O século vinte surgiu em um crescendo que culminou em um ápice de
insanidade e horror, uma confluência astral maligna onde todos os signos se
entrelaçaram para tecer os piores episódios da raça humana. Todos se afetaram
em maior ou menor grau. Artistas se inspiraram a retratar coisas que não
deveriam existir e criaram aberrações nunca antes sentidas. Crianças foram
marcadas para sempre por pesadelos inomináveis criando toda uma geração
traumatizada e psicóticos ouviram vozes ecoando na escuridão profetizando o que
estava por vir e revelando-lhes a verdade estarrecedora. As estrelas entraram
em formação para que a má influência do vazio eterno pudesse emanar e
enlouquecer as pobres e frágeis mentes neste planeta perdido no recanto escuro
do Universo.
Como um rio lúgubre que corre inadvertidamente até um oceano de
obliteração ou uma locomotiva seguindo inevitável pelos trilhos do destino nós
rumamos para duas grandes guerras mundiais, revoluções, quedas de impérios e
ascensão de superpotências e a criação da maior e mais terrível das armas
feitas por mãos mortais fazendo o medo da aniquilação se tornar palpável e real
nos corações de todos. O relógio do Juízo Final nunca esteve tão próximo da
meia-noite. Carcosa se aproximava.
Assim como encaramos esta possibilidade trágica de nossa extinção esta
revelação ante ao terror inominável e asqueroso como o de quem compreende e
aceita finalmente a sorte derradeira; – “Deixai toda esperança, vós que entrais”
(Inferno de Dante) – assim foi chocante e repugnante também a reação da
descrição no diário dos tropeiros ante as águas - um dos primeiros registros
que se tem notícia sobre Itararé - ao traçar o caminho do sul até as entranhas
do interior do estado de São Paulo: “Paramos à borda deste Itararé, rio muito
caudaloso, muito feio, vem sempre por baixo de pedras, muito perigoso de passar”
(27 de janeiro, 1845). A natureza foi afetada na sua raiz e criou o cenário
pervertido ideal onde finalmente o casulo da estrela negra que descansa abaixo
das águas do rio poderia eclodir o apocalipse. O tempo para o despertar dos
Grandes Antigos se aproximava.
***
O ramal de Itararé da Estrada de Ferro Sorocabana havia sido
construído sobre as águas deste mesmo rio com muito esforço e a custa de vidas
de vários trabalhadores. Os palanques de madeira que ajudaram a sustentar os
pontilhões de ferro para serem assentados pegaram fogo e um vagão chegou a
desmoronar de cima rolando pelas pedras abaixo sendo engolfado pelas gargantas
do percurso do rio. Mesmo assim o progresso é implacável e em 1930 os rumos do
país se cruzaram na gare de Itararé quando o golpista gaúcho Getúlio Vargas
desceu de seu trem e se tornou presidente de um Brasil rendido. O preço por
profanar a terra daquilo que descansa abaixo de Itararé com sua petulância e
fome de poder foi o suicídio décadas mais tarde. Este pequeno homem, Bonaparte
tupiniquim, teve um sonho na viagem de trem que mudou sua história e foi
visitado por uma presença inexplicável que ele apenas registrou em um diário
secreto que tentou queimar antes de tirar a sua vida no Palácio do Catete. Esta
informação foi varrida da História por conter um reflexo doentio passado de uma
mente colapsada prestes a tirar a própria vida. Não cabia à memória de um
déspota que se autointitulava o “Pai dos Pobres” o conhecimento das massas de
seus devaneios profundos e mórbidos. Algo tão perturbador e despropositado que
se assemelhava apenas talvez, às tentativas do III Reich em desvendar segredos místicos e criar círculos de estudos
de ocultismo. Entretanto, claro, quando um rei cai, os peões não mais precisam
seguir suas ordens. Por isso este tal documento sobreviveu, em partes ao menos,
e acabou por se tornar uma lenda entre especialistas sobre uma visão mais
complexa e sombria do homem por trás da figura construída pelo populismo. Seu
paradeiro e quanto a veracidade do que nele se supõe ter sido escrito é
impossível de localizar e certificar se perdendo durante os anos da ditadura
militar.
Na medida que o trem ia serpenteando até Itararé onde o conflito
iminente pairava sobre as margens onde as tropas enfrentavam a espera de ambos
os lados Getúlio sentia um peso na alma. Não era apenas a antecipação de
finalmente fazer valer a sua vontade, sua carreira tinha sido habilmente
construída na política e militarmente para este momento e todas as peças tinham
sido jogadas para que o xeque-mate contra São Paulo fosse dado e a esperança
era que ele não precisasse dizimar os últimos peões que se erguiam contra ele
para assumir o controle. Uma guerra civil não ajudaria em nada nos seus planos
e a morte de jovens é uma tragédia difícil de recuperar ante às famílias. Ele
precisava manipular o povo para que este o visse como um messias, como aquele
que estava disposto a tudo para salvá-los dos desmandos da política vigente de
oligarquias. Entretanto este mal-estar não era só ansiedade sobre os eventos
que iam se seguir, era algo mais inexplicável, possível descrever até como uma
sensação sobrenatural. Um sentimento quase palpável de uma presença maligna.
