sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

AD AETERNUM


   Sempre me desesperei ao ler os contos bizarros e grotescos de Edgar Allan Poe, acima de todos, o "Barril de Amontillado". Nesta obra excepcional um dos personagens ao final encontra seu fim sendo emparedado vivo na adega de seu companheiro, deixado no escuro para definhar até a morte, sozinho, para o júbilo de seu oponente.

   Afinal, pense comigo, imagine o desespero avassalador da situação: estar preso sem poder fugir e sem qualquer esperança de salvação. Totalmente envolto em trevas e em silêncio, começar a notar os seres decrépitos da noite rondando, vermes, insetos, passeando por seu corpo, aguardando ansiosos para se banquetear com a sua morte inegável. A impotência ante ao destino é o que me aterrorizava, a solidão perversa, o desprezo da humanidade que seguiria sem se ater ao desaparecimento de um dos seus. A importância mínima da vida, da existência, de mim, ao ser preso e esquecido como se nunca tivesse sequer existido. 

   Mas tratava-se apenas de uma obra literária, você pode pensar, nada que pudesse ter reflexo no mundo real. De fato eu também assim raciocinava para me vacinar contra o medo, entretanto, no fundo eu sabia que as coisas não eram tão simples assim. Mesmo naquela época eu já desconfiava que havia mais coisas entre o céu e a terra do que podia imaginar a nossa vã filosofia.

   Com o desenvolvimento da medicina começamos a rondar o reino das patologias e suas peculiaridades e desbravar que o impossível é tão somente a certeza do ignorante. A descoberta da "catalepsia" - uma doença rara que faz com que o enfermo caia em um sono tão profundo que se assemelha à morte, tendo os batimentos cardíacos e a respiração tão letárgicos que havia quem temesse ser enterrado vivo, sendo confundido com um cadáver - causou tanto alarde que houve uma época em que os mortos eram enterrados e preso a um dos seus dedos ficava uma linha esticada até um sino na superfície que deveria ser tocado caso o morto fosse um dos trágicos sofredores de tal mal para ser resgatado.

   No entanto com exames mais específicos e contundentes esta ameaça foi erradicada e os coveiros pararam de ter trabalho nas noites de ventania quando o arrebol da tempestade tocava todos os sinos sobre as covas, colocando uma linha tênue entre a vida e a morte.

   Com mais modernidade veio a necessidade de mais energia e novas formas de obliteração surgiram, como os mineiros presos e isolados em suas minas, sem água ou comida, esperando um salvamento que poderia esmagá-los ao retirar as toneladas de pedra que os separavam da superfície. Por isso jamais cheguei perto de uma mina, sempre cuidei da minha saúde para se caso tivesse algum quadro cataléptico, fosse tratado propriamente e tive enquanto vivo a certeza de que os combustíveis fósseis seriam o fim da Humanidade. Mas nada me salvou ou me preparou para o que estava por vir.

   Não era Edgar Allan Poe que eu deveria temer com seus contos de suspense psicológico, mas sim Bram Stoker era quem selaria o meu infortúnio. Mesmo que o mundo tenha deturpado a imagem ancestral das criaturas imortais, os senhores da noite, elas não deixaram de existir ou de influenciar o mundo escondidas nas sombras. Lendas de criaturas notívagas do além-túmulo existem em todas as culturas e era tão vívida a ameaça do vampirismo que havia séculos atrás quem enterrasse entes familiares com estacas cravadas no coração para prevenir que o parente pudesse ser transformado post-mortem. Descobri tarde demais para a minha sorte que a literatura possui raízes em origens perturbadoramente reais demais para serem aceitas pelos humanos e que os monstros não existem só em nossas cabeças, nos livros ou quando somos crianças.

   Esta revelação se deu da pior forma possível, pois fui transformado sem ter a mínima ideia do que se passava. Testemunhei meus conhecidos e aqueles que amei definharem e perecerem enquanto eu mantive, como um Dorian Gray pós-moderno, minha juventude intocável (a não ser pelo tom pálido e pelo semblante cadavérico). Fui introduzido então para um clube extremamente recluso de criaturas como eu, que temiam serem descobertos e causarem uma Nova Inquisição sendo queimados sem misericórdia pelos inferiores os quais eles predavam também inclementemente, principalmente os inocentes e incautos. E aprendi que a maior de suas regras era o sigilo total sobre nossa condição.

