terça-feira, 15 de junho de 2021

Do Coma ao Despertar


 A letargia oriunda dos dias frios da época das chuvas - estes dias cinzentos, úmidos e desesperançosos que levam até os maiores predadores a se recolherem em seus covis para esperar dias melhores - se abateu pesadamente sobre ele com as primeiras garoas.

 Ele que cá entre nós, convenhamos, não é nenhum alfa, mas que com certeza poderíamos dizer que se encaixaria na descrição de animal de "porte" avantajado. O seu apelido de "Balofo" não fora cunhado à toa. 

 Junto deste desânimo atroz veio em conjunto uma melancolia tal qual Baudelaire descreveria como o seu conceito de "Spleen". As trevas da sua sombra lhe cobriram como um manto de tristeza, desânimo, sofrimento e apatia. O frio e a morte lhe abraçavam sussurrando coisas terríveis aos seus ouvidos. Ainda bem que nunca teve armas em casa e sempre se posicionou contra a posse das mesmas pois em momentos tenebrosos a falta de luz nos faz cogitar as piores ideias para solucionar problemas etéreos.  

 Lembre-se caro leitor que você está lendo um texto de um escritor com alma de artista, poeta. E como Fernando Pessoa confessou somos todos nós que pertencemos à essa estirpe de vira-latas, grandes mentirosos, e que mentimos com tamanho afinco que chegamos a acreditar nas inverdades que criamos. E é claro que brincando podemos dizer as mais duras verdades, como o bobo da corte que ao fazer graça para o Rei, o usa como alvo das piadas de forma que ele seja incapaz de perceber sua ironia e cinismo. Cabe a você leitor tentar fazer sentido do que lê e ao artista confundir.

 Todos estamos sofrendo e o escritor em questão não possui nenhuma exclusividade sobre tal sentimento, contudo gosta de pensar que pode transformá-lo em algo belo como uma ostra que faz da areia que lhe incomoda lindas pérolas. Ou pode se sujeitar a criar frases prontas e pensamentos bregas como este de auto-ajuda para esconder que ao invés de dizer que entrega pérolas aos porcos ele é quem é um porco que usa pérolas dos outros para disfarçar a lama do pouco que pertence à sua autoria.

 Antes do Minuano chegar para morrer na sua cidade trazendo o toque gélido do pólo sul que sempre carrega todo ano até aqui já lhe rondava os miasmas funestos dos fins dos tempos e Augusto dos Anjos em seus Versos Íntimos lhe fazia cada vez mais sentido. O país está afundado na desgraça, dividido, ferido e sangrando. Estamos testemunhando brasileiros dilacerando vidas e abrindo abismos sociais incalculáveis. O Homem é definitivamente o Lobo do Homem.

 Porém sejamos sinceros em dizer que no caso deste pequeno burguês o que lhe incomodava mais era a falta da vida boêmia, de sair, de celebrar a noite, os excessos e a vida ébria. Era agora aquele já fora conhecido por cantar nas ruas de dia e tirar a camiseta nos bares de noite um animal enjaulado e acuado. 

 Ninguém merece viver na solitária.

 E dominado então por este estado praticamente comatoso o banal escritor se lembrava das histórias de Sandman, de Neil Gaiman, onde o autor retrata um Morfeu, o senhor do Sonhar, que cuida de todos os detalhes dos sonhos da humanidade com servos próprios para facilitar cada aspecto dos sonhos de cada pessoa. Nestas histórias há um bibliotecário do mundo dos sonhos responsável por catalogar todas as obras de arte já feitas durante os sonhos e que jamais chegaram ao mundo desperto. E assim, com a preguiça corroendo a pobre alma do escritor ele fantasiava que ao menos no mundo do Sonhar estava ele a redigir grandes epopeias, contos e romances glamorosos e incríveis.

 Quantas vezes fora dormir cheio de ideias que se perderam em meio ao reino onírico e jamais foram reavidas quando de lá retornou. O sonho era como tomar um gole das águas do rio Lete.

 De olhos cerrados as Nornas descansavam e deixavam que os fios do destino do escritor corressem sabendo que o que se vivia ou criava no inconsciente pouco retornava para o mundo consciente. 

