sem comparação; a produção química do inferno em vida.
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A família de Howard dormia sedada, intocada, enquanto Ira assistira a febre que o soro causara naquele homem por horas a fio.
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A jovem sabia que a noção de tempo era totalmente distorcida quando sob efeito daquela droga e que para Howard aquela noite pareceria realmente eterna.

Herr Hess - o homem que estuprara sua avó no campo de concentração gerara sua mãe com esta violação, sua mãe crescera disposta a passar adiante à filha toda a lição que aprendera sobre a humanidade proporcionando desde concepção a missão de Ira: um fruto amargo de ódio e vingança contra o estuprador de seu povo, de sua família, de sua avó, uma mulher que existia para retribuir a dor aos que ninguém ousava punir - estava finalmente morto.
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A mulher e filha de Howard o encontrariam morto na cama acreditando que ele havia sofrido de um ataque cardíaco enquanto dormia.
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Nenhum vestígio daquela visitante ou do passado daquele homem restariam para contar sua história sinistra e repugnante.
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O mundo se esqueceria de Howard e Hess, assim como nunca saberia da existência de Ira.
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A história trágica de Ira, não obstante, não acabaria com a realização de sua vingança.
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Seus filhos e netos, corrompidos pelo nacionalismo, pervertidos pelo discurso de ódio sionista, se tornariam soldados de Israel.
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Assim como Hess, eles cometeriam as piores atrocidades com a certeza de que estavam fazendo a coisa certa, livrando o mundo de uma raça menor.
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A semente do ódio continuaria a dar frutos, transformando vítimas em monstros.
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Em algum lugar do inferno Hess ri, pensa Ira, antes de fechar amargamente os olhos derradeiramente.


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A Primavera


Eu, em minha humilde ignorância, conhecia apenas o quadro "O Nascimento de Vênus", de Boticelli, que é uma de suas obras mais famosas. No entanto, ontem, enquanto fazia umas dez coisas ao mesmo tempo (quando é preciso os homens também são capazes dessa proeza, mulheres, acreditem) eu vi um programa na TV falando sobre uma outra pintura dele, "A Primavera". Além da história do artista, nesse programa eles começaram a desvendar os grandes mistérios desse quadro, que ao primeiro olhar, são difíceis de identificar.
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Essa pintura foi uma encomenda de um presente de casamento na qual Boticelli ousou primeiramente pelo tema, dos deuses mitológicos, que não condiziam com a leva cristã da época de quadros representando Marias e crucificações. Além disso, cada figura demonstra uma profundidade perturbadora. Da esquerda para a direita, nós temos Mercúrio, o deus-mensageiro, em uma representação romanceada em seu rosto de um dos grandes patronos das artes. No entanto, reparem que ele está de costas para as demais figuras femininas, procurando um fruto, uma analogia mais moderna que os pré-rafaelitas deram ao homossexualismo. Um simbolismo que chegou a inspirar Oscar Wilde.
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As três figuras seguintes, seminuas, sensuais, escandalosas ainda para os dias de hoje, são as três graças, as Cárites. Em seus vestidos esvoaçantes elas provocam com a sua felicidade e erotismo, insultando os olhos dos que repousam nos quadros. Quando a classe-média européia se deixou vencer pelo modismo e abraçou Boticelli como seu produto de consumo, aqueles que escolhiam A Primavera para decorar suas salas sabiam que quando algum vizinho os visitasse, se ruborizaria ao ver as três Cárites saficamente desenvoltas em sua dança. Uma delas, inclusive, olhando atenta e interessada para a figura de Mercúrio.
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Ao centro, temos Vênus, a deusa do amor, em uma representação mais enquadrada na Maria cristã, dando uma espécie de benção para os quatro personagens da ala esquerda. Acima, temos o Cupido, deus responsável pelo arrebatamento da paixão. Cupido está vendado, cego e justo como a nossa atual justiça, pronto para disparar uma flecha flamejante.
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Contudo, dentre todas, as figuras que mais chamam a atenção são as três figuras da ala direita. Na extrema direita temos Zéfiro, o vento do Oeste, que segundo os mitos, insanamente louco de paixão persegue e estupra Clóris, uma ninfa da floresta, a personagem ao seu lado, com flores e ramos saindo da boca. A outra mulher ao seu lado é Flora, a deusa das flores, a mulher que Clóris se torna após ser violentada por Zéfiro. Um presente nada adequado para um casamento.
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Continuando, os mitos dizem que Zéfiro, arrependido pelo que havia feito, acaba por desposar Clóris fazendo dela, agora Flora, sua esposa. O rosto enigmático de Flora, feliz e insolente, encarando de volta os que vislumbram o quadro mostra uma combinação das personalidades de Clóris e Flora, da menina e da mulher e a do próprio Zéfiro, em uma representação andrógina, belamente bizarra, misteriosa e orgulhosa. Casta como o pensamento cristão exigia da mulher e lasciva como a filosofia pagã.
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Um recado para a jovem esposa de um casamento arranjado, para que pudesse entender os desejos do marido e aprendesse a lidar com eles. Já que Flora jamais teve do que reclamar do seu matrimônio.
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Assim, cheio de significados, numerosos como as flores e as espécies pintadas delicadamente uma a uma do jardim onde sem resposta tantos deuses se encontraram na mente do pintor, Boticelli ficou por séculos desconhecido e fadado ao ostracismo até ser redescoberto pelos pré-rafaelitas.