A noite veio e com ela a terrível tempestade. As gotas empunhadas pelo vento eram navalhas a cortar a pele. As fardas
remendadas grudavam no corpo enquanto as botas afundavam na lama. As mãos tremiam e os dentes batiam sem controle. Os soldados se
reuniram lado a lado para se aquecer embaixo de coberturas improvisadas. A água fazia o
equipamento pesar ainda mais, cansando o corpo e quebrando o espírito. Enquanto
a chuva caísse a batalha teria que esperar.
Os soldados de
São Paulo, jovens universitários inspirados pela paixão da luta pela liberdade
mal sabiam o que esperar da força sulista. Iludidos sonhavam com vitória.
Mesmo esperando
a chegada do trem de Getúlio com o grosso do exército os sulistas já haviam
instalado sentinelas e canhões na margem oposta do rio Itararé. Os números eram
de três soldados sulistas para um paulista. Os golpistas aguardavam ansiosos uma
trégua da tormenta para poderem lançar seu ataque. Eles varreriam aquela
cidadezinha do mapa de vez e adicionariam sangue à receita da política Café com
Leite que até então vigorava no país.
Assim fora anunciado
aquele embate: como a maior batalha das Américas. No entanto a verdade é que se
esperava um massacre. São Paulo fora deixado sozinho para enfrentar as forças
do sul e só o seu orgulho lhe impedia de desistir. Enquanto isso os civis fugiam
com medo. As famílias que não puderam partir se trancavam nas casas. As ruas de
terra e paralelepípedos estavam desertas. Não ouvia-se nada na até então
agitada estação de trem. Uma tensão invisível era sentida por todos. Tratava-se
de um estado de sítio contra um vilarejo que aguardava ser dizimado, destruído,
que iria se tornar cinzas como se falava no rádio. Todos sabiam que seu fim estava
próximo. A chuva era a única coisa que adiava o inevitável.
Nada era pior
entretanto do que a vida nas trincheiras. Lutar-se-ia aos moldes da Primeira
Guerra Mundial: cada trincheira era uma cova improvisada para os combatentes
que nela aguardavam seu destino. A tática que poderia auxiliar o lado paulista
era a mesma dos trezentos de Esparta nas Termópilas que usaram o terreno a seu
favor para reduzir a vantagem inimiga em números os forçando a cruzar uma única
passagem estreita e encará-los de igual para igual. Existiam poucos acessos
através da Barreira – o abismo que divide os Estados de São Paulo e Paraná – e
avançar por eles diminuiria a vantagem
dos soldados gaúchos. As águas revoltosas do Rio Itararé seriam o descanso
final dos combatentes de ambos os lados. As famílias não reaveriam os corpos de
seus filhos, aquela batalha custaria tudo.
Após longas e
custosas horas de tempestade os soldados estavam encharcados, exaustos e
gélidos. Ao cessar o dilúvio eles se prepararam para iniciar a batalha tão
ansiosamente anunciada, derrotados antes mesmo de lutar. O espetáculo não podia
parar e o palco estava pronto para o sacrifício em prol do entretenimento
midiático.
Contudo ao invés
de bonança um véu se ergueu do Itararé cobrindo toda a região. Uma névoa
mística que transformava o campo de batalha em uma dimensão paralela,
fantasmagórica e sobrenatural criando um novo entrave para o combate direto. As
mãos procuravam as armas, os dedos se aproximavam dos gatilhos dos rifles, as
baionetas eram mantidas em riste, as adagas preparadas para enfrentar o que
quer que surgisse ou saltasse daquela nuvem fria e poderosa que se espalhava
das profundezas do leito do rio até o mais alto dos morros do cerrado
propiciando camuflagem perfeita para um ataque surpresa. Aquela era uma
oportunidade única para os inimigos rastejarem escondidos até as trincheiras do
lado paulista e surpreenderem seus inexperientes combatentes os rendendo e
fuzilando à queima-roupa. Os estudantes estavam em desvantagem numérica e
estratégica e os comandantes sabiam disso. Alguém precisava se certificar que
as sentinelas inimigas continuavam imóveis.
Um soldado das trincheiras mais avançadas foi
designado para investigar em meio à escuridão e o vapor a posição inimiga e ele
mesmo sabendo que aquilo provavelmente custaria sua vida não se negou em
cumprir seu papel para defender o país e a democracia. O patriotismo era o seu
coveiro e a ignorância seu escudo. A mensagem dos comandantes era clara e com
abraços de admiração dos colegas ele se despediu e pediu para que dissessem à
sua mãe que ela se orgulhasse de seu filho e que os conterrâneos lembrassem seu
nome. Ali nasceria um mártir da liberdade, um herói nacional.