  Eu, contudo, com a minha sede de escrever, não me contive e comecei a descrever minha vida e meus hábitos, tudo de forma aparentemente ficcional, o que me tornou conhecido e visado. Meus hábitos peculiares e minhas aparições somente após o pôr-do-sol apenas serviram para aumentar o toque de excentricidade e aumentar a voracidade dos holofotes. A Camarilla não aprovou minha conduta e fui julgado e condenado pelos anciões, seres tão antigos que não se recordam em nada em como é sentir o calor do sol na pele ou respirar. E imaginem vocês qual foi a pena a mim eleita?

  Sim. Ser trancafiado nos domínios dos poderosos de nossa espécie onde os mortais não poderiam me encontrar e empalado por uma lança de prata que não me matará, mas me deixará em um estado de inanição completa, como um cataléptico. Permanecerei assim até que meu corpo se desfaça e sobre apenas pó o que devido à minha natureza sobrenatural pode levar toda a eternidade.

 Curioso não é mesmo, senhoras e senhores? A ironia cruel, o paradoxo infame que agora compartilho com vocês e que será carregado pelas nuvens de tempestade que tocavam os sinos dos mortos de outrora será o meu testamento para a Humanidade. Na internet residirá a minha obra de arte final que poderá ser encontrada através pelo título emprestado do poema de Augusto dos Anjos: A Psicologia de um Vencido. Eis o poema que descreve o meu fim...

"A PSICOLOGIA DE UM MALDITO"

"Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da minha infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Produndissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e que à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de-deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!"

   Por isso, cuidado!

  Nós existimos, somos reais e nos alimentamos de vocês, nós os desprezamos. Vocês são menos do que gado para os malditos. O meu mal foi manter a minha sensibilidade mesmo após o beijo de sangue. Que a minha história possa trazer à tona a verdade para os mortais, a lição da minha existência: 

   "A literatura, a arte, pode matar..."

   "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas..." - e assim, fazendo de Machado de Assis as minhas palavras, encerro com Lovecraft que insiste em me dar esperança mesmo ante ao abismo.

  "Não está morto o que eternamente jaz inanimado, e em estranhas realidades até a morte pode morrer..."

sábado, 24 de outubro de 2015

Liberdade

Um sorriso atirado em solo fértil, mesmo que por brincadeira inconsequente ainda assim pode germinar. Como na teoria do Caos onde um bater de asas de borboleta em um lado do mundo pode acarretar em um tsunami no outro lado, um sorriso atirado a esmo é tão fatal quanto uma bala perdida.

Por isso decidi fazê-lo, sem medo, sem me preocupar, atirei um ricocheteante sorriso e deixei ela lidar com ele. Na verdade, abusei da sorte e lhe atirei vários, como uma metralhadora automática lhe mostrei os dentes como um animal enraivecido, beijando-lhe em meus sorrisos. Lhe desejando em meus sorrisos. Lhe amando em meus sorrisos.

Ela, acanhada, não sabia o que fazer com eles, com esse ataque, assédio de sorrisos e segundas intenções. Tudo era novo para ela, mas sem querer, ela me sorria de volta. Talvez fosse apenas porque o sorrir é uma das expressões mais humanas e trabalha em um nível subconsciente onde sorrimos para quem quer que seja que sorria para nós. Um condenado no paredão de fuzilamento, até vendado, se sorrir, mesmo sem poder ver saberá que o soldado se pegará sorrindo de volta antes de apertar o gatilho e assim saberá que ele foi perdoado. Talvez fosse só isso, uma ação involuntária como um soluço, como o piscar dos olhos, como o bater do coração. Mas não, pois eu podia perceber quase com certeza absoluta que seu coração acelerava quando eu me aproximava.

Os meus sorrisos chegaram mais longe do que imaginei, nos encantaram, enlaçaram, nos enlouqueceram e nos aproximaram. Eles adentraram sua boca e lhe encheram o corpo de beijos, lhe cobriram de carícias e cafunés. E ela sentiu vontade ao me ver me rabiscar a pele, de fazer o mesmo.

Este ato de rebeldia, esse anseio de liberdade através da tinta foi o que a semente do sorriso germinou, à flor da pele, um desenho para simbolizar o fim das amarras: foi um presente meu a ela. E ela escolheu um dente-de-leão com as sementes voando no vento se transformando em pássaros, um símbolo vivo da natureza e liberdade, a vontade de alçar vôos mais altos e distantes. Uma vez livre ninguém mais consegue voltar para onde antes estava, aprisionado.

