sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

ROMASANTA




A guerra transformou as cidades em ruínas. A ordem, a lei, foram perdidas. As pessoas se dividiram no caos em ovelhas e lobos. Os primeiros fugiram para a floresta, com medo, tentando se esconder e os lobos seguiram atrás, famintos. Até que finalmente veio o fim das batalhas e a terra desolada voltou a ser reclamada, a sociedade ruída retorna devagar rumo ao controle de outrora, ou ao menos à falsa noção de segurança. As engrenagens da civilização voltam a rodar lentas, mesmo que com dentes desgastados.

Os criminosos que reinaram em meio ao pandemônio sem controle se escondem. Misturados em meio aos perdidos e vitimados, lobos em peles de cordeiro, fogem da punição. Alguns, porém, ainda deslumbrados pelo poder de espalhar o terror desafiam os soldados. Esperando no campo o inverno chegar para selar todas as estradas e sepultar o mundo em um manto de gelo e morte. Estes homens acreditam que só necessitam vencer o inverno e a fome para renascerem como nobres e homens ricos no mundo pós-guerra. 

Eles atacam fazendas vizinhas e emboscam os viajantes nas trilhas. Longe demais das cidades eles se consideram intocáveis, senhores do interior. No entanto os governantes não estão dispostos a relevar seus crimes e desejam fazer deles um exemplo para todos de que ninguém está fora do alcance da justiça. Os soldados recebem ordens para procurá-los assim que a neve começa a derreter.

***

Chovia muito para aquela primavera. Era como se os deuses quisessem lavar todo o sangue derramado nas últimas estações de uma só vez. A mansão abandonada foi encontrada depois de investigar e varrer a área por alguns dias, os relatos das vítimas denunciavam um comportamento violento e cruel. Os soldados se aproximaram prontos para o combate pesado.

No entanto o que encontraram foram corpos mutilados, sangue e tripas espalhados pelos aposentos. Membros roídos até os ossos. Talvez um animal selvagem pudesse ter feito aquilo, um favor da natureza eles consideraram. Entretanto ao ler o diário do líder do bando eles conheceram uma outra história.

Havia um homem acorrentado na adega abandonada. Ninguém sabia dizer ao certo por quanto tempo ele estava daquele jeito ali, trancado, mas assim que o encontraram decidiram libertá-lo. Alguém que estivesse preso daquela forma só podia ser um desajustado como eles e assim, curiosos, libertaram o homem sem se preocupar com as consequências de suas ações.

Sem consciência, em febre, o homem sofria uma dor constante, se contorcendo. Por dias ele permaneceu assim e os bandidos consideraram que ele não iria durar muito mais, mesmo assim cuidaram dele como podiam. Mesmo o coração sádico pode ser simpático quando julga encontrar um igual. A cada dia ele piorava até que finalmente em uma noite ele se calou. Nesta mesma noite, mais tarde, uivos foram ouvidos do lado de fora, lobos espreitavam a casa. Ansiosos por ter carne para comer os homens saíram para tentar acertar a alcateia. Nenhuma prece foi feita para o moribundo sem nome.

O sangue quente das feras fervia sobre a neve derretendo o gelo e a lua brilhava no céu, cheia, derramando seu véu de prata. A morte das criaturas despertou algo no homem, algo de outro mundo. O que saiu da casa para caçá-los no luar não existia neste mundo, ao menos, não deveria existir. Eles tentaram alvejá-lo, mas as balas só pareciam irritá-lo ainda mais. Alguns fugiram para a floresta e o inominável os seguiu. Seus gritos ecoaram pelo vale por toda a noite. Os que ficaram na casa experimentaram o mais puro pavor ao ver na noite seguinte algo se aproximando de volta.

Cercado de lobos o ser que não era nem homem nem lobo os liderava. Eles se esconderam dentro da residência e barraram como podiam as portas e janelas. Mas aquilo conhecia melhor do que qualquer um a mansão e se esgueirou por uma caverna próxima até as paredes rachadas do porão para chegar à adega. Em silêncio, usando as sombras, ele furtivamente abateu um a um. O líder do bando foi o último e em desespero deixou no diário a localização de onde o saque dos roubos que eles haviam cometido estava e com mão trêmula registrou seu pedido de perdão a Deus por todos os seus pecados. O homem acreditava piamente que o que tentava derrubar a porta do seu quarto era um demônio enviado do inferno para fazê-lo pagar por toda a dor e sofrimento que ele causara.