 Porém foi de tanto mergulhar e de mal voltar a si que preso entre os mundos durante dias de sono profundo e vigília semiconsciente que as Portas da Percepção se abriram e um novo escritor, este que agora lhes fala, surgiu.

 Renovado, ainda marcado pela pressão dos tempos tétricos, entretanto com a arte novamente tornando-se a minha forma de lidar com o impossível como Picasso e sua Guernica, me reencontro com o poeta em mim para tomar as rédeas do que me resta ainda de vida para que as Moiras possam desenrolar grandes histórias e assim os meus escritos possam ecoar eternamente no universo virtual. 

 Peço desculpas a mim mesmo pelo hiato entre o último texto e este, todavia a escrita está em mim como o sangue a correr nas minhas veias de maneira que assim como é impossível desassociar a tinta do papel, a arte em mim é perpétua.

 Não vou mais desperdiçar o meu tempo sem escrever.

 Porque mais importante do que ter alguém que leia e compartilhe os meus pergaminhos digitais é a necessidade de parir o que em mim é gerado.

 Sou um reflexo do mundo e sofro com ele e mesmo em seu pior momento não posso evitar de regurgitar versos e parágrafos, mesmo que eles sejam como o quadro de Dorian Gray que registram em si todos os pecados e dores do seu autor e da humanidade.

  "O Homem que entre lobos sente inevitável necessidade de também ser Fera..."

  A minha escrita sempre teve como objetivo me ajudar a lidar com o mundo nem que para isso tenha que destruir um pouco do mundo no processo.

 Não quero ajudar ninguém, caro leitor. Quero é que você se destrua. E de suas ruínas surja um leitor melhor e mais crítico tanto quanto eu sou ao reler os meus textos. 

 Inspirando orgulho ou vergonha eles são meus, minhas belas aberrações que refletem o mundo tortuoso que em mim habita e que habito.

 Deixemos os tentáculos anestesiantes da infelicidade para trás porque é isso que os imbecis querem.

 Um mundo sem arte onde eles possam ser os únicos tecelões de ideias e palavras. 

 E eu me recuso a deixar esta tarefa para tão baixos seres. 

 Prefiro escrever e arcar com as consequências de pensar por mim mesmo ao cabresto intelectual de cultuar um mito que reduz seus seguidores a uma massa cega, surda e burra. 

 Sendo assim se preparem que pretendo ainda escrever muita bobagem gozando da liberdade que me é de direito e quem não gostar que volte à Caverna de Platão para ser esquecido na escuridão da ignorância. 

quinta-feira, 11 de março de 2021

Os Gordos da Minha Vida

   

   Este é um texto que faz tempo que me ronda a mente, mas por algum motivo eu procrastinava sua escrita. Ao postergá-lo, imaginava eu o escrevendo em uma data especial e assim ao compartilhá-lo ele alcançaria mais pessoas e teria mais repercussão. Quem sabe talvez no meu aniversário como uma reflexão que indicasse que a soma de mais um ano de minha existência estivesse acumulando em mim sabedoria e desta forma eu poderia ter o meu ego massageado e conseguir me promover como escritor. Duas coisas que só demonstram que não tenho nada de sábio e que o tempo só consome e desgasta as coisas e as pessoas pois a sabedoria é fruto de um exercício constante e consciente de reflexão e humildade que eu estou longe de ser capaz de assumir. Seja como for, foi nesta madrugada que ao acordar antes do nascer do sol que eu tive coragem para sentar e começar a escrever sobre os gordos da minha vida.

   Com toda a certeza um dos fatores principais que me convenceram a me levantar e vir escrever ao invés de voltar a dormir é a constatação atual que todos nós estamos tendo sobre a brevidade da vida. Fazer planos futuros, mesmo que dentro de meses, nesta conjuntura é sempre uma promessa inocente e inconsequente já que não sabemos até quando seremos poupados do sorteio na grande loteria da morte. Tenho plena consciência que se caso eu me contaminar é o fim para mim. Um sujeito que sofre de dificuldade de respirar devido ao sobrepeso, bronquite, asma, rinite e de uns anos para cá de diabetes tipo 2 é um candidato a virar estatística com certeza. E este meu quadro clínico só demonstra o porquê eu sempre fui gordo desde criança, afinal, se respirar é um desafio, praticar qualquer atividade física um sofrimento, comer torna-se um alento. Me julguem o quanto quiserem, porém acho muito difícil quem na minha situação optasse por uma decisão diferente. Logo eu me concentrei em práticas mais individuais, passivas e confortáveis como jogar videogame, hábito que detenho desde o Atari; comer; ouvir música sendo sempre incentivado pela minha mãe - o meu primeiro contato com esse mundo se deu através de artistas e álbuns como Daniela Mercury, Chico César, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Chico Buarque, uma coletânea de Rock dos anos 70, uma coletânea de Blues, um álbum do Olodum, Skank e etc - e por último, um dos meus hábitos preferidos enquanto criança e jovem, assistir TV, comendo.

