EMANCIPAÇÃO
O sol se escondia no horizonte trazendo
uma noite fria em 1901 quando a carta enviada pelo chefe de polícia de São Paulo
chegou às mãos do delegado do município de Itararé. Ao receber a
correspondência do mensageiro o delegado estava trancando a porta de seu
gabinete e ao ler o nome do remetente soube imediatamente que aquilo não eram
boas novas. Afinal se tratava de nada menos que Pedro Antônio de Oliveira
Ribeiro - o chefe de polícia de São Paulo - figura famosa do alto escalão do governo.
Reacendendo o lampião novamente em sua sala o delegado confirmou que o conteúdo
tratava de um assunto realmente complicado: o Cônsul da França pedia através do
chefe de polícia informações com urgência do paradeiro de Lucien e Marie Foiz,
um casal de argelinos que se suspeitava desde 1893 estivessem locados na região.
Notícia peculiar e suspeita que arrancou um suspiro de desconsolo do
representante da lei, ele teria uma longa noite.
Uma carta de São Paulo do Senhor
Pedro Antônio já era ruim, um pedido urgente do Cônsul francês então era com
certeza algo que não podia ser ignorado. Uma notícia daquelas precisava ser
dada o quanto antes ao intragável Intendente Belarmino Pinheiro de Carvalho e
lá se foi o delegado bater em sua porta.
Belarmino adorava o poder e o
prestígio de sua posição, mas odiava as responsabilidades de seu cargo - equivalente
a prefeito na época. O comerciante rude fora colocado pela aristocracia no
poder para trazer para perto da elite os pequenos burgueses em um falso gesto
de união e respeito a eles. Belarmino era uma marionete que adorava receber o
seu salário e gastá-lo nos botequins, mas detestava ter de se apresentar ao
Paço para assinar decretos que sequer lia.
Ao ouvir as novidades ordenou que
o delegado averiguasse o caso na mesma hora temendo que qualquer demora em
atender o pedido pudesse irritar os políticos da capital e manchasse o nome de
seus mestres. Fazer o delegado revirar a cidade noite adentro para encontrar aqueles
estrangeiros não era nada se comparado com a garantia de uma boa relação com os
poderosos.
O delegado concordou com a cabeça
e partiu rumo a igreja, qualquer coisa era melhor do que ouvir aquele
desgraçado. E além do mais ele sabia que se aquela cidade que era um ninho de
serpentes tinha algo a esconder, mais cedo ou mais tarde eles chegariam aos
ouvidos do padre.
O pároco era de idade e não ouvia
muito bem, principalmente quando não era de seu interesse, porém depois de o
delegado quase pôr a porta da sacristia abaixo ele o recebeu. Se fingindo de
senil o velho ao ser indagado evitava comentar sobre o assunto até que a menção
sobre os rumores que tanto circulavam às más línguas do velho cristão levando
muito à sério a frase “Vinde a mim as
criancinhas” o fez mudar de atitude. Ele se fez de rogado e relembrou a sua
influência junto às quatro famílias fundadoras da cidade e ameaçou dizendo que
eles não admitiriam qualquer injúria contra ele, pois eram “católicos
exemplares que não deixariam impune qualquer calúnia contra um homem de Deus”.
Ao menos o velho mostrara as
garras pensou o delegado, então tratou de esclarecer que só queria fazer seu
trabalho e que se o padre tivesse algo a dizer que o fizesse de uma vez para
que ambos pudessem seguir suas vidas.
Sorrindo maliciosamente o velho
se aproximou do ouvido do delegado e em um tom confessional sussurrou:
“...eu
nunca pergunto a um homem qual é o seu negócio, o que eu pergunto são os seus
pensamentos e sonhos. E Lucien sonha coisas que nenhum homem deveria sonhar,
sonhos que só monstros e deuses são capazes. Ele e sua mulher acreditam que
podem tornar o sonho deles realidade aqui.”
E continuou: “Eles eram simples, mas muito instruídos.
Viajaram incógnitos pelo Atlântico junto dos ciganos infiéis que os esconderam
mediante pagamento. Lucien procurava o lugar onde o rio escavara a pedra que os
franceses Debret e Saint-Hilaire mencionaram em correspondências entre si quase
um século antes.”
Aquela história toda de
estrangeiros procurando a gruta do Rio Itararé e mistério o incomodava, sua
intuição lhe alertava que alguma coisa estava muito errada naquilo tudo, que
seria melhor ele se afastar. E este pensamento perturbador o instigava a saber
mais, o medo alimentava a sua curiosidade. Mais do que a superstição de um
velho sacerdote, ele sentia que realmente estava prestes a desvendar verdades
terríveis e ele faria o que fosse preciso para espiar os segredos obscuros
daqueles forasteiros.