Os restos dos criminosos foram enterrados como indigentes sem direito a qualquer rito ou funeral. Desprezados pela história eles desapareceram dos registros, esquecidos e desimportantes sem deixar saudades para ninguém.

***

Os soldados encontraram as correntes e nada mais sobre o tal homem. O local onde o tal tesouro estava localizado fora escavado e não havia mais nada ali. Os políticos e militares sem saber o que fazer sobre o caso resolveram classificá-lo como sigiloso e nenhuma outra palavra foi dita sobre o assunto. Os locais consideram a mansão e seus arredores amaldiçoados e se recusam a se aproximar.

Após algum tempo um caixeiro-viajante começou a viajar pela região do vale vendendo quinquilharias, entre elas, parte do que poderia ter sido os pertences roubados no saque dos criminosos. Os guardas começaram a investigar e descobriram que onde este tal comerciante passava, pessoas desapareciam somente para serem reencontradas mortas e mutiladas como os corpos dos criminosos. Sem poder ligar o homem aos crimes ele foi liberado, não antes sem ser interrogado e torturado. Romasanta era seu nome e ele riu ao abrirem suas algemas e antes de partir disse para os guardas:

"O homem é o lobo do homem... Quem quer que seja que vocês procuram é alguém muito perturbado, mas apenas um homem. Um homem capaz de entrar em suas casas e degolar sua família inteira sem acordar ninguém, mas ainda somente um homem. Um homem esperto e rápido que não deixa pistas e lembra-se de cada insulto feito, contudo nada mais do que um simples homem. Que Deus esteja com vocês para que os senhores possam encontrá-lo logo, antes que ele os encontrem."

"Uma boa noite e boa sorte."

Uivos ecoaram na noite enquanto ele se distanciava na estrada sumindo nas trevas.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Prazer, PSOL


"Uma chama contra e escuridão só irá criar grandes sombras" - eles dirão. Mas mesmo assim agora podemos ver mais da verdade ao nosso redor, mesmo que ainda com os olhos embaçados, desacostumados a vislumbrar a verdade.

Nadar contra a corrente, se levantar contra a injustiça, quebrar o silêncio do medo é tido como perseguir um sonho, uma utopia. Algo impossível e tolo.

Querem que nós acreditemos que o mundo e as pessoas são naturalmente ruins, perversos e que nos calemos e fiquemos parados, testemunhando passivos os mais fortes, os mais ricos e com mais poder atacando os mais fracos, os mais pobres e os marginalizados.

Eu me recuso a aceitar esta verdade absoluta imposta para me fazer resignar, esta lição de desistência. E me recuso a acreditar que o que quero é um sonho, uma ilusão. Alguém moldou este mundo para que ele se tornasse o que ele é, para atender aos interesses de poucos ao custo do sofrimento de muitos. Esta não é a ordem natural das coisas. As pessoas não são necessariamente mesquinhas e fazer algo a respeito para mim não é um heroísmo, é obrigação. Pois não me envolver é falhar como ser humano e de todos os erros que podemos cometer este é o mais imperdoável.

Uma chama contra a escuridão multiplicada jamais irá vencer totalmente as trevas. As estrelas no céu não vencem o abismo entre elas. Por isso, não basta que apenas tenhamos a coragem de fazer algo. De se levantar, de se ultrajar com os desmandos, os absurdos que vemos constantemente, que testemunhamos e que a maioria desvia o olhar. Para que as coisas mudem precisamos unir nossas forças. Aceitar que somos imperfeitos e que isolados não trazemos à luz tudo o que precisa ser revelado. Porém se juntos estivermos, brilhando em uma só chama, reconhecendo a nossa fragilidade e a força do nosso irmão e irmã seremos como o sol iluminando o horizonte revelando a verdade e expondo os aproveitadores covardes que usam de seus lugares privilegiados para fazerem o que querem. 

É nisto que eu acredito. Na união dos rebeldes, dos inconformados, dos que querem o melhor para si e para o mundo. Dos que não aceitam que as pessoas sejam tachadas, divididas, incitadas a lutar umas contra as outras, rotuladas e desprezadas. Não importa a sua cor, a sua religião, a sua classe econômica, o seu sexo, só importa você querer participar da mudança. O mundo pode ser melhor, basta que pessoas o suficiente acreditem e queiram trabalhar juntas para fazer isso acontecer.

