A HECATOMBE
ESTELAR
Capítulo – II
Debret
enfrentando a árdua estrada, exposto aos dissabores das intempéries acompanhado
por várias bestas de carga e peões com muito esforço alcançou o selvagem rio
Itararé.
Ao se deparar
com o desafio natural que os paredões de granito propunham, improvisaram uma
ponte com tábuas para vencer o desfiladeiro. As bestas eram guiadas uma a uma e
somente um homem e um animal podiam passar por vez até o outro lado. Nesse
trabalho um meninote que servia como batedor da expedição errou o passo e de
repente escorregou gritando sem que ninguém pudesse evitar sua queda
desaparecendo nas águas famintas. Aquilo mexeu com o ânimo de todos, ele era
muito querido pela companhia. Continuaram a travessia cabisbaixos, cautelosos e
em silêncio, até os cães e os burros pareciam enlutados.
Os homens então
ao cruzar o penhasco pediram para seu patrão uma parada, Debret assentiu em
respeito à morte do moleque em montar acampamento. Apearam em uma planície
próxima ao desfiladeiro, contudo, dormir propriamente dito poucos conseguiram e
muito mal. Além de ter que aproveitar a longa parada para evitar outras no
futuro da viagem, colhendo lenha, enchendo os cantis, os cães pareciam farejar
algo de ruim e não se calavam nem por um segundo, logo que roíam os ossos
chupados que os homens atiravam a eles voltavam a ladrar agitados,
impossibilitando a qualquer um o descanso merecido.
O violeiro da
companhia percebendo que não iria adiantar continuar a tentar pregar os olhos
foi se inspirando para cantar e contar histórias. Estava sentado junto ao fogo
e as mariposas que o rodeavam lembravam fadas sombrias a lhe sussurrar cantigas
de magia e mistério ao pé do ouvido. Coincidentemente ou não essas suas canções
ora e meia se remetiam ao mote da meninice perdida, falando nostalgicamente
sobre os tempos de infância e começo da vida adulta que se escorrem por nossos
dedos quando menos percebemos. Reanimados pela música os homens cantavam e
batucavam. Debret também vendo o quão inútil seria desperdiçar seu tempo tentando
dormir, quase tranquilo pela calmaria do local, decidiu aguçar o olhar e se
munir da paleta e pincéis para registrar o momento. Ao preparar suas tintas
lembrou-se das pinturas milenares que descobriu nos paredões do Jaguaricatu
onde homens primatas reverenciavam um sol negro e inspirou-se para, como seus
ancestrais, pintar os costumes de seus contemporâneos e pintou com detalhes um
perseverante e exausto carregador, o único, babando debaixo do chapéu.
Registrou também a maneira de prender as bagagens nos animais de carga e a
vista bucólica, triste e perene sob o céu claro e onírico de Itararé.
Talvez fosse a
estafa ou a energia estranha que pairava, impossível dizer por certo a origem
da visão que acometeu Debret. A brisa sussurrante o incomodava, quase podia
ouvir vozes nela. Das sombras e trevas sentia um calafrio como se algo o
rodeasse espreitando em
silêncio. Invejava a ignorância dos peões que celebravam o
momento, solenes pela perda recente, mas encantados por terem a oportunidade de
descansar e se lembrar do amigo. Ao observá-los viu uma pequena coruja cinzenta
cruzar o acampamento e levado por seu trajeto fitou para dentro da mata adiante
onde vaga-lumes fosforescentes iluminavam precariamente uma sombra. O vulto
possuía uma aura verde-feérica. Foi tudo muito rápido, somente um breve e
efêmero instante, contudo o suficiente para que o olhar recriminador de
angústia e dor da figura perturbasse Debret ao ver novamente o rapaz morto
afogado há pouco.
Tremia em
espasmos involuntários, suas mãos não detinham mais a suavidade e a maestria
adquirida por toda uma vida dedicada à arte de pintar. Suava frio, embora sua
pele ardesse, o coração parecia querer romper seu peito. Sentiu dedos leves
passeando por sua nuca e o hálito quente do rapaz a lhe acusar ao ouvido de
tê-lo abandonado. Veio a dor, mais terrível que qualquer coisa que o francês já
tivesse sentido antes. Podia ouvir a respiração ofegante do rapaz em desespero
enquanto tentava em vão lutar contra a morte.
Em febre, não
mais podendo sustentar o corpo caiu em convulsões ouvindo o lamento dos mortos.
No chão, sentia a terra pulsar como se abaixo do acampamento, enterrado no
inferno, um gigantesco coração estivesse batendo, lento, despertando enquanto o
seu próprio diminuía o ritmo. Vozes e som de águas batendo contra galerias
subterrâneas enchiam os ouvidos de Debret que estava no limite de sua sanidade.
Rapidamente os homens vieram ajudar, mas não havia nada que pudessem fazer. Os
homens se agruparam ao seu redor sem saber o que fazer para ajudar o patrão.
Ao abrir os
olhos lá estavam as constelações no céu escuro, porém o que Debret percebia era
a imensