quinta-feira, 12 de julho de 2018

MORTE BRANCA


O despertar é lento e perigoso. Voltar do limbo dos sonhos sempre resgata memórias antigas de pecados inomináveis, lembranças que ele daria tudo e sacrificou tudo para esquecer e que a cada noite voltam para assombrá-lo, sem falta. Finalmente na segurança da solidão ele se dá conta de onde está. Os dentes cerrados relaxam no maxilar duro como alguém que sofre de bruxismo. A respiração rápida como a de um cão com raiva que baba selvagem e louco se acalma. Os punhos fechados se abrem e a consciência se ergue ante ao caos da confusão: mais um dia começa. 

Não importa se ele vive como um sem-teto, dormindo em um saco de dormir no chão de um lugar abandonado com um barril enferrujado queimando lixo para aquecê-lo do frio noturno capaz de matar. Todos se foram para longe e aquela cidade estava remota, ele tinha aquele lugar todo para si. Durante o inverno ele vivia nas sobras da civilização que fugia das temperaturas congelantes, tal qual o último círculo do inferno ele estava condenado como Lúcifer à desolação. Era o mais próximo da humanidade que ele ousava se aproximar.

Caminhar e procurar sobras de comida para sobreviver a mais um dia naquele cenário fazia-o lembrar de quando assistiu pela TV o desastre de Chernobyl. De como as pessoas tiveram que deixar suas casas para trás e de como a radiação mudou os animais transformando-os em aberrações, em monstros... como ele. Não, não como ele. Nada poderia ser pior do que acontecera consigo, ele de fato era um amaldiçoado. Mesmo assim desejava viver em paz e falhou inúmeras vezes ao tentar tirar a própria vida. Então conseguiu uma maneira de ficar longe dos seus instintos e aprendeu que onde não há ninguém não há como haver morte, exceto a sua. E esta ele aceitava de bom grado desde que não fosse por suas próprias mãos.

A fome não se saciava com os enlatados que encontrava nas despensas, todos saiam e esqueciam coisas e quando voltavam nem se lembravam de como as coisas estavam. Seria um sonho viver ali para sempre, no frio, na luz que ardia os olhos ao se refletir na neve. Pensou inclusive em ir para Norilsk viver meses sem o pesadelo da noite. Porém ele sabia que não podia se sentir confortável demais. Uma hora a noite chega e quando ela vem a Besta iria tentar enganá-lo a se descuidar e liberá-la uma vez mais. E ele havia prometido que isso jamais iria acontecer novamente. Se não pudesse agrilhoar seu demônio interior, dessa vez ele apertaria o gatilho do rifle e daria cabo de sua vida de uma vez por todas. 

A fome não deixa pensar direito. É carne e sangue que ela demanda. Então ele vai checar suas armadilhas. Quem sabe hoje ele não teria sorte? Horas se passam e nada. Os animais pressentem sua presença, seu cheiro, entendem que há um predador na área e fogem. A natureza sente seu rastro que macula o ar gelado, ele, a coisa que não deveria existir. Então, sobra caçar. O rifle está carregado, falta encontrar um bom ponto na floresta onde o vento não o denuncie para finalmente se saciar.

A espera é longa, sem se mexer, aguardando. A cabeça conjecturando possibilidades, considerando hipóteses, memórias de uma vida toda estraçalhada deixada para trás voltando como fantasmas para assombrar. Sem descanso de dia ou de noite ele está sempre a um passo de perder o controle, de enlouquecer. Eles nunca deixam seus pensamentos e ele nunca se perdoará pelo que fez. Mesmo que não tenha sido de fato ele, mas o outro que o habita.

Finalmente um cervo surge e ele camuflado na neve se prepara. Mira sem usar luneta, prende a respiração e atira. Ele se lembra da história do "Morte Branca", o soldado finlandês e maior franco-atirador que já existiu. Como ele, sua habilidade em caçar e matar era lendária, mas não com o rifle. Com as próprias mãos.

Um tiro rasga o ar e acerta em cheio o coração do animal que cai sem entender de onde veio a morte. A presa sangra na neve e ao se aproximar e sentir o cheiro do sangue suas mãos começam a tremer. Ele respira fundo o ar que chega a machucar os pulmões por causa do frio. Controle é tudo, mas a cada noite fica mais difícil. Hoje é um daqueles dias que ele não consegue estar no controle por completo. 

De repente ele se joga no chão e rasteja selvagemente para a carcaça e bebe o sangue ainda quente que escorre por sua garganta e morde a carne crua sentindo a fibra dos músculos se romperem em seus dentes. Um deleite. Nada no mundo será tão bom e tão cruel quanto ceder aos seus instintos mais básicos e selvagens. E é neste momento de fraqueza e loucura que ele escuta com seus sentidos aguçados alguma coisa na floresta. E sua alma toma um choque. 