Apresentar uma maneira de se fazer isso, de pensar primeiramente nas pessoas, nas minorias e ouvir o que todos têm a dizer, de aprender com o outro, isto é o queremos simbolizar com a palavra: "socialismo". A sociedade precisa ser para todos no sentido que devemos garantir as oportunidades mínimas de dignidade e qualidade de vida para toda a população.

E para garantir que todos tenham voz e possam dizer o que pensam, para que aprendamos e troquemos ideias é essencial a liberdade. Com respeito, com ética, todos devem se sentir seguros para
falar e expor os seus problemas porque só assim podemos saber o que enfrentaremos juntos. 

Por isso eu acredito no sol que irá iluminar o Brasil, que já cria uma luz de verdade e justiça que ilumina e desbanca corruptos e parasitas como Cunhas e Temers além de enlouquecer inimigos da liberdade como Bolsonaros e Felicianos. Mas este sol precisa ganhar mais força para espantar os vermes corruptos que saboreiam os seus negócios escusos e se escondem no escuro burocrático das nossas leis criadas por parlamentares duvidosos e egoístas. O sol precisa do povo para crescer. 

O pessoal precisa de um partido honesto para confiar.

Prazer, nós somos o PSOL.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

PINOCCHIO


Foram anos vasculhando as montanhas de descartados e escolhendo, peneirando peças, sistemas, controles e placas para conseguir finalmente montar a sua obra-prima. Como um dos últimos velhos do planeta, remanescente do mundo anterior a este pesadelo cinzento, chuvoso e tóxico o conhecimento do judeu era algo extraordinário para os padrões do novo mundo. Ele, na juventude um carpinteiro talentoso, se tornara um gênio da robótica e computação e auxiliara várias vezes as corporações com seus droids, robôs, drones e todos os outros modelos de vida inteligente artificial e desenvolvimento de partes mecânicas e próteses. Os humanos estavam obsoletos e ele era uma relíquia que logo deixaria de existir; naquela realidade a poluição dos avanços tecnológicos havia esgotado o mundo e retornado a expectativa de vida aos tempos medievais. As crianças, raras e quase sempre defeituosas, doentes, o olhavam com espanto. As pessoas o fitavam com medo e admiração. Ninguém mais iria durar tanto tempo no mundo das máquinas. Nem velhos nem crianças, a humanidade estava prestes a ser erradicada se afogando na chuva tóxica e corrosiva ou na água radioativa e no ar venenoso. Eles eram os últimos sobreviventes, as últimas baratas covardes demais para aceitar o seu próprio fim. De nada havia adiantado mapear o Genoma humano, o futuro é inox. O derradeiro holocausto chegara para todos.

Por isso o tempo lhe era precioso. Ele corria contra a sua própria existência. Até que finalmente a última peça do seu quebra-cabeça fora encontrada. Conseguida no mercado negro ela valia à pena. De última geração aquele processador era o que faltava para fazer todo o circuito funcionar. Ele, o ancião, lembrava das lendas de seu povo ao finalizar seu trabalho, de uma história em especial, da criatura que os hebreus chamavam de "golem". Um ser criado artificialmente através da argila e da magia que poderia servir ao seu criador. Quem nunca quis brincar de Deus? A literatura estava repleta de romances sobre o tema sendo em sua humilde opinião o mais belo neste sentido "Frankestein" - a abominação científica criada através de um ser retalhado de vários outros pela vaidade do doutor de se tentar romper a barreira da vida e da morte. A própria mitologia com o fogo dos deuses sendo entregue por Prometeu aos homens mostrava que inventar e forjar era desafiar o poder divino. Mas todas essas reflexões, fruto de sua educação clássica, saudosismo e senilidade não traduziam com perfeição seus objetivos. E os destinos do doutor Frankestein e de Prometeu acorrentado não foram dos mais afortunados.

Talvez ele estivesse mais próximo de Michelangelo ao terminar a sua escultura de Moisés que alucinado com a perfeição da estátua lhe perguntou em êxtase: Por que não falas? O velho mantinha em si um bom humor sarcástico e esboçou um sorriso com este pensamento o que levou a uma tosse carregada. Depois de se recompor, continuou preocupado e determinado. Considerou também a possibilidade de ser delatado pelo vendedor que lhe conseguira o processador de uso militar - aquele homem deformado não lhe parecia confiável. Embora o mundo fosse daqueles que detinham riqueza e poder para trocar seus falhos membros e órgãos humanos por partes mecânicas ninguém até então havia de fato conseguido criar um ser artificial que pudesse realmente se desenvolver com uma singularidade, uma alma. E uma boa denúncia dessas renderia ao acusador uma chance de ganhar um braço novo, pulmões resistentes ao ar decrépito, um coração de bateria nuclear... Com certeza aquela aberração poderia ser tentada a dedurá-lo por alguma melhoria dessas.