Eu lhe dei asas, lhe tirei da gaiola da sua família e lhe aprisionei com uma overdose de liberdade. Ela consertou as minhas asas quebradas de Ícaro que voou perto demais do sol. Assim, vivemos enlaçados e sorridentes, despejando no mundo sorrisos para que haja cada vez mais histórias de amor e menos medo de ser feliz.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Entre a Foice e o Martelo


Corte a cabeça fora de um Rei
E o veja se transformar em uma Hidra
A liberdade sempre foi fora-da-lei
Mesmo quando democracia

Do Che se venderam  muitas camisas
Mas esqueceu-se que nenhum homem é uma ilha
Ótimos charutos e livre-arbítrio de quinta
Vizinhos de Guantánamo, eles ainda sonham com uma nova Bastilha

Enquanto isso o oriente se desorientou
E tentou vender um negócio da China
Que é mais pirata do que o regime
Que se diz do povo, mas que é o mais capitalista

Sem contar que ao norte da Coréia
Fica o sul do Paraíso
Onde um menino maluquinho
Brinca de ditado sozinho

E ainda há a Primavera Árabe
Linda com flores de pólvora
Ninguém imaginaria que do Facebook
A revolta se transformaria no paraíso militar que é agora

Há quem defenda a estrela vermelha
E voltem seus olhos pra Rússia
Eu prefiro pinga à vodka
Se for pra me vender como na Augusta

Mas não se engane, eu acredito na foice e no martelo
Símbolo do sonho do povo, do trabalhador, do pobre que maneja o rastelo
Só não acredito que até então algum país tenha implantado de fato
Uma sociedade de esquerda, foram apenas regimes baratos

Não dá pra pensar em um sistema onde o homem é mais importante
Algemando quem pensa contrário, talvez o dono do fusca azul
Tenha sido o único a chegar mais próximo deste páreo
Realmente, se pararmos pra pensar, este foi o presidente menos otário

Eu acredito que a democracia é o pior de todos os governos, tal forma
Está à frente, porém, depois de toda as outras, afinal não há sistemas perfeitos
E só nós podemos encontrar as respostas, não temos nada a perder
Porque
já estamos perdendo


sexta-feira, 3 de julho de 2015

Herança


 É estranho reconhecer que com o tempo, o porto de onde você partiu e de onde você encarava o mar de possibilidades do futuro acaba se tornando apenas um farol distante que te atrai te fazendo olhar para trás. Fitar para aquele brilho eterno longínquo na escuridão como uma estrela morta que ainda tem sua luz visível.
  O futuro se torna cada vez mais um terreno estéril enquanto o passado guarda a memória das sementes não plantadas que continham o potencial de germinar todos os sonhos. E começamos a regar mais as memórias do que a nossa esperança. A receita do cinismo cria um gosto amargo na boca, impossível de se evitar, como o gosto de bílis da primeira ressaca. Como o queimar dos pulmões do primeiro trago.
  Entretanto agora nada mais parece novidade, você criou resistência ao álcool, seus dentes amarelaram e o paladar se foi. Você vai se tornando mais insensível, mais previsível, mais fraco e suscetível a se perder completamente. Vagando como um nômade, como um rato de laboratório em uma roda, preso nos cacos dos vitrais quebrados das memórias. Vivendo nas ruínas de seu castelo mágico, como um fantasma, habitando uma casca que lentamente se deteriora. Você não mais vive, apenas assiste e sobrevive os dias, as horas, se passarem arrastando em sua frente até o momento de finalmente ir embora.
  Queria que as coisas tivessem sido diferentes. A culpa é tóxica, inútil, um veneno que mata. Não há mais como voltar atrás, desfazer, refazer, refletir. Queria te dizer que mesmo assim, apesar de compreender hoje os seus erros e jamais ser capaz de aceitá-los, sei que você merecia mais do que teve, mais do que tem. Se eu pudesse, também teria me esforçado mais, mas dói ainda e talvez para sempre pensar em tudo que passou e por isso tenho que me afastar e desejar o melhor enquanto você toma chuva e passa frio.
  Eu, mesmo abrigado me sinto perdido, nenhum filho deveria viver assim com seu pai, nenhum pai deveria viver assim com seu filho. Por isso tento me lembrar das minhas melhores lembranças da triste época de infância e é inevitável: toda vez que olho para uma foto do Chico, vejo um pouco do sonho do homem perdido. E lágrimas me vêm aos olhos com um sorriso.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Legião - Porque nós somos muitos