Ele vê uma criança assustada e suja atrás de uns arbustos logo a frente. Os mesmos olhos grandes como o de seu filho e a lembrança de desmembrá-lo e sentir o gosto de sua carne macia e doce lhe deixa alvoroçado. As grades da prisão interior se rompem e a criatura toma controle. Ele avança em quatro patas rapidamente para um banquete voraz e o horror no rosto inocente ressurge para assombrá-lo mais uma vez. Ele jamais vai ser capaz de se perdoar pelo que fez com seu filho. 

Finalmente acorda. O pesadelo passou. O gosto na sua boca é recente, mas pode ser apenas a lembrança do pecado tentando lhe seduzir. Esta será uma noite de lua cheia e durante as poucas horas do dia ele terá que tomar uma decisão. Será hoje que apertará o gatilho? 

Enquanto não se decide a fome lhe faz começar tudo de novo sem realmente nunca saber o que é realidade e o que é sonho, vontade ou lembrança. 

segunda-feira, 9 de julho de 2018

"A Aparição" - Capítulo IV


A noite veio e com ela a terrível tempestade. As gotas empunhadas pelo vento eram navalhas a cortar a pele. As fardas remendadas grudavam no corpo enquanto as botas afundavam na lama. As mãos tremiam e os dentes batiam sem controle. Os soldados se reuniram lado a lado para se aquecer embaixo de coberturas improvisadas. A água fazia o equipamento pesar ainda mais, cansando o corpo e quebrando o espírito. Enquanto a chuva caísse a batalha teria que esperar.

Os soldados de São Paulo, jovens universitários inspirados pela paixão da luta pela liberdade mal sabiam o que esperar da força sulista. Iludidos sonhavam com vitória.

Mesmo esperando a chegada do trem de Getúlio com o grosso do exército os sulistas já haviam instalado sentinelas e canhões na margem oposta do rio Itararé. Os números eram de três soldados sulistas para um paulista. Os golpistas aguardavam ansiosos uma trégua da tormenta para poderem lançar seu ataque. Eles varreriam aquela cidadezinha do mapa de vez e adicionariam sangue à receita da política Café com Leite que até então vigorava no país.

Assim fora anunciado aquele embate: como a maior batalha das Américas. No entanto a verdade é que se esperava um massacre. São Paulo fora deixado sozinho para enfrentar as forças do sul e só o seu orgulho lhe impedia de desistir. Enquanto isso os civis fugiam com medo. As famílias que não puderam partir se trancavam nas casas. As ruas de terra e paralelepípedos estavam desertas. Não ouvia-se nada na até então agitada estação de trem. Uma tensão invisível era sentida por todos. Tratava-se de um estado de sítio contra um vilarejo que aguardava ser dizimado, destruído, que iria se tornar cinzas como se falava no rádio. Todos sabiam que seu fim estava próximo. A chuva era a única coisa que adiava o inevitável.

Nada era pior entretanto do que a vida nas trincheiras. Lutar-se-ia aos moldes da Primeira Guerra Mundial: cada trincheira era uma cova improvisada para os combatentes que nela aguardavam seu destino. A tática que poderia auxiliar o lado paulista era a mesma dos trezentos de Esparta nas Termópilas que usaram o terreno a seu favor para reduzir a vantagem inimiga em números os forçando a cruzar uma única passagem estreita e encará-los de igual para igual. Existiam poucos acessos através da Barreira – o abismo que divide os Estados de São Paulo e Paraná – e avançar por eles diminuiria  a vantagem dos soldados gaúchos. As águas revoltosas do Rio Itararé seriam o descanso final dos combatentes de ambos os lados. As famílias não reaveriam os corpos de seus filhos, aquela batalha custaria tudo.

Após longas e custosas horas de tempestade os soldados estavam encharcados, exaustos e gélidos. Ao cessar o dilúvio eles se prepararam para iniciar a batalha tão ansiosamente anunciada, derrotados antes mesmo de lutar. O espetáculo não podia parar e o palco estava pronto para o sacrifício em prol do entretenimento midiático.

Contudo ao invés de bonança um véu se ergueu do Itararé cobrindo toda a região. Uma névoa mística que transformava o campo de batalha em uma dimensão paralela, fantasmagórica e sobrenatural criando um novo entrave para o combate direto. As mãos procuravam as armas, os dedos se aproximavam dos gatilhos dos rifles, as baionetas eram mantidas em riste, as adagas preparadas para enfrentar o que quer que surgisse ou saltasse daquela nuvem fria e poderosa que se espalhava das profundezas do leito do rio até o mais alto dos morros do cerrado propiciando camuflagem perfeita para um ataque surpresa. Aquela era uma oportunidade única para os inimigos rastejarem escondidos até as trincheiras do lado paulista e surpreenderem seus inexperientes combatentes os rendendo e fuzilando à queima-roupa. Os estudantes estavam em desvantagem numérica e estratégica e os comandantes sabiam disso. Alguém precisava se certificar que as sentinelas inimigas continuavam imóveis.