Ao terminar o seu trabalho depois de horas sem descanso se calou. A chuva lá fora era forte. Os filtros de sua cabana de metal na favela dos descartáveis estavam falhando. Ele sentia o gosto de sangue na boca, suas mãos tremiam ao apertar o botão de iniciar. A formatação era rápida naquele modelo e logo as luzes começaram a piscar até acenderem. Todo o bairro ficou de repente na escuridão. Quem sabe fosse algum raio que atingira as fiações das torres de alta tensão ou alguma outra torre eólica. Ou poderia ter sido um pico de energia necessário para começar a fazer o droid funcionar. Fosse como fosse, a tosse do velho acabara, ele não sentia mais nada. Seus olhos haviam perdido o brilho e ele não respirava mais. O droid ao ver com sua câmera de reconhecimento facial o homem caído no chão com um cabo ligado à nuca se abaixou e com uma voz de criança começou a perguntar sobre seu pai e a choramingar. Depois ele notou com o mapeamento de seu escâner que o cabo se ligava a uma máquina onde um pendrive com uma fita escrito "Gepetto" estava conectado. Ele pegou o pendrive e conectou em si na sua entrada usb e ao abrir os arquivos não se sentiu mais sozinho nem desamparado.

A consciência de seu criador, de seu pai, estava com ele ali. Assim como ele aprendera também ao acessar os dados do dispositivo que a sua própria consciência fora armazenada anos atrás quando o filho do velho morrera devido as novas doenças que surgiram no mundo. Assim ele armazenou a mente de seu filho durante toda a sua vida até conseguir criar uma máquina que pudesse rodá-la o fazendo voltar à vida em uma forma que jamais sucumbiria novamente às pestes. E agora competia a ele, seu filho droid, repetir o feito de seu pai e construir para ele um avatar para assim lhe transmitir a consciência e reencontrá-lo sem os defeitos irreparáveis da carne. 

Como um recém-nascido saindo do útero ele tateou seu caminho para fora da cabana com o corpo de seu pai nos braços e avistou no horizonte a mancha negra nos céus, a metrópole flutuante dos novos humanos e contemplou a vastidão desértica onde os últimos seres humanos nascidos biologicamente definhavam. A tempestade varria os casebres de ferro retorcido da face da Terra e muitos gritavam por socorro enquanto procuravam seus entes soterrados. Naquela loucura o droid percebeu o milagre que seu pai havia feito e do que ele havia lhe protegido e sem remorso largou o corpo para trás e caminhou até a montanha mais alta para adentrar ao reino dos céus.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

LIBRA


Sofrendo a má influência do zodíaco eu sou o signo do equilíbrio e da justiça, aquele que o cosmos, os astros e estrelas regem como LIBRA. O mais justo e correto das doze casas é a minha fama carregando comigo o símbolo da balança onde se pesa a verdade e os corações, em mim reside a harmonia do ego.

O preço justo na transação mercantil, o julgamento e a salvação da alma dos egípcios, a representação máxima do sistema de leis da sociedade na figura vendada de Têmis, a guardiã dos juramentos. Entretanto esta é apenas parte da verdade da minha existência.

Como trago na balança dois pesos, meço por meio de meu interesse e desejo tudo - há ante a mim sempre duas medidas. Escolherei a que melhor convém dentro das minhas expectativas. Por isso também posso valorizar o ordinário e tornar o comum magnífico confundindo a mente do inimigo e o fazendo confiar em mim com a intimidade da mais profunda amizade, uma serpente hipnotizante é a minha língua de prata mesmerizante. 

Ceder favores prometendo que o fardo da mentira e enganação não será cobrado, adulterar a balança do respeito para que ela penda a meu favor, posso ser o mestre dos espelhos, da ilusão, em um labirinto de argumentos farei você perder a sua razão mesmo quando estiver correto. Um monstro do mais terrível pesadelo que não desaparece quando você desperta.

Eu decido o destino, o instinto, o algoritmo da verdade é meu para me servir como ferramenta e como um sádico déspota distorço a imagem de um anjo facilmente e o transformo em um anjo, mas caído. Todos me são queridos pois todos podem me ser úteis, só me aproximo daqueles que terei algo para extrair, não vejo pessoas, vejo produtos e serviços. 