  Começou como uma brincadeira praticamente inocente. Uma piada boba de alguém que queria se aparecer e fazer a galera rir. Mas como o alvo da zombaria era o mais tímido menino da sala, o que menos falava e aquele que ninguém queria sentar perto, fazer prova em dupla ou escolher para formar o time na aula de Educação Física, claro que não parou por ali.
  Afinal acreditavam realmente que tirar sarro dele era uma forma de incluí-lo, só brincamos com quem consideramos amigos, certo? Então rapidamente aquela atitude foi se espalhando como um vírus, por todas as salas da escola, no recreio. Ele continuava calado, com medo, se alguém vinha falar com ele, ele reagia como um animal assustado, acuado, nervoso. Os professores notaram, mas havia muito pouco que pudessem fazer. A Diretoria não acreditava na seriedade das reclamações, chamou um ou dois mais bagunceiros que abusavam da paciência de todos para conversar e deu a situação como encerrada. 
  Até mesmo os outros alunos menos queridos das turmas se aproveitaram para se promover na humilhação alheia e conseguiram se tornar mais legais aos olhos do povo do fundo ao tirar uma onda com o rapaz. Logo ele começou a faltar na escola, mentia, dizia que estava doente para sua mãe e ela preocupada, não sabia o que fazer. Atolada em trabalho, responsabilidades, com um filho mais novo que precisava de atenção redobrada, separada, sua mãe era tão frágil quanto ele naquele mundo cruel.
  Mesmo assim ela o levou a vários médicos, tentou conversar, descobrir o que se passava, mas ele se mantinha calado. Não via como sua mãe poderia ajudá-lo, só queria se esconder, só queria que eles parassem. Mas não pararam, óbvio. O seu celular pipocava com mensagens infelizes, agressivas até. Chegaram a criar um fake para falar com ele e fingir que alguém se importava com ele, que poderia se apaixonar por ele. Alguém de longe, inalcançável, e ele, carente e desesperado acreditou naquela farsa teatral que rendera muitas risadas. Ele se abrira para aquela pessoa, aquele amigo virtual que parecia lhe entender, uma válvula de escape do pesadelo que se tornara sua vida.
  Alguns já achavam que aquilo tudo havia ido longe demais e começaram a pedir para que os outros parassem. A maioria se cansou, ficou com pena, perdeu o interesse. Contudo os mais cruéis, os mais sádicos não podiam simplesmente esquecer e deixar para lá. Se empenharam tanto, iludiram tanto que abusando da confiança estabelecida fizeram o pobre menino expor sua intimidade acreditando ter encontrado alguém que o amasse e sentisse o mesmo que ele. 
  Novamente pais foram chamados, conversas sérias foram ditas, entretanto pouco de efetivo foi feito. Os pais dos garotos mais problemáticos não tinham tempo para se preocupar com eles, tão pouco de fato se importavam com os próprios filhos preferindo suprir a sua falta de atenção com presentes que os  entretivessem a realmente dar-lhes atenção. E essa carência gerava uma raiva que era descontada nos demais. Um apelo, um grito por atenção, por preocupação que é uma forma de se mostrar que nos importamos, que amamos. 
  Assim sendo, vendo o quanto a mãe do rapaz havia se desesperado com o caso, ela tinha até ameaçado procurar um advogado para processar os pais dos meninos que tinham feito o que fizeram com seu filho, os filhos que só ganharam tapas e xingamentos dos pais se tornaram ainda mais perversos.
  A vítima não queria mais sair de casa, nem do quarto, não comia, só chorava, pensava que não havia mais saída. Na verdade só uma. E enquanto sua mãe trabalhava e sua vó que fora morar com eles por um tempo para ajudar a cuidar deles dormia, pegou vários remédios dela e tomou-os de uma vez.
  A notícia pegou todos de surpresa. Ninguém mais riu. Ninguém mais achou graça. Pois antes de partir ele escreveu o que sentia em seu diário e descreveu os seus agressores como demônios que lhe infernizavam como os demônios que Jesus exorcizou de um homem e os colocou em porcos, segundo a Bíblia, e eles se jogaram de um penhasco se matando. Ele era religioso porque sua mãe lhe ensinara ao contrário do que muitos diziam, que Deus nos amava como nós somos, independente do que possam dizer padres e pastores e assim como Deus ela o amava como ele era e para ela ele era perfeito. Terminou pedindo perdão a sua mãe pelo que estava prestes a fazer. 
   Todos da escola estavam em seu enterro e os responsáveis por aquela tragédia pareciam chocados, perdidos em seus pensamentos, assustados com o mal que habitava em si. Podiam ouvir o demônio rindo deles enquanto sua inocência era devorada pela culpa. E os pais sentiram a semente do mal que estavam cultivando em seus lares.