 Um soldado das trincheiras mais avançadas foi designado para investigar em meio à escuridão e o vapor a posição inimiga e ele mesmo sabendo que aquilo provavelmente custaria sua vida não se negou em cumprir seu papel para defender o país e a democracia. O patriotismo era o seu coveiro e a ignorância seu escudo. A mensagem dos comandantes era clara e com abraços de admiração dos colegas ele se despediu e pediu para que dissessem à sua mãe que ela se orgulhasse de seu filho e que os conterrâneos lembrassem seu nome. Ali nasceria um mártir da liberdade, um herói nacional.

Sozinho ele adentrou esgueirando-se por entre o arame farpado a terra de ninguém que separava a maior passagem que ligava as margens do Rio Itararé e dividia os Estados do Paraná e São Paulo. Quando ninguém podia mais ver seu rosto ele finalmente se permitiu rolar as lágrimas que até então aprisionara. Como um condenado que sobe para o cadafalso ele caminhava para encarar seu destino final.

Nova espera mais cruel do que a anterior se sucedeu ao aguardar o soldado raso que não retornava com notícias para o front. Nenhum tiro era ouvido para mostrar quantos passos ele teria dado antes de ser abatido. Será que ele teria fugido? Ou pior, será que ele teria sido rendido pelos gaúchos?

Não, ele não era um covarde e jamais cairia sem lutar. A hora mais escura que antecede a alvorada se aproximava quando finalmente o rapaz retornou cambaleando como um regressado dos mortos o que fez os seus colegas quase o alvejarem o confundindo com um inimigo. Seus olhos estavam arregalados e sua boca aberta deixava escorrer saliva em uma expressão patética de pura ausência de consciência. Era como se o seu sistema nervoso devido à exaustão e pressão tivesse simplesmente se fechado deixando apenas as capacidades motoras básicas ativas. Ao ser resgatado ninguém conseguia fazê-lo falar e tão pouco parecia que ele havia feito contato com o inimigo, era mais como se ele tivesse visto algo inexplicável, sobrenatural e tivesse sucumbido ante a presença do que quer que tivesse se apresentado a ele. Adentrara um estado de catatonia quase que absoluta. Estava preso em seu mundo interior, perdido em uma batalha própria de onde nunca mais conseguiria sair o mesmo.

O levaram para longe da área de combate e sem condições para tirá-lo do front até o dia raiar despacharam-no para a gruta para aguardar por ajuda médica. Até então nenhum tiro havia sido dado quando o deitaram aos pés do lago natural da gruta da Barreira sob os olhares das andorinhas escondidas nas reentrâncias das paredes. Havia um religioso na tropa que ficou com ele velando seu corpo porque sua mente estava em algum lugar muito longe dali e era mais do que certo dizer que onde quer que ela percorresse, claramente sofria. Seu semblante agoniado e feições retorcidas denunciavam um suplício absurdo. O que o soldado devoto relatou para as autoridades depois foi totalmente apagado dos registros militares.

O rapaz despertou de seu estado exatamente quando os raios de sol adentraram a abertura do alto da gruta no lago. Ele abriu os olhos lentamente e ao ver tal cena disse avistar naquela luz a imagem de uma mulher e que ela teria lhe revelado em sonho o fim dos tempos. O religioso viu o rapaz começar a falar em várias línguas desconhecidas e reconheceu ao menos entre elas uma, o francês, e percebeu que ele sussurrava implorando para que lhe matassem. Por conhecer a história de Nossa Senhora de Lourdes o religioso relatou que o soldado teria tido uma revelação semelhante à menina francesa interpretando à sua maneira o acontecido. O religioso que depois acabou por se tornar ateu omitiu por conselho dos seus superiores todo o horror que vira estampado nos olhos do jovem que cometeu suicídio no manicômio que fora internado logo depois. A descrição da mulher na luz foi apontada mais tarde pelos arquivistas do processo na ditadura de Getúlio por se assemelhar em muito ao perfil de Marie Foiz, a argelina procurada pelo governo francês que teria fugido na companhia do marido para a gruta no começo do século. Uma coincidência insólita, apenas, concluíram já que ela e o marido tinham sido dados como mortos há anos pelo governo francês que foi devidamente consultado.

A cidade de Itararé no fim foi poupada da batalha e ridicularizada pela História por ser o centro da revolução que se encerrou sem disparar sequer um tiro. São Paulo se rendeu às forças de Getúlio que se tornou Presidente do Brasil ao pisar na estação ferroviária Gare Sorocabana de Itararé.

O boato sobre a visão ocorrida em 1930 durante a tensão das forças nas margens do Rio Itararé foi a semente do tido milagre até hoje repetido e relatado por fiéis da aparição de Nossa Senhora de Lourdes na gruta da Barreira. A história ganhou tamanha proporção que em 1939 uma estátua foi entronada sobre o lago onde na luz que adentra da abertura na cobertura da caverna dizem ser possível ver a tal figura feminina.

Até hoje romeiros visitam e oram para o que quer que habite a gruta reforçando a existência através dos tempos de uma força misteriosa que emana das águas e das profundezas. A presença de algo inexplicável na gruta é inegável e cabe a cada um tirar suas próprias conclusões se é que é possível para nós compreender o que quer que seja que fez daquele lugar sua morada.