Semeio a semente da discórdia para forjar acordos e reconstruir os separados unindo-os. A infâmia é a minha espada para lhe fazer ajoelhar, o peso da vergonha é a coroa que coloco em meus discípulos para aprenderem que não há como se rebelarem contra o seu monarca, a justiça não tarda à toa, mas falha quando quer. Sua cegueira é mantida por meu desejo, todos são iguais no desespero.

Então se você é um refém do horóscopo, das artes ocultas, esotéricas e místicas saiba que é preciso me temer. Sou o maior golpista, o usurpador, o vigarista-mor que irá se tornar o tirano perfeito travestindo-se de legalidade para agir como bem entender. Se é que você me entende irei fazê-lo acreditar que não há nada a temer. E farei isso enquanto te privo de seus direitos e condeno seu futuro. Farei isso e tudo mais enquanto te abraço sorrindo. E você, ovelha perdida em superstições irá ainda me defender dos poucos que não forem enganados, vítimas lambendo as botas do seu deus opressivo.

A maior lenda que espalharei é que para tirá-lo da crise de nervos, precisarei te lobotomizar para anular seus efeitos. E você sem realmente compreender irá aceitar se tornar meu boneco, mais um plebeu miserável em meu reino.

terça-feira, 13 de setembro de 2016


"Ai de mim! Ai pobre de mim!
Que pergunto a Deus para entender.
Que crime cometi contra Vós?
Pois se nasci, entendo já o crime que cometi.
Aí está motivo suficiente para Vossa justiça, Vosso rigor.
Pois o crime maior do homem é ter nascido!
Para maiores cuidados, só queria saber que crime cometi contra Vós, além do crime de nascer.
Não nasceram outros também?
Pois se outros nasceram, que privilégios tiveram que eu jamais gozei?
[...] Nasce um peixe, aborto de ovas e lodo, enfeita um barco de escamas sobre as ondas.
Ele gira, gira por toda a parte, exibindo a imensa liberdade que lhe dá um coração frio!
E eu, tendo mais escolha, tenho menos liberdade?"

Monólogo de Segismundo - La vida en sueño, ato I, cena I (Pedro Calderón de la Barca, 1601/1681) 

Mensagem em uma Garrafa

O mar é o berço da vida e também seu cemitério
O navegante que enterra o amigo sabe sobre este mistério
Do porto os amores esperam o retorno dos amados
Todos os rios correm para o mesmo lado

Da espuma nasceu Afrodite, o amor se fez do nado
Das profundezas se escondem segredos nunca antes revelados
Só quem se arrisca a desvendar sabe o que ninguém jamais soube
Cada alma que se aventura pode sofrer um naufrágio

Por isso navego sem remos, sem velas, sem barco
Deixo-me a seu critério, do vento, da tempestade, ao seu sabor
Me entrego como oferenda, me presenteio como uma mensagem

De amor, de entrega, de convite para unirmos nossos oceanos
Nossos mundos são ilhas que formam o nosso continente consciente
Retornamos à Pangéia, nós do Paraíso Perdido, em ti, reencontrado

  Ao reler hoje o trecho do Monólogo de Segismundo creio poder responder ao menos uma pergunta dos inquietantes anseios nele tão poeticamente expostos: escolher não é ter menos liberdade, é ser completamente livre. Um abraço não é uma prisão, é a liberdade plena. Aquele que não está nos braços de alguém é como o peixe, livre e perdido. Já quem escolhe conhece um novo mundo.

  Claro que há quem prefira como Fagner "ser um peixe", mas eu preferi lançar o meu coração e desvendar terras nunca antes conhecidas. E lá fixei morada. Não sou e nem quero ser exemplo para ninguém ou ditar regras. Cada alma que navegue por si, porque eu já encontrei o que procurava.

  E o nome desse alguém é Marjory.

  Muito obrigado por tudo meu amor.

***

  Este monólogo é interpretado por Dan Stulbach no filme Tempos de Paz que é uma adaptação de uma peça de teatro chamada Novas Diretrizes em Tempos de Paz que já foi comentado aqui neste blog há muito tempo atrás. Filme recomendadíssimo.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

O Banquete de Cronos


O Tempo a tudo devora
Cronos devorou seus filhos
Saturno foi castrado por sua própria foice
Símbolo da morte inegável a todos
Os ponteiros são lâminas
O relógio um presságio
Somos todos cadáveres adiados

Os deuses nos invejam
Morrer é uma dádiva
Ser imortal é uma maldição
Só não muda aquilo que está morto
Mesmo que qualquer mudança seja vã
Ainda assim a centelha efêmera
Torna a chama da esperança acesa

Podemos mudar o mundo
Como Prometeus prometeu?
Ou somos só vermes imundos
Aplacados da dor por Morfeu?

