terça-feira, 30 de maio de 2017

A Derrota de Ares


A noite fria arrepiava a pele do lado de fora, mas dentro daquela tentativa de trazer o mítico conforto ébrio da ilha sem serpentes aos trópicos o ar era quente. Ao fantasiar com os pubs do Velho Mundo e dos da terra dos leprechauns alguém se empenhou em evocar este sonho de proporcionar uma tradição antiga de se embriagar começando pela fachada com portas de madeira enegrecida trabalhada. Naturalmente a cor do interior era verde escura como a de um trevo de quatro folhas que cresce sob a sombra, se existissem trevos de quatro folhas. E havia ainda o balcão de madeira, as marcas importadas nas prateleiras, a decoração cheia de coisas do além-mar. Aquele pub representava mais o ideal de um pub do que a grande maioria dos pubs ingleses e escoceses, pocilgas subterrâneas e porões úmidos e fétidos. Os celtas, os vikings, toda a cultura medieval das tabernas ajudaram a criar no imaginário mortal um paraíso de alegria e indulgência que só os bares poderiam proporcionar. Lembrou-se de seu amigo Dionísio e riu, ninguém imaginava o quanto ele se daria bem nos tempos que viriam. Afinal, entre o amor e a guerra todos precisam esquecer seus traumas e dores e nada melhor do que procurar esta trégua com a memória no fundo de uma garrafa. Ele entendia isso agora. Sentia saudades do amigo, mas ele se fora há tanto tempo que quase não sentia remorso pelo que fizera.

Enquanto bebia e ria com os seus mais novos amigos de infância (era incrível como a bebida e os entorpecentes uniam as pessoas e criavam intimidade) a TV mostrava uma luta de UFC onde dois grandes nomes da violência do entretenimento travestida de esporte tinham desistido de se enfrentar. Os gladiadores modernos explicavam diante de flashes e câmeras que simplesmente não viam mais razão em lutar. Entretanto se não bastasse esse registro bizarro, a transmissão foi interrompida por uma notícia histórica: a Coréia do Norte e a Coréia do Sul acabavam de fazer um acordo de paz inédito e abriam suas fronteiras bem como no Oriente Médio as guerras seculares finalmente terminavam com um acordo entre líderes religiosos e políticos de um cessar fogo imediato e perpétuo. 

Todos comemoravam se abraçando e bebendo ainda mais e beijos nasciam desta atração de corpos. Parecia ter em sua companhia não pessoas e sim sátiros e ninfas. A comparação lhe fez rir-se, como seria bom se fosse verdade. Ele estava se divertindo como nunca, quem diria que uma folga seria tão prazerosa? O mundo não iria acabar se ele relaxasse um pouco, aprendera que poderia ceder se fosse por um bom motivo: como cair nos encantos de Afrodite. Jamais ele teria alguém como ela, ele sabia da dura realidade, mas ninguém poderia persuadi-lo de tentar encontrar uma substituta... ou milhares. As chamas da paixão e da batalha queimam insaciáveis e o mundo estava ao seu dispor. E amar uma mulher comprometida só adicionava mais lenha naquela fogueira eterna.

O sino tocara e chegava a hora de fechar as portas. Mas naquela rua ninguém parava se não quisesse e se tivesse como bancar a sua devassidão. Bastava manter-se consciente o bastante para não acabar como o fundador do império romano morto por sua esposa e que nomeava aquela rua embora ninguém soubesse sua história. Contra Cronos ninguém vence e mortais e deuses são engolidos por ele ora ou outra, o grande déspota castrado pelo próprio filho que esquecera o próprio nome e apenas cumpria o seu dever de devorar a tudo e a todos apagado como todas as outras lendas e contos. Não havia ninguém mais da velha guarda. Só ele resistira como tinha que ser. E agora o velho soldado queria descansar e gozar o tempo que ainda lhe restava. Nem mesmo ele, a mais natural das emoções humanas iria sobreviver. O sadismo, o derramamento de sangue estava por acabar. E para comemorar o fim de todas as coisas correu para o templo de Pan, o primeiro a cair, um grande casarão que honrava as prostitutas da antiguidade.