   Comecemos por um dos maiores, literalmente e abstratamente, dos gordos poderosos.

  Tim Maia é um fenômeno absurdo de um cara que tinha tudo para ser excluído e que com garra, atitude e talento de sobra se tornou um dos maiores ícones da música mundial. E percebendo tudo isso, aos poucos eu fui entendendo que era possível para um gordo chegar lá, mas que o mundo sempre colocaria barreiras e que o gordo paradoxalmente teria que se esforçar mais para conseguir chegar onde os outros menos volumosos chegavam mais facilmente. 

   Voltando ao início cronológico da minha história, na TV aberta o cara que eu considerava mais inteligente e legal e que eu sonhava um dia por ele ser entrevistado era o Jô Soares. Foi através dele que eu pude ver que se você fosse inteligente, mesmo que fosse gordo, você poderia ser respeitado e admirado. Todos que passavam pelo programa tinham uma reverência pelo seu entrevistador e eu ficava encantado com aquilo. Isso fez também que eu criasse um outro hábito que até hoje carrego que é de ser notívago, já que o Programa do Jô passava tarde da noite. Sendo assim, se eu não poderia ser o cara mais bonito, em forma e atraente eu decidi que eu poderia ser um cara inteligente e engraçado. Essa conclusão que muitos gordos chegam, principalmente na adolescência, é fruto de uma busca por uma resposta do bullying que nós sofremos. Se nós não poderíamos nos encaixar em um padrão, teríamos que ter outras coisas para oferecer. E eu aprendi rápido a desenvolver uma língua afiada que não devia nada ao Boca do Inferno ou o Bocage. No mesmo tempo que eu aprendia a argumentar e retrucar sendo extremamente sarcástico, cáustico e escroto quando preciso, algo que eu comecei inclusive a apreciar já que aparentemente eu tinha um certo talento para aquilo, eu encontrei o Rock. Com o Nevermind do Nirvana um novo mundo se abriu para mim onde aquela atitude que eu tinha como mecanismo de defesa era um estilo de vida. Antes de entender o que era ser alternativo eu era alternativo por falta de opção.

   Ainda na TV outro cara que descobri um pouco depois foi o Antônio Abujamra no programa Provocações na Cultura. Como não havia internet, era preciso garimpar a própria TV para encontrar entretenimento de melhor qualidade e propostas diferentes e eu saquei logo que as melhores coisas passavam na madrugada. O Abujamra era como o Jô, inteligentíssimo, contudo ele tinha um ar de desafiador, desconfortável, de acuar e realmente provocar o entrevistado que eu achei ainda mais parecido com a pessoa que eu estava me tornando. Até hoje procuro vídeos no Youtube de entrevistas do Jô e do Abujamra porque esses caras eram incríveis.

   Nos tempos de escola o meu apelido "Balofo" foi cunhado e o carrego até hoje com orgulho. Desde que descobri que o primeiro vocalista do Exodus, uma banda americana de Thrash (e uma das bandas que mais curto neste estilo), se chamava Paul Ballof eu comecei a ostentar esse meu apelido porque agora eu não detinha só um termo que tentava me ridicularizar pela minha forma, eu encontrara um nome artístico que iria definir a minha personalidade no palco. Eu comecei lá pelos treze, quatorze anos a minha primeira banda e já nela eu cantava uma música do Exodus e então aquilo me fez sentir poderoso, eu não era mais um cara gordo que as pessoas riam. Eu era uma entidade que defendia a liberdade de se viver como se quisesse e que enfrentava qualquer um que quisesse impor a sua vontade e verdade. Antes do NÖ CLASS eu já era inclassificável.