sábado, 4 de abril de 2015

Sob a Pele


Há uma besta rangendo os dentes
Se debatendo contra as correntes
Batendo a cabeça nas paredes
Embaixo da minha pele

A prisão estremece com seus urros
De tantos repetidos murros
Meus ossos estalam

Um lago profundo onde um monstro se esconde
Um jardim encantado onde uma serpente espreita
Incógnita entre as flores e os frutos

Um santuário exterior
Uma ruína interna

Secreto aos olhos de estranhos
Aprisionado comigo a tantos anos
Me deparei conversando com este ser
Que já não sei mais quem somos

Me escondo na luz por me sentir mais seguro
Ou nas trevas por preferir o oculto?

Sou eu quem guardo as chaves da masmorra
Ou é ele que me faz refém sem eu me dar conta?

Sem saber as repostas seguimos juntos
Siameses, inimigos, cúmplices
Para o túmulo

segunda-feira, 23 de março de 2015

O Cúmulo da Utopia

Sonhar não só em mudar o mundo, mas em fazer renascer nas pessoas a capacidade de sonhar sem medo.

Para cada um assim poder ter a chance de realizar seus sonhos ao invés de perdê-los.

quarta-feira, 18 de março de 2015

Fogaça

Essa menina vivia de Chico.
Volte e meia Buarqueava-se.
Embora não transparecesse.
Havia quem desconfiasse.

De que quando ela colocava os seus fones.
E se calava lendo, pensando, podia-se ouvir.
O som de um pássaro mesmo durante a tempestade.
Como se preso em uma gaiola invisível pedisse pra sair.

Vivendo em seu peito cheio de segredos tal ave.
Era delicada, mas usava literatura pesada.
Que fedia a charuto, sarjeta e tinha gosto de whisky barato.

Embora vivesse bem, dentro de suas pálpebras.
Andava com gente da pior espécie.
Namorava Bukowski e escrevia escondido.

O alpiste para o pássaro azul era o sonho de devorar o infinito.
Em chamas, um incêndio feminino: Fogaça.

terça-feira, 3 de março de 2015

MORFINA - A Bela Adormecida


Pálida e imóvel ela se assemelhava a uma miragem, uma ilusão de ótica tal qual um quadro da mais bela arte ultrarrealista que tenta imitar a crueza da vida. Ela ali deitada era como um anjo caído que perdera na sua queda as asas e estivesse repousando suavemente entre os lençóis, belo como o paraíso perdido, inocente como um recém-nascido. Um cadáver poupado dos dedos pútridos da morte, uma múmia preservada perfeitamente como uma estátua esculpida pelas mãos de um deus.

Ela dormia um sono tão profundo quanto a morte, mas estava viva, presa dentro de seu próprio corpo. Sua consciência se inebriava de fantasia, de sonhos febris, mas o eco do mundo reverbera mesmo nos longínquos reinos de loucura daquela pobre alma.

A agulha que lhe rendera tamanha maldição não fora a roca de um tear e sim a de uma seringa. Ao injetar veneno em suas veias ela se condenara e nenhum príncipe poderia lhe tirar daquele coma, o que não impedia dos príncipes aos plebeus de desejar beijá-la. Afinal ela parecia ali tão calma e serena que na mente dos homens ela se oferecia como uma ovelha, um cordeiro para o sacrifício. Ela praticamente em suas imaginações perversas pedia, consentia em ser amada, usada, abusada para aliviar a existência dos machos fracassados que jamais poderiam sonhar em copular com uma donzela tão linda. Nem mesmo pagando, subornando, eles teriam acesso a um sonho como ela, ela que era produto refinado do delírio mais acalorado do imaginário masculino.

Mesmo seu pai fora encantado por seus feitiços e deixara com o passar do tempo de vê-la como sua filha e começara a salivar como um predador encarando sua presa. Ele jamais a atacara, porém ela sabia do desejo que inflamava seu pai e sentia-se enojada. Os homens pareciam todos para ela seres repugnantes, desprezíveis, dignos de pena e medo e ela tinha motivo para pensar assim pois era exatamente como loucos varridos tomados pela libido que eles se mostravam a ela. Todos desejavam seu corpo, sua carne, como a hiena e o urubu ao encontrar uma carcaça, como o lobo ao espreitar o rebanho, sem lembrar que ela também sentia, pensava, amava.