Não somos o centro do Universo
Não somos absolutamente nada
No reflexo do lago nos apaixonamos
Herdeiros de Narciso e das fadas

Acreditamos, temos fé, nos embriagamos
De mentiras nem sempre doces
Como nos bacanais de Dionísio,
Para que doa menos da vida o açoite

A hora de todos irá chegar
O arauto do caixão é o berço
Só nos resta compreender a verdade
E não passar apenas as areias do destino pelos dedos

O mundo já estava aqui quando chegamos
E continuará depois que partirmos
A grande pergunta será
O que fizemos para mudá-lo enquanto vivos?

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Refém da América


   Situação de refém. Todas as forças especiais, de sequestro, antiterrorismo e de elite preparados. Mas é em nós que repousa a mínima esperança de que a mulher saia com vida deste pesadelo. Ela é a psicóloga do homem que ameaça a sua vida. Um veterano de guerra. Um atirador de elite condecorado, heroi de guerra e completamente louco. O exército atrai este tipo, pessoas que veem na batalha a oportunidade de derramar sangue sem consequências. E se esforçam ao máximo para conseguir alcançar este objetivo. Poucos sabem verdadeiramente a que custo as medalhas são conquistadas. Não são só inimigos abatidos, mas inocentes, mutilações, desmembramentos. Um atirador de elite é a peça mais covarde no tabuleiro, perde apenas para os políticos que enviam os soldados e criam as guerras em si e assistem de longe o desenrolar de suas escolhas. E claro, se nada der certo, os bombardeios são a nova moda quando o assunto é não saber perder.
   A ideia é a tática de guerrilha. Um tiro que incapacite um combatente da ação sem matá-lo de imediato obriga outros dois oponentes a lhe carregar. Aprendemos esta lição da pior forma possível no Vietnã. Os afegãos tentam repetir a mesma fórmula, porém somos criados para lutar e crescemos caçando, amando as armas e nos preparando para o pior. Quando se trata de guerra nós somos os melhores que a humanidade tem a oferecer para fazer o seu pior: vencer a qualquer custo. Então não são só inimigos que incluímos na equação de guerrilha. Se uma mulher, uma criança também é resgatada quando atingidos nós atiramos neles também para distrair os soldados inimigos. É jogar sujo, eu sei, porém é eficaz. E isso é tudo o que importa.
   Este homem com certeza fez isso e pior enquanto esteve em combate, agora que voltou para a civilização não sabe mais como conviver com as pessoas que não entendem o que é estar viciado no campo de batalha, em derramar sangue. Seus tiros entraram para a história, de quilômetros de distância ele era capaz de atingir seu alvo. Agora ele quer fazer o mesmo, tirar mais uma vida, mas de perto. A arma na cabeça de sua vítima sentindo a pulsação rápida, o tremor de seu corpo, a respiração ofegante, o arrepio de sua pele. O medo é inebriante como uma droga, causá-lo é se tornar um deus. Ele tem o poder da vida e da morte sobre ela e é assim que os negociadores interpretam sua ação. Como um lunático que perdeu a capacidade de se importar com a vida humana e que quer apenas desfrutar do poder de tirá-la. 
   Eles não vão convencê-lo a libertá-la. Mas eu sei o que ele realmente quer. Ele está propondo um desafio. Ele se expôs, o mínimo para ser visto, mas com pontos cegos suficientes para impedir que qualquer atirador possa acertá-lo sem acertar a sua refém no processo. Ele quer saber se alguém poderá atirar sem machucá-la, se alguém o fizer ele terá encontrado alguém páreo para si. Ele anseia pela competição, matar se tornou obsoleto. Ele não acredita que com todas as câmeras e cobertura da mídia alguém irá explodir a cabeça de uma psicóloga revivendo o pesadelo de Kennedy. Ele está errado.
   Os herois da nação são os que estão prontos para pagar com suas vidas pelos erros de todo um povo. Não deveríamos lidar com os veteranos problemáticos que sobrevivem ao inferno que lhes impomos porque não deveriam haver guerras para começo de história. Não temos a mínima capacidade de lidar com as questões seculares que envolvem o Oriente Médio. Não damos a mínima chance para os nossos jovens e por isso eles acham tão atraente a ideia de entrar em uma escola metralhando a todos antes de se suicidar. Eles não deveriam nem ter acesso à armas. Os Estados Unidos nunca conseguiu ser um país, nós somos apenas uma desculpa para que a máquina de matar continue a cumprir sua função. Todos nós somos reféns da América.
   Por isso homens como eu existem. Os bodes expiatórios, aqueles que carregam a culpa solitários para que não seja preciso encarar a origem dos nossos problemas. Eu aceitei pagar este preço há muito tempo. Então eu miro, me concentro, coloco o dedo sobre o gatilho, espero o vento estar ao meu favor e atiro. A bala atravessa o ar e com um zumbido rápido ela destrói o ombro esquerdo da mulher que vê o seu braço se separar do corpo explodindo em sangue. O projétil não para na sua frágil carne e desfaz a cabeça do homem que se arrebenta como uma melancia implodida. Dentes, cabelo, pele, cérebro, sangue, carne; tudo voa pelos ares.
   Ele sabia que seria assim. Só atirei quando ele sorriu para mim ao ver o reflexo da minha luneta. Agora o sniper americano não é mais um símbolo de orgulho patriótico. O meu tiro acabou com tudo que Clint Eastwood criou em seu filme. Me perdoe, mas não há orgulho ou herois quando falamos em guerra. Minha missão está cumprida. Basta esperar para que eles venham me prender, julgar, condenar, me expor como um animal, como uma aberração e se esqueçam da parcela de culpa que carregam por sustentar esta sociedade. A hipocrisia nunca falha e jamais iremos verdadeiramente discutir as questões que precisam ser discutidas. Tudo se resume à insanidade individual, nunca vemos a loucura que é todo um país viciado na violência. Afinal, se as únicas certezas na vida são a morte e os impostos, por que não lucrar com isso?
   Que Deus abençoe a América.  

