segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Na Tortura Toda Carne Se Trai


Eu seria capaz de suportar os mais terríveis dos instrumentos de tortura, sessões de crueldade, ser aferroado e trancafiado na mais profunda e escura das catacumbas. Afinal, contra a opressão e a humilhação o orgulho transforma a dor do corpo em uma pérola na alma e calcifica a mágoa e o ultraje em uma arma de resistência.

Porém, a tentação, o doce sabor do fruto da árvore da Vida, isso é irresistível. Como já foi dito, é possível resistir a tudo, exceto às tentações. E das tentações, dos pecados da carne, nenhum é mais doce do que o beijo. Um veneno mortal, que mesmo assim procuramos e guerreamos por ele para podermos prová-lo, mesmo sabendo do mal que ele pode nos fazer. Nos enganamos que o provaremos em doses homeopáticas como um fino liquor servido só nas ocasiões mais solenes, entretanto nos embriagamos com beijos noites adentro como ébrios de vinho.

Ele, o beijo, é o começo, meio e o fim da dança, a inauguração do prazer, o convite ao banquete, o passaporte ao transe. Na tortura toda carne se trai, só é preciso conhecer as ferramentas corretas para tornar horror, sublime e vencer e conquistar qualquer coração. Para eliminar qualquer defesa, desfazer qualquer armadilha. Por algumas horas, por um segundo, por uma noite, pela eternidade.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Manual de Instrução

Eu sou fiel. Sou fiel aos meus amigos, mesmo que muitos deles não saibam porque nunca de fato passaram por algum momento difícil e precisaram de alguém, mas quando precisarem estarei lá. Até lá, talvez eu não seja o mais lembrado, mas quando você precisar, talvez eu seja o único. Os respeito no que eles menos esperam, sem esperar que eles façam o mesmo.

Sou fiel a minha família, mesmo ela tentando a cada domingo e feriado encenar copiando à força a felicidade de um comercial de manteiga, mesmo quando aponto seus erros e discordo em fazer parte desse teatro, porque depende muito mais de cada um a nossa convivência do que de todos nós para que sejamos felizes. E por isso talvez, por dizer o óbvio que ninguém mais quer falar ou encarar, já que reside nele a verdadeira chance de mudança, serei considerado o bastardo. Mas quando o inevitável cobrar seu preço, serão as minhas palavras a soar por último.

Sou fiel a minha filha e por isso sou eu quem a repreendo, ao invés de simplesmente mimá-la ou fingir não ver quando ela erra. Por isso talvez ela me veja no futuro com anseio, mas seu caráter já estará formado.

Sou fiel aos meus amores (a todos), ao meu amor (ao único), ao meu coração (a mim). Porque erro, claro, porém sou sincero e digo sempre por mais difícil que possa ser o que precisa ser dito e vou até onde me permitem ir e geralmente é o mais longe que alguém jamais esteve com você. Quando encontro o limite, por mais dolorido que seja, eu o enfrento. Por amar, por amor, por respeito a mim e a quem estiver comigo, nenhum de nós jamais merecerá sofrer por alguém. 

E quando menos se espera, eu digo "eu te amo".

E embora quase ninguém acredite eu tenho um coração. Meio rabugento, incompreensível para terceiros, insano. Mas ele bate, ele se parte, ele sofre, como qualquer um. E se cansa. Mas não como os outros. Não sigo as regras, mas isso não quer dizer que eu não tenha as minhas. 

Sou fiel até as minhas roupas. Meus tênis velhos, minhas meias furadas, meus jeans rasgados. Então, não tema, você não precisa. Só há uma escolha para mim, ou estou com você ou não. Preste atenção, pode parecer difícil, mas com um pouco de prática você saberá a minha sutil diferença, e ela fará toda a diferença.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Seios


Os seios: primeira fonte de alimento, primeira fonte de prazer. Todas as bestas mamíferas partilham do instinto materno de amamentar sua cria e chegam a quando lhes é roubada a chance, adotar outros filhotes para doarem a vida que escorre de si. Se não fosse pela necessidade da Loba Ancestral em alimentar os irmãos Rômulo e Remo, Roma não existiria. 

Hércules, o maior dos heróis greco-romanos, só se tornou imortal depois de se alimentar do seio de Hera; que ao despertar e se deparar com o bastardo de seu marido lhe sugando o leite lhe ergueu a mão e foi ferida pela força do recém-nascido que apertou seu seio e espirrou o leite divino longe formando assim a Via Láctea.

Ao nascer a criança só cessa de chorar ao sentir o calor do colo da mãe, ouvindo o bater de seu coração, canção de ninar comum enquanto no útero. E aprende rápido a usar de seu choro estridente arma para extorquir leite e abocanhar o seio quantas vezes puder. Os filhotes dos mamíferos lutam para mamar e os que não vencem, morrem. O leão mata a cria de outros machos para garantir que apenas seus herdeiros tenham o direito de mamar e continuar a sua linhagem.