   Outro vocalista do metal, Andreas Geremia, da banda alemã de Thrash, Tankard, tem em sua banda muito do que eu trouxe para o NÖ CLASS. A bebedeira, a loucura, o humor, são muito parecidos. E este vocalista não coincidentemente era gordo e é por isso que eu digo que é um caminho natural para o gordo se tornar engraçado como forma de procurar aceitação. Com o tempo fui compreendendo que não dava para defender a loucura sem responsabilidade e que há temas que precisam ser tocados com cuidado. A vida sem freios dos anos 80 do Rock ficou lá e muito poucos sobreviveram e os que o fizeram carregam sequelas eternas. Então, ao me dar conta que ao subir no palco eu me tornava um exemplo, mesmo que um mal exemplo, eu entendi que eu poderia utilizar aquele espaço para transmitir um pouco do que eu acredito e assim nasceu o conceito da Horda Desclassificada, a intenção por trás das músicas próprias e os trabalho de fotografia do NÖ CLASS.

    Cada gordo que eu encontrava que era foda eu tentava gravar na memória e ter como referência porque não era fácil encontrar exemplos de sucesso. Foi assim com o Bud Spencer na porrada nos filmes de ação que tinham coreografias de luta tão complexas quanto as da Turma do Didi. No cinema, caras como o John Goodman, Brendan Gleeson e Brian Cox eram os atores que sempre faziam papeis de personagens relevantes, importantes, ameaçadores, engraçados ou que meramente pelo talento destes atores brilhavam e eu ficava maravilhado em como mesmo o gordo quase nunca sendo protagonista, ele estava de alguma forma sendo memorável através destes caras. Até no pornô, com o Ron Jeremy, os gordos estavam conquistando espaços. 

   Hoje nós temos o Mário Sérgio Cortella, o meu filósofo brasileiro moderno preferido, inteligente e cheio de classe. O próprio Pavarotti era um belo exemplar de um gordo poderoso e impecável. Minha mãe adora a música que ele canta com o U2, "Miss Sarajevo", e ela sonha comigo cantando essa música incluindo a parte em italiano do Pavarotti. Quando criança na hora do banheiro o chuveiro era o meu momento e eu cantava a plenos pulmões tudo que eu gostava, de ópera a Elis Regina e Queen e essa mistura toda me fez ser o gordo que eu sou hoje. Quem sabe não faço um cover na voz e violão, sozinho, de Miss Sarajevo, mesmo sabendo que o italiano vai sair macarrônico, só para fazer a minha mãe feliz.

   Sou um gordo que tem sua própria banda e canta e se apresenta sem pudores. E que mesmo sendo obsceno, não é inconsequente. Um professor que se espelha nos grandes pensadores que me serviram de inspiração para não só transmitir o conhecimento e sim fazer com que o conteúdo agregue sentido na vida dos alunos para que eles se lembrem das aulas, da matéria e de mim como um desenvolvimento de potencial que envolve entretenimento e informação. Um escritor que se encontrava até hoje com um bloqueio criativo sofrendo com todo o clima terrível que paira sobre nós neste momento triste e que acordou hoje inspirado para celebrar os gordos da minha vida que me inspiraram de alguma forma porque não sabe se vai durar até o aniversário. 

   E um gordo que vibrou ao ver o Thor não só desempenhando o papel negativo que costumam representar os gordos como pessoas desleixadas, acabadas e derrotadas, mas que também demonstrou que os gordos são pessoas merecedoras e podem ser herois sem precisar terem uma barriga de tanquinho. 

   Com certeza esqueci de muitos outros gordos importantes, eu queria mesmo é só relembrar e sugerir nomes que talvez as pessoas não se lembrem ou não conheçam de pessoas extremamente talentosas cada uma em seu campo de trabalho. Então me perdoem os gordos que por ventura eu não mencionei e que sejamos todos grandes grandiosos e que a nossa gula seja perdoada porque somos reféns de nossos pecados carnais. 

   De todos os erros que podemos cometer por excesso, comer é inegavelmente um dos mais saborosos.