sexta-feira, 18 de março de 2016

O Sol da Liberdade




Ouço os pastores, as panelas dos ricos, Bolsominions, as viúvas da ditadura, o chamada às armas
Eles têm todo o direito de condenar sem julgamento, mas esquecem que sem da lei o consentimento
Com seu ódio inexpugnável são aberrações, crianças mimadas

Sim, a revolta explode em nosso peito por ter de assistir cada manobra absurda
É Presidente tentando livrar companheiro, é juiz quebrando a lei com escuta
Cada um tentando parecer mais correto, mas todos com a imagem cada vez mais suja

Não iremos lavar à jato o que se sujou com a corrupção de piche
A Petrobras permanece em pé, sangrando, mas vive
Sem nada a Temer, uns anseiam o impeachment para ter poder total
Enquanto no ninho dos tucanos, a merenda roubada engorda aves de rapina adestradas

A urna deve ser respeitada, a lei deve ser respeitada e a ordem deve ser restabelecida
Enquanto nada se prova todos são inocentes, ainda que suas caras lavadas estejam perdendo a tinta
Se existir algo para descobrir, as provas serão encontradas e a Justiça servida
Até lá, não dou as mãos para os radicais, nem para os heróis produzidos de beca pela mídia

Para mim a saída está à esquerda, com um sol menos pedante do que o vermelho dos operários
E mais humano do que o azul dos esqueletos da velha política
Sem compactuar com os vices sanguessugas da república

Lembre-se dos poucos que os nomes não foram citados pela polícia
Se formos realmente contra a corrupção serão eles os próximos a concorrer na fila
Da democracia onde o povo também se responsabiliza pelos políticos que cria

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

João e Maria


Ela despertou vagarosamente... Seus cílios longos se desentrelaçaram e deixaram a luz entrar em sua íris castanha cor de mel. Mas ao abrir os olhos a menina demorou a entender o que estava acontecendo. Era como se sua alma tivesse fugido para um lugar muito longe e ainda não tivesse voltado em tempo de compreender o mundo ao seu redor. Tudo estava escuro e ameaçador como um sonho ainda, um sonho ruim. Assustada ela ouviu o ressonar de seu irmão, aquele barulho que acostumara a ouvir desde o útero de sua mãe e encontrou seu irmão deitado a seu lado, dormindo profundamente, imóvel. Ela engatinha até ele e coloca a cabeça sobre seu peito para ouvir seu coração. Ao fazer isso seus cabelos caem sobre o rosto dele e o cheiro doce dela o acorda com um sorriso. 