O delegado era um homem parrudo e
corajoso, combatente formidável da Guerra Civil da Revolução Federalista “da
degola” onde dez mil homens tombaram na tentativa sulista de dar um golpe por
não aprovar o presidente Floriano Peixoto. As memórias dos combates selvagens
nos rincões do Paraná chacinando os inimigos sem qualquer misericórdia
atormentavam seus sonhos, os feitos cruéis que renderam-lhe seu atual posto
surgiam em sua mente cada vez que fechava os olhos. Ele não temia o combate,
entretanto o que não podia ser enfrentado com os punhos, adaga e pólvora
começava a devorar-lhe por dentro.
A noite escureceu ainda mais
enquanto o delegado cavalgava estrada a fora rumo ao Paraná. Ao ganhar as
trilhas abandonou o cavalo por não poder enxergar direito o terreno irregular e
temer que o animal pudesse quebrar uma perna e prosseguiu empunhando o seu
lampião. Ele caminhou no ermo até que começou a ouvir o barulho das águas
turbulentas contra as muralhas de pedra. Até que enfim chegou descendo um pouco
as pedras com cuidado para não escorregar, sozinho, à entrada da gruta.
O som das águas ecoava na caverna aumentando a
sua força, o delegado mesmo conhecendo a gruta sentiu que encarava a entrada do
inferno. O ar era gélido, úmido e trazia em si o cheiro dos segredos da terra. Desceu
até o interior tateando com cuidado e segurando o lampião até que chegou no
coração do Rio Itararé.
Era como pisar em um templo
esquecido, uma aura de grandiosidade e pavor emanava de todos os cantos, mas o
mais aterrorizante era uma grande mancha no chão que se assemelhava
demasiadamente a sangue seco.
O delegado se aproximou e se ajoelhou
para verificar de perto e quando tocou a mancha algo além dos limites de sua
compreensão aconteceu.
Ele testemunhou o que se passara
ali na gruta oito anos antes, em 1893, quando Lucien com uma faca estripou a
sua esposa que o acompanha grávida para retirar a criança de seu ventre. O
sofrimento de ter seu filho arrancado de suas entranhas a fazia gritar e a
caverna multiplicava o seu desespero ao infinito amplificando a sua dor até
alcançar as estrelas. No entanto quando finalmente a criança chorou ela sorriu
e se alegrou, não pela vida que concebera, mas por poder continuar com o plano
doente de seu marido.
Lucien sem ao menos limpar o
sangue sobre a sua filha a enrolou em trapos com símbolos mágicos e entoando
cânticos profanos ofereceu aos “deuses que dormem” aquela alma prometendo que a
partir daquele sacrifício a gruta se tornaria um lugar de adoração e que mesmo
sem entender a mensagem, quem pisasse naquele solo sentiria o poder que
irradiava da estrelas. Então ele encheu o pano no qual enrolara a criança de
pedras para quando atirasse o recém-nascido dentro das águas ela não corresse o
risco de não afundar. Chorando alto ele arremessou a menina que desapareceu nas
profundezas do rio. Segundos depois surgiram boiando dezenas de peixes mortos,
um sinal de que a oferenda fora aceita.
Lucien abraçou sua mulher e
alegres, rindo e chorando permaneceram juntos até ela morrer.
Já era dia quando o delegado
recobrou a consciência e para sua desgraça aquele sonho alucinado ainda estava
gravado em sua mente, porém desconexo, uma cicatriz em sua alma que jamais se
curaria. A mancha de sangue havia desaparecido, os pássaros saudavam o sol e
tudo parecia ter sido apenas um pesadelo. Entretanto o delegado sabia, no
fundo, que aquilo acontecera e não teria como provar nada.
O Intendente o chamou de
incompetente e ameaçou tirá-lo do cargo por não conseguir nenhuma pista do
paradeiro dos estrangeiros, mas depois do ataque de raiva, voltou atrás. Óbvio
que o delegado não disse uma palavra sobre o que a revelação que tivera e mesmo
com a chance de manter o seu cargo desistiu de seu posto e partiu da cidade,
era impossível para ele continuar a conviver tão perto da insanidade que ele
começava a recordar.
Ele precisava de respostas para
as questões que rondavam sua cabeça como moscas atraídas pelas memórias podres
que ele guardava gravadas a ferro e fogo em seu cérebro. Por que eles fizeram
aquilo com a própria filha? Como um homem e uma mulher poderiam fazer aquilo
com uma criança? Que credo doente e monstruoso obrigaria seus seguidores a
cometerem tamanha atrocidade?
De noite, na estrada, o
perturbado delegado se deparou com uma caravana de ciganos e para seu azar seus
desejos foram enfim atendidos. Lucien estava com eles e lhe revelou a verdade
do Universo.
O delegado morreu em uma casa
para doentes mentais gritando para quem quisesse ouvir que os Deuses Antigos
estavam despertando e que Itararé era a porta para o inferno por onde eles
voltariam para destruir o mundo. Enterrado como indigente seu nome foi apagado
da história e seus avisos nunca foram levados a sério.
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