   Que possamos ser saudáveis sem que tenhamos que nos enquadrar nos padrões e que ostentemos as nossas barrigas como conquistas de uma vida de quem sabe o que é viver sem fome e medo.

   Um bom dia a todos e tomem um café da manhã bem reforçado.

    

    

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

CRÔNICA ANACRÔNICA


Confesso que sou inegavelmente, acima e primeiramente, um artista. Desde sempre, de alma, assumir isso me parece ainda hoje uma constatação óbvia e também surpreendente. Sei disso desde criança. Sou a minha eterna companhia e por isso, por ter intimidade comigo mesmo, conhecendo os meus pensamentos, anseios, desejos, segredos e medos, sei quem sou e o que sou. É natural para mim ser essa pessoa estranha.

Porém quantas vezes não esbarrei em barreiras que de alguma forma intencionavam me enclausurar, me dissecar, catalogar e principalmente me desvendar me colocando em rótulos, me guardando em potes como se fosse possível mutilar a personalidade e fazer dela compotas de sabores distintos. Quando na música "Ordinary Man" do Ozzy Osborne o Elton John canta "They tried to kill my rock'n'roll..." (Eles tentaram matar o meu rock'n'roll...) é sobre isso que ele está falando. Pelo menos é assim que eu me relaciono com esse trecho.

Entendo que o desconhecido causa apreensão e pode ser encarado como uma ameaça. Mas se formos realmente sinceros conosco sabemos que por mais autoconhecimento que possamos desfrutar que nem sobre nós mesmos é possível afirmar certezas absolutas. Não sabemos ao certo o que somos capazes de fazer dependendo das circunstâncias e essa dúvida nos tira dos pedestais que construímos para nós mesmos e nos coloca no mesmo nível da ralé que menosprezamos. A verdade é incômoda e por isso é tão confortável se fechar dentro de parâmetros para se sentir seguro. Ninguém é cidadão de bem porque ninguém é sempre bom.

Não somos diferentes das melhores e das piores pessoas. Na verdade, as melhores e as piores pessoas não são muito diferentes entre si. Tudo depende do ponto de vista. Porque sempre trata-se primordialmente de pessoas. Não existem monstros, inimigos ou outras criaturas que mais nos atormentem do que a nós mesmos. Humanos são os arqui-inimigos de humanos e também seus salvadores. Um homem que acredita no próprio mito entende que está fazendo o melhor para os demais já que o escolheram para guiá-los e por isso, seus opositores jamais estarão à altura de sua megalomaníaca estatura. Para evitarmos exemplos tristes como esse precisamos entender a nós mesmos e assim entender as demais pessoas. 

Me lembro de quando era criança de ter medo dos adolescentes porque eles pareciam tão crueis uns com os outros e quando fui um, hoje, sei que fui tão idiota quanto qualquer adolescente que tenha me assustado enquanto criança. Este é um exemplo de reflexão tão esclarecedor quanto qualquer temporada de reality show. O mergulho no abismo pessoal acaba por nos mostrar revelações bombásticas que nos fariam querer cancelar qualquer pessoa, se acaso aquilo não se trata-se de nós mesmos. Nada como ser hipócrita para nos fazer sentir melhor sobre os nossos próprios problemas.

Fui um aluno que não gostava de estudar e me tornei professor. Tive professores admiráveis que marcaram a minha vida e talvez por isso me tornei esse paradoxo ambulante. Sou grato eternamente a eles porque com certeza a minha escolha de assumir esse papel tem a influência de seu trabalho. Mas me lembro claramente de falas quando comecei a fazer faculdade de gente dizendo que tinha pena de mim por escolher ser professor e que era uma profissão desmerecida e de pessoas frustradas e desoladas. Fazem dos professores mártires e mesmo quando tentam lhes mostrar respeito, os desrespeitam. Engraçado como me lembro dessas falas, mas não me recordo de quem as disse. Talvez porque a minha memória é convenientemente seletiva. Ou talvez seja porque realmente eram pessoas diminutas, desprezíveis e indignas de serem lembradas na minha saga épica pessoal.