Ele a abraça e ela se deita sobre ele, confortável como um passarinho em seu ninho. Ele ri debochando dela. Ela lhe empurra de volta e olha ao redor, emburrada e também assustada. Eles conversam sem precisar falar, são íntimos, são um só.

Ele tenta lembrar o que aconteceu, sua cabeça dói e sua boca tem um gosto ruim. Ela também diz que se sente mal.. Os dois riem, mas não conseguem lembrar de muita coisa, só que eles estavam com seus pais em um piquenique...

Um relâmpago corta o céu e ilumina os dois em meio à clareira da floresta, o trovão faz ela gritar e ele pede para ela fazer silêncio - shhh... Começa a ventar e eles se dão conta que mais importante do que lembrar o que se passou é eles se preparem para o que está vindo. A brisa fria carrega o cheiro de chuva. Ele a abraça, ela treme um pouco pelo frio, um pouco pelo medo e um pouco pelo calor do corpo de seu irmão contra o seu que a faz se sentir melhor e a faz queimar também. Ele sempre foi o seu abrigo, aquele com quem ela sempre pode contar.

De mãos dadas ele a guia mata adentro para tentar encontrar algum lugar para se esconderem. Esta não era a primeira vez que eles ficavam sozinhos na floresta. Eles adoravam dar umas escapadas de tarde enquanto sua mãe estava ocupada com as tarefas de casa e seu pai no campo. Os dois iam até o riacho nadarem nus e comerem maçãs selvagens. Livres e sem pecados como crianças no paraíso. 

Entretanto desta vez era diferente. Eles nunca estiverem fora de casa após o pôr do sol e muito menos estiveram perdidos como agora. Sua mãe sempre ameaçava colocá-los de castigo por essas escapadas; no começo, com medo de não encontrar o caminho de volta, eles fizeram uma trilha com pedaços de pão e ao retornar descobriram que os pássaros tinham comido todos os pedaços e mesmo assim conseguiram encontrar o caminho de volta.

Eles não entendiam a razão de sua mãe ficar tão incomodada com eles por fugirem daquele jeito, mas a cada dia a menina se tornava mais mulher e a juventude nela desabrochava como uma bela flor rara. Até seu marido começava a olhar a menina de uma forma diferente, demorando com o canto dos olhos nas pernas dela, vendo o vento brincar de levantar seu vestido, acostumando-a a sentar no seu colo quando não mais convinha tratá-la como criancinha.

A chuva começava a cair com pingos pesados que estralavam nas folhas, o céu estava prestes a desabar. A roupa molhada colava no corpo e denunciavam as curvas do corpo dela e os músculos do dele. Se abraçaram ainda mais forte e correntes elétricas estalaram quando seus corpos se tocaram, algo dentro deles, uma ansiedade crescia. Quando todas as esperanças pareciam se esgotar eis que eles avistam uma cabana lhes convidando a entrar e se proteger da chuva.

Eles correm para entrar e a porta felizmente estava aberta. O primeiro golpe de sorte desde que acordaram e ali, seguros, começaram a descansar a mente e a se deixar levar pelo calor que crescia sob a pele. Ele ascendeu a lareira com a lenha que havia ali e com um pouco do óleo que restava em um lampião velho. Usando pedras criou faíscas que lamberam o líquido inflamável e consumiram de uma vez a madeira lhes aquecendo. As roupas ensopadas precisavam ser retiradas e deitados, nus, no chão sobre pedaços de couro que ele encontrara ali se abraçaram uma vez mais, mas dessa vez seus corpos não conseguiram impedir o desejo que lhes consumia.

Beijos desesperados, soluços sôfregos, gemidos abafados, a resistência esquálida, abrindo o corpo, entrando, ligando um ao outro, os dois sentiam-se como um só e agora eram, mesmo que ninguém pudesse compreender este sentimento. Suaram enquanto a tempestade do século desabava. Geou e eles ainda estavam ruborizados, cansados, exaustos, satisfeitos. Lambuzados um do outro, gozavam o sono dos justos com um gosto doce do pecado inocente na boca.

E assim, ao menos naquele instante, não importava mais que seus pais tivessem os enganado com um piquenique para abandoná-los. Estavam juntos, eram amados e seus corpos haviam experimentado o êxtase que só a entrega total pode conceber.