Decidiu fugir enquanto podia e nas ruas sentiu uma liberdade que jamais vivenciara entre as paredes sob o jugo de seu pai. E na selva de pedra aprendeu a sobreviver e a ceder às tentações. Se a luxúria se apresentava como prática asquerosa, o desejo precisava ser anulado, anestesiado de outras formas e logo as drogas revelaram o prazer e a dor de seus poderes. Ela sucumbiu tão rapidamente que para conseguir um pouco do mal que lhe destruía ela começou a se vender, já que mesmo maculada pela sujeira ela brilhava como um diamante na lama, igual a uma pérola atirada aos porcos.

Seu fim foi repousar no leito e definhar enquanto Morfeu tecia histórias que fizessem ela esquecer o pesadelo que vivera, sonhos que justificassem sua existência. Sonhos tão absurdos quanto uma princesa adormecida esperando por uma amor impossível, sonhos tão antigos como contos de fadas. Sem o efeito da heroína, sem o gosto da saliva e do sêmen da prostituição, só éter onírico.

Etérea se tornou sem alarde e antes de ser enterrada o legista a beijou sem culpa, com lágrimas nos olhos, estava agradecido por ter a chance de se deparar com um corpo tão lindo e de ser o último a se despedir de uma vida tão amargamente desperdiçada.

Ela sorriu, finalmente seu príncipe havia a encontrado, mas seus lábios não se mexeram, nunca mais. 


quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

WITH A LITTLE HELP FROM MY FRIENDS



O soldado conta com os seus companheiros para lhe cobrirem do fogo inimigo. O guerreiro conta com os seus iguais para defenderem as suas costas. As colunas romanas usavam este mesmo conceito para suas formações militares. Há como vencer sozinho, mas a chance de vencer cresce na medida que temos mais pessoas em quem confiar para lutar conosco. Cada um procura esta parceria de uma forma ou de outra, de Deus às drogas, todos queremos: reconhecimento, aceitação, companhia, cumplicidade, parceria e confiança. Mesmo que as escolhas alheias lhe pareçam algo que você jamais faria, os motivos entre você e o resto do mundo de fazer o que faz são mais parecidos do que talvez você queira admitir. 

Por isso temos que aceitar, mesmo às vezes sem concordar com as escolhas, que cada um trilhe seu caminho e ficar feliz pelos outros. Ao invés de jogar pedras, ofereça a mão em um gesto de amizade. Só temos a ganhar com mais pessoas ao nosso redor. O seu exército de amizades depende do seu potencial de entender como é a vida das pessoas e como você pode fazer para torná-las melhores e elas de fazerem o mesmo por você. Não existe fórmula ou receita para isso, é preciso aprender na prática. 

Todos precisam aprender a lidar consigo mesmo e com as outras pessoas, errar faz parte do processo. Aprender a se desculpar, a desculpar os outros e a se aceitar também faz parte. Não é fácil, mas não há escapatória. Estar cercado de pessoas que talvez não te conheçam como você gostaria ainda é melhor do que estar sozinho. Porque junto das pessoas você pode aprender a se abrir, sozinho você se coloca contra todos.

E cada um de nós tem tantas facetas, tantos lados, podemos ter tantas parcerias o quanto desejarmos. Ninguém vai te conhecer tão bem quanto você mesmo o que não te impede de partilhar ao menos um lado em comum com alguém. 

Por isso e por tudo agradeço a vida que tenho, porque sei que há quem se importe e me ame e faça questão de me ter por perto. Sei que posso contar com os meus amigos e eles sabem que podem contar comigo. Se os meus sonhos de projetos pessoais existem e há a mínima possibilidade de eu realizar alguns deles é porque me cerquei de pessoas que multiplicam a minha força. 


domingo, 4 de janeiro de 2015

Homem-Barro


A chuva violenta se suicida contra janelas, galhos e chão
Tudo que está acima, está abaixo, ciclo e reflexão
Escorre pelas ruas, empoça, correnteza
A água esconde fúria na beleza

Nem sempre ela circunda o obstáculo
Um rio pode cavar a pedra
E assim, criando cavernas
Um lago que reflete o sol também é escuridão

Mares e oceanos dentro dos seus olhos
Varrendo vilas costeiras, chuvisco sobre a serra
Nós somos ela, redemoinhos de emoções

Perdendo-se dentro de nós ela flui
Circulando através do coração se transforma em sangue
E faz de nós, seres meio líquidos, meio sólidos, feitos do mangue