Me lembro aos dez anos, mais ou menos, de ver meu pai sair de casa bem cedo. Sempre que eu o via pegar o rifle e o facão, mesmo correndo risco de apanhar pedia para ir junto. Não era sua companhia que desejava, as armas era o que me atraía. Minha vida se resumia em passar os dias ajudando minha mãe com os afazeres da casa, foi com ela que aprendi a quebrar o pescoço das galinhas e a furar os porcos para fazê-los sangrar rapidamente. Nessa última lição, demorei a me aprimorar, por alguma razão me divertia errar e vê-los se debatendo e gritando esvaindo-se em sangue.
Não me lembro bem quando foi, mas um dia meu pai farto dos meus pedidos e mais bêbado do que o de costume me deu um canivete e um vira-lata para que eu cuidasse. Ele prometeu que quando o cachorro estivesse grande e forte eu poderia acompanhá-lo.
Cuidei do cachorro o melhor que pude. Minha mãe não gostava de tê-lo por perto e meu pai sempre o chutava quando passava por ele. Em pouco tempo o cachorro estava enorme, forte. Sempre tentava me defender de meu pai o que o deixava furioso. Esse cão foi o mais próximo de um amigo que tive e eu sabia que logo meu pai teria de cumprir sua promessa. E de repente em uma manhã, com poucas palavras ele me chamou. Fomos os três: ele, eu e o cão. Ordenou que eu não esquecesse o canivete.
Caminhamos por um bom tempo até uma clareira grande com um tronco no meio. Meu pai então me pediu que amarrasse o cachorro ao tronco. Enquanto eu fazia isso ele começou a explicar que para aprender a caçar eu precisava antes aprender a ser forte, entender o que significava tirar uma vida. Estremeci de pânico quando entendi o que meu pai queria que eu fizesse. Tive ódio de mim mesmo por ter pedido para acompanhá-lo e quis desistir, porém o tapa que ele me deu no rosto me fez perceber que eu não tinha escolha.
Passei a tarde inteira enfrentando aquele que foi o único que me fizera sentir amado. A cada mordida e a cada golpe de canivete gemidos e ganidos desesperados escapavam de nós. Só com o canivete eu o enfrentei, ele me amava, mas sabia que tinha que se defender porque eu iria matá-lo. E eu sabia que se não conseguisse vencer, meu pai não iria me salvar dos dentes que procuravam rasgar minha garganta.
Não sei quantas horas aquilo levou. Eu todo machucado o furava cada vez que ele se aproximava. Anos mais tarde me peguei chorando ao assistir uma tourada pela tv, meu cachorro agonizara exatamente como o touro que depois de ser cravados de lanças começa a sangrar pela boca e cambalear. Finalmente tudo terminou quando cortei sua garganta. O abracei forte para não deixá-lo fugir e em silêncio, enquanto ele se debatia e seu coração pulsava cada vez mais fraco, me despedi.
Meu pai orgulhoso das minhas feridas me obrigou a cavar com as mãos, no escuro, uma cova para minha primeira presa. Para dificultar ainda mais a situação uma chuva desabou sobre nós misturando o sangue à sujeira. A tempestade disfarçou minhas lágrimas. Voltamos tarde da noite, minha mãe se assustou ao me ver todo machucado, sujo e tremendo de frio, contudo não questionou meu pai. Eu estava exausto, ferido, triste, mas era enfim um homem. Sabia o que significava tirar uma vida e estava pronto para caçar.
Esperei até a baixa estação, não queria correr o risco de encontrar alguém. Lembro que fazia muito frio, as folhas úmidas calavam nossos passos. Passamos o dia seguindo rastros, checando armadilhas. Conseguimos muito pouco, as trilhas se desfaziam com facilidade. O humor do meu pai após a morte de minha mãe tinha ficado pior, insuportável. Então a alça do rifle arrebentou e ele foi obrigado a me dar a arma já que precisava das mãos livres para abrir a mata com o facão. Isso o deixou no limite, ele nunca me deixava carregar o rifle, não confiava em mim.
Então meu pai encontrou algumas pegadas frescas na lama. Seguimos com cuidado por um tempo até que avistamos um cervo bebendo água em um fio d’água abaixo de nós. Meu pai fez sinal para que eu esperasse e ele foi devagar se aproximando de nossa presa. Ele estava concentrado procurando uma posição de vantagem onde as árvores não atrapalhassem a visão. A ideia que me perseguia desde a minha iniciação também me mantinha focado, a respiração lenta, os olhos cerrados no alvo. Um suor frio escorria do meu rosto, minhas mãos firmes no aço sentiam o peso do rifle. Lentamente dobrei o joelho e me coloquei em posição, a arma encostada no ombro, o coração acelerado.
Um pouco antes de apertar o gatilho meu pai se voltou para trás para pedir a arma com um sorriso de satisfação por ter encontrado o ponto perfeito para disparar. Ao me ver seu semblante mudou subitamente – seu olhar espantado me encarou – e eu mirando em sua testa, puxei o gatilho.
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