Sozinho ele
adentrou esgueirando-se por entre o arame farpado a terra de ninguém que
separava a maior passagem que ligava as margens do Rio Itararé e dividia os
Estados do Paraná e São Paulo. Quando ninguém podia mais ver seu rosto ele
finalmente se permitiu rolar as lágrimas que até então aprisionara. Como um
condenado que sobe para o cadafalso ele caminhava para encarar seu destino
final.
Nova espera mais
cruel do que a anterior se sucedeu ao aguardar o soldado raso que não retornava
com notícias para o front. Nenhum tiro era ouvido para mostrar quantos passos
ele teria dado antes de ser abatido. Será que ele teria fugido? Ou pior, será
que ele teria sido rendido pelos gaúchos?
Não, ele não era
um covarde e jamais cairia sem lutar. A hora mais escura que antecede a alvorada
se aproximava quando finalmente o rapaz retornou cambaleando como um regressado
dos mortos o que fez os seus colegas quase o alvejarem o confundindo com um
inimigo. Seus olhos estavam arregalados e sua boca aberta deixava escorrer
saliva em uma expressão patética de pura ausência de consciência. Era como se o
seu sistema nervoso devido à exaustão e pressão tivesse simplesmente se fechado
deixando apenas as capacidades motoras básicas ativas. Ao ser resgatado ninguém
conseguia fazê-lo falar e tão pouco parecia que ele havia feito contato com o
inimigo, era mais como se ele tivesse visto algo inexplicável, sobrenatural e
tivesse sucumbido ante a presença do que quer que tivesse se apresentado a ele.
Adentrara um estado de catatonia quase que absoluta. Estava preso em seu mundo
interior, perdido em uma batalha própria de onde nunca mais conseguiria sair o
mesmo.
O levaram para
longe da área de combate e sem condições para tirá-lo do front até o dia raiar
despacharam-no para a gruta para aguardar por ajuda médica. Até então nenhum
tiro havia sido dado quando o deitaram aos pés do lago natural da gruta da
Barreira sob os olhares das andorinhas escondidas nas reentrâncias das paredes.
Havia um religioso na tropa que ficou com ele velando seu corpo porque sua
mente estava em algum lugar muito longe dali e era mais do que certo dizer que
onde quer que ela percorresse, claramente sofria. Seu semblante agoniado e
feições retorcidas denunciavam um suplício absurdo. O que o soldado devoto
relatou para as autoridades depois foi totalmente apagado dos registros
militares.
O rapaz
despertou de seu estado exatamente quando os raios de sol adentraram a abertura
do alto da gruta no lago. Ele abriu os olhos lentamente e ao ver tal cena disse
avistar naquela luz a imagem de uma mulher e que ela teria lhe revelado em
sonho o fim dos tempos. O religioso viu o rapaz começar a falar em várias
línguas desconhecidas e reconheceu ao menos entre elas uma, o francês, e
percebeu que ele sussurrava implorando para que lhe matassem. Por conhecer a
história de Nossa Senhora de Lourdes o religioso relatou que o soldado teria
tido uma revelação semelhante à menina francesa interpretando à sua maneira o
acontecido. O religioso que depois acabou por se tornar ateu omitiu por conselho
dos seus superiores todo o horror que vira estampado nos olhos do jovem que
cometeu suicídio no manicômio que fora internado logo depois. A descrição da
mulher na luz foi apontada mais tarde pelos arquivistas do processo na ditadura
de Getúlio por se assemelhar em muito ao perfil de Marie Foiz, a argelina
procurada pelo governo francês que teria fugido na companhia do marido para a
gruta no começo do século. Uma coincidência insólita, apenas, concluíram já que
ela e o marido tinham sido dados como mortos há anos pelo governo francês que
foi devidamente consultado.
A cidade de
Itararé no fim foi poupada da batalha e ridicularizada pela História por ser o
centro da revolução que se encerrou sem disparar sequer um tiro. São Paulo se
rendeu às forças de Getúlio que se tornou Presidente do Brasil ao pisar na
estação ferroviária Gare Sorocabana de Itararé.
O boato sobre a
visão ocorrida em 1930 durante a tensão das forças nas margens do Rio Itararé
foi a semente do tido milagre até hoje repetido e relatado por fiéis da
aparição de Nossa Senhora de Lourdes na gruta da Barreira. A história ganhou
tamanha proporção que em 1939 uma estátua foi entronada sobre o lago onde na
luz que adentra da abertura na cobertura da caverna dizem ser possível ver a
tal figura feminina.
Até hoje
romeiros visitam e oram para o que quer que habite a gruta reforçando a
existência através dos tempos de uma força misteriosa que emana das águas e das
profundezas. A presença de algo inexplicável na gruta é inegável e cabe a cada
um tirar suas próprias conclusões se é que é possível para nós compreender o
que quer que seja que fez daquele lugar sua morada.
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