Lá o cheiro de vulgaridade e promiscuidade fez os seus sentidos despertarem. Não havia nada que os mortais pudessem inventar que fosse melhor e mais forte do que o doce gosto do vinho divino, do sangue dos inimigos, do hidromel e do néctar da vulva de uma deusa. Mesmo Héstia, a casta, ao ser estuprada detinha um aroma e um sabor indescritível. Mesmo assim as dançarinas ali poderiam lhe fazer lembrar destas experiências com mais detalhes e só isso justificava sua presença naquele prostíbulo. E o desespero dos homens ao encarar mulheres tão poderosas era incrivelmente afrodisíaco como os náufragos ao se depararem com as belas e terríveis amazonas. E pensar que os descobridores desta terra acharam que a floresta repleta de mosquitos e que nunca deixa de chover seria a terra de tais guerreiras. Tão tolos e tão inocentes. Os mortais eram uma criação absurdamente divertida por nunca deixar de surpreender. Ao pensar nisso quase se arrependeu de ter dado cabo de Prometeu, que roubou o fogo do Olimpo para entregar a estes vermes com vida.

Passeou e conversou com as mulheres ouvindo-as mentir doces mentiras baratas de que ele era o homem mais belo que já conheceram e que estavam loucas para galopá-lo. No entanto aquelas palavras de adoração fajuta fazia o seu ego faiscar, como quando pagavam grandes sacrifícios a sua imagem para garantir sucesso nas batalhas. Ele jamais, contudo, garantiu vitórias. Vitórias eram obtidas através de estratégia e ele não pensava para agir. Simplesmente inspirava o ódio puro e simples no coração dos guerreiros, como nos espartanos e os berserkers. Estratégia era com Atena, a querida Atena, que mesmo com toda a sua sabedoria não pode evitar seu fim ante a espada do deus da guerra. E de ser violada por ele antes de morrer e desaparecer. Ah, lembranças, lembranças tão queridas...

Escolheu as mais belas e depravadas e seguiu para o quarto e lá chafurdou entre os lençóis por horas. Dinheiro não era problema, afinal, para quem possuía a Cornucópia nada era impossível. E enquanto proporcionava os maiores orgasmos daquelas fêmeas quase as fazendo morrer de exaustão e prazer o mundo ia esfriando e deixando de ser o que era. Os predadores do planeta morreram em poucas horas, famintos e incapazes de caçar e atacar os outros animais. As plantas, claro, por um breve tempo floresceriam até a população de herbívoros destruir o ecossistema e tornar o mundo estéril. Até o último instante porém Ares teria a sua aposentadoria fornicando e quando não houvesse mais humanos para usar ele morreria se masturbando e lembrando de toda a sua existência e de todas as vidas que tirou e de todo o prazer que o sexo e a violência lhe garantiram. A paz e a passividade enterrariam a tudo e a todos e condenariam a vida no planeta. Gaia iria dormir o sono sem sonhos.

Antes do apocalipse, todavia, já amanhecia e as padarias abriam. Chegava a hora de comer um pão com manteiga na chapa e tomar um pingado na terra da garoa. Mais um dia de luta surgia para o deus que desistira de lutar contra seu destino. Agora era hora de aproveitar enquanto podia os louros da vitória. Vencera e exterminara todo o panteão e enterrara-os no Olimpo. Viveria como e com os mortais até o fim e não mais lhes invejaria a urgência de viver já que toda criança que nasce sabe que eventualmente morrerá. Agora ele também entende como é conceber o próprio fim e sorri pela oportunidade de conhecer a mortalidade. Depois de garantir que todos os deuses aprendessem essa lição agora era a sua hora de aprender que todos são derrotados e que o que vale é o que fazemos até beijar a lona de vez.
 

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