E me lembro de colegas de aula que desrespeitavam os professores não porque tivessem algo contra eles, mas porque tinham problemas consigo mesmos. Feriam por estarem feridos. Essa tática é uma das primeiras que recorremos quando somos apresentados à selva social e é fácil perceber, depois de um certo treino, quando isso ocorre. Só não é fácil não se abalar e não permitir que o veneno alheio tire o nosso equilíbrio. E ninguém está imune a isso, nenhum professor ou aluno. Claro que estamos falando de uma relação entre adultos e jovens. É obrigação dos adulto serem maduros. Entretanto se perguntarmos por aí quantas pessoas conhecem professores que já choraram em sala de aula ou apresentaram comportamentos depressivos vocês vão entender a pressão que carregamos. Os atritos são invariavelmente complicados de se resolver e precisam ser revistos com menos julgamento e mais compreensão, já que nós estamos todos aprendendo. A lição é ter a humildade de reconhecer as falhas para fortalecer o espírito. Para nos curarmos. As palavras têm poder. E os professores sabem que mais importante do que tropeçar ou cair é não desistir de seguir em frente. 

Foi na escola que percebi que tinha talento com as palavras. Já pintei, desenhei, canto, toco violão, mas habilidade mesmo, com certeza é na escrita. Ser artista não requer habilidade. Porque você é o que você é independente das expectativas e comparações sociais. A arte não é uma disputa porque não é útil. A arte é inútil porque pode servir a qualquer propósito. Pode aflorar o melhor e o pior do ser humano e é exatamente por isso que é uma característica genuinamente humana. O mercado da arte é que quantifica likes, valores e repercussão. Quantas vezes recebi críticas e fui menosprezado porque estava fazendo o que gostava e segundo a noção do julgamento alheio eu não era bom o bastante. Eu faço aquilo que eu quero e o que eu gosto. Eu faço porque eu preciso fazer. E se isso incomoda, cumpre o papel da arte que é se conectar com os outros. A forma como lidamos com a expressão humana revela mais de nós mesmos do que da forma de expressão em si. E se expressar é mais do que gostar de se expressar, é uma necessidade. Eu defeco, urino, respiro e me expresso. E este texto é tão torto porque faz tempo que não escrevo e portanto estou escrevendo por necessidade, tendo mais uma vez uma recaída literária.

No ENEM fiz uma redação sobre como o Hino Nacional - embora o nosso hino seja um texto lindo que ao contrário de outros, não foca na celebração de vitórias bélicas e sim em outros traços do nosso país - tem uma construção não linear que me parece intencional para se fazer estranha à maioria das pessoas que não sabem cantá-lo por não compreendê-lo. Somos refugiados em nossa própria cultura porque com uma cultura tão rica e diversa que os padrões impostos para nos rotular acabaram nos fazendo estranhar a nossa própria identidade de ser plural. Estranhos em uma terra estranha. Não se preocupe também com isso, já que segundo Oscar Wilde "De perto ninguém é normal". 

Lembro de uma aula que preparei no começo da minha carreira como professor que ensinava sobre o conceito de crônica e citava a fala de Fernando Sabino que "Crônica é tudo que o autor chamar de crônica". Este gênero literário possui uma estrutura curta, opinião do autor e sempre apresenta uma ligação com um tempo histórico. Então aproveitando esta explicação queria dizer, só para respeitar a estrutura que acabei de apresentar, que estes meus pensamentos ocorrem no segundo ano de pandemia quando ainda no nosso país não sabemos quando todos seremos vacinados, estamos tão confusos como quando precisamos interpretar o nosso hino. E registro que temo pelas vidas de professores, equipe de profissionais escolares, alunos e familiares com a decisão estapafúrdia de volta às aulas presenciais mesmo sem termos todos vacinados.

E me despeço humildemente deste desabafo, me sentindo melhor por exercitar a escrita, esperando que mesmo que este texto tenha nascido para me tirar a angústia de precisar me expressar que ele de alguma forma consiga se conectar com outras pessoas e prolifere a reflexão para compartilhar o ato de se autoanalisar tanto quanto aprecio fazer comigo mesmo. E assim me considero a minha melhor companhia. Nem sempre concordo comigo, mas me entendo e aceito. Ao sermos sinceros conosco somos capazes de nos aceitar e entender como podemos melhorar. E assim, ao nos tornarmos melhores tornamos o mundo melhor.

E sim, isso é uma crônica. Só que anacrônica.