Na Idade Média havia as amas-de-leite, mulheres que tinham seu período de lactação prolongado ao máximo e eram obrigadas a dividir seus seios com os filhos dos nobres garantindo assim que eles não perecessem e eram obrigadas em último caso a escolher entre a prole alheia à própria.

Quando queremos nos lembrar dos grandes que marcaram a história, talhamos bustos, efígies de suas figuras que esculpidas, tornam-se imortais. Tornam-se símbolos, ícones, emblemas, figuras em moedas, selos.

Cleópatra ao decidir tirar sua vida ante a iminência da destruição pelo exército romano, junto com seu amante, diz-se, deixou-se picar no seio pela naja negra para deixar aos seus carrascos um cadáver belo.

Julieta ao retornar de seu sono induzido e encontrar o corpo de seu amado, usa de seu punhal para cravar no peito a lâmina e assim se encontrar com seu amor no pós-vida.

As amazonas, caçadoras lendárias da mitologia, amputavam seus seios esquerdos para melhor manusear o arco.

Em um protesto memorável contra a opressão masculina mulheres queimaram seus sutiãs na década de setenta nos Estados Unidos.

É por vergonha do próprio corpo e do toque, ignorância e falta de costume que a segunda maior causa de morte de mulheres é ainda o câncer de mama. Por outro lado, por vaidade as mulheres pedem e pagam para serem cortadas e taxidermizadas como animais empalhados para terem seus seios aumentados.

Os homens para sempre serão encantados, enfeitiçados pelo poder dos seios, por seu calor e magia e neles muitas vezes acabam por despejar seu próprio leite, retribuindo com gotas quentes simbolicamente a fonte de onde no começo de suas vidas se fartaram.

Mas mais do que isso, as bocas dos homens serão eternamente atraídas pelos seios. E suas mãos eternamente irão ao seu encontro. Seus olhos serão hipnotizados por eles. E os homens os desejarão, mesmo sem ao certo entender a razão disso. Está em nós homens procurarmos por eles, pelos seios, por toda a vida. Desde o nascimento até o fim. Porque neles nos alimentamos, nos satisfazemos, nos afirmamos, sobrevivemos, nos esbaldamos e nos saciamos. Entre eles, sobre eles, em seus bicos. Deles escorre a humanidade.



sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Perseu e a Medusa

Eu estremecia sempre que a via. Aqueles olhos de ressaca, de cigana, de górgona, me paralisavam. Eles me  hipnotizavam, me petrificavam de desejo e medo. Não podia evitar nem escapar, não havia saída, era assim desde sempre e para sempre seria eu o escravo de sua alma. Me tornei voyeur de sua visão, só tinha olhos para os olhos dela, diamantes brilhantes cravados em seu rosto, que me cegavam e me enchiam de ambição.

O globo ocular é preso por sete músculos, sete selos, e eu girava naqueles globos estroboscópicos e mesmo encarando aquele abismo, ela jamais me devolveu o olhar. E enquanto ela dormia, eu surgia em silêncio para velar seu sono e vigiar enquanto seus olhos giravam nas brumas de Morfeu. Assim, na escuridão da noite entendi a razão da Justiça ser cega. Só nas trevas era possível julgar sem se comprometer.

Então em um estalo entendi o que deveria fazer. Para tê-la, era necessário antes envolvê-la nas sombras, as janelas da alma eram superficiais demais. Gentilmente a segurei com a cabeça em meu colo e com uma adaga de prata mergulhei o ferro dentro de seu crânio. A dor era excruciante, ela gritava aterrorizada, tomada de desespero, e eu tive trabalho para segurá-la enquanto arrancava as jóias que por tanto tempo sonhara. 

Quando saí, ela continuou a chorar lágrimas de sangue e a se debater contra a mobília, até cair no chão. Então entrei novamente em seu quarto e me fiz reconhecer, ela me chamou pelo nome e me abraçou. Seu vizinho, seu melhor amigo chegara na hora certa para lhe salvar do monstro que a atacara na calada da noite. Eu a socorri e fui seu guia quando ninguém mais a quis e a tive por anos comigo, porém sem seus olhos ela parecia apenas uma memória do que já fora, uma boneca sem alma.

Descobri que para poder amá-la, eu deveria colocá-la na frente do espelho e olhando para o reflexo eu podia ver em minha estante as duas estrelas faiscantes, meus troféus, que me observavam enquanto eu currava a antiga dona daqueles belos olhos. Eles e ela se uniam na prata do espelho e dessa maneira eu tinha seu corpo e a sua alma comigo, juntos. E eu no fim, seria enterrado com eles para que nossas almas descansassem juntas no sono eterno.