O líder das forças sulistas estudara o pouco que havia para saber
sobre o território onde a maior batalha da América Latina ocorreria e estava
preocupado sobre as poucas formas de transpor o rio Itararé. Esta ponte
principal poderia dar vantagem aos defensores paulistas que encurralariam as
suas em um gargalo. Seria melhor que eles desistissem antes. E a cada
centímetro que se aproximava noite adentro parecia ouvir algo sussurrar
rastejando sibilante em seu ouvido que a vitória estava a seu alcance. Bastava
ele sacrificar as vidas na batalha em Itararé, dizimar a cidade, e o país seria
seu. O temor é a ferramenta dos deuses, com ele se criou impérios que jamais
serão esquecidos. Os faraós, os sacrifícios incas, a morte molda o mundo. Abre
portas. Afinal, é a ordem quem arranja as peças no tabuleiro, mas é o caos que
as move.
Estes
pensamentos surgiam em sua mente, porém pareciam vir de outro lugar,
sugestionados por uma outra força, eles invadiam e brotavam sementes. Getúlio
estava repetindo estes pensamentos baixo, murmurando consigo mesmo em transe. E
uma palavra ininteligível começou a sair de sua boca: Nyar-la-tho-tep...
Nyar-la-tho-tep... Uma palavra não, um nome. Um nome que ele jamais esqueceria.
Pois aquilo propunha a ele a morte, o sacrifício de milhares de homens para lhe
garantir o poder absoluto. Algo demandava o derramamento de sangue no rio
Itararé. Algo que aguardara até o momento pacientemente, adormecido e preso,
vindo da escuridão eterna e que ansiava por se libertar ao preço de vidas
quando finalmente as conjunções estelares e planetárias lhe favoreciam. Lucien
e Marie Foiz já haviam deixado tudo preparado, o ritual fora feito e agora o
sacrifício era o único obstáculo que impedia a loucura de sair de sua prisão.
Por sorte esta
decisão que perturbou a sanidade de Getúlio não precisou ser feita, São Paulo
se rendeu antes dele chegar e nenhuma gota de sangue foi derramada. Mais tarde
o então Presidente ficou sabendo sobre o relato de um rapaz paulista que
enlouquecera aguardando o combate nas trincheiras e esta notícia o fez
rememorar os seus próprios pesadelos no trem indo para Itararé. Em seu anos de
exílio voluntário no final dos anos quarenta ele voltou a escrever em seu
diário secreto sobre a sensação que lhe tomou em Itararé. Aquilo que o cercou
aparentemente jamais lhe abandonou por completo. Aquela voz alienígena e
estranha que falava através de palavras e sons que não podiam ser produzidos
por humanos. Ele tomou uma decisão neste tempo que se caso voltasse à política
faria o que fosse preciso para completar seus desejos e preservar seu legado ou
morreria tentando. Como os escravos dos generais romanos repetiam aos ouvidos
de seus mestres: “Memento Mori” (lembre-se que você é mortal, lembre-se da
morte) - Vargas tinha incrustado em sua mente esta mensagem que ecoava na voz
horrenda e disforme de Nyarlathotep. Ele deixara de aceitar o pacto de derramar
sangue para ascender ao poder e mesmo assim havia conseguido o poder.
Entretanto ele parecia compreender que a sua importância e relevância no
cenário político e histórico diminuía cada vez mais. Seu nome era alvo de
campanhas oposicionistas e motivo de chacota. Não haveria respeito nem legado,
Vargas seria apagado dos anais e somente ter apagado Itararé do mapa poderia
ter-lhe garantido a chance de ser lembrado.
Mesmo sabendo
que sua derrocada estava próxima e que seus esforços poderiam muito bem não
vingar como já não o faziam, ele jurou para si mesmo antes de novamente ganhar
a sua última eleição que iria provar para a voz em sua cabeça que as pessoas se
lembrariam dele e que ele não precisava ter aceito o pacto com o diabo para conseguir
isso. As últimas coisas que Getúlio Vargas registrou antes de morrer no tal
diário secreto após escrever a carta de suicídio foi ter ouvido a risada insana
de Nyarlathotep e que tudo que ele queria era calá-la. A bala de seu revólver o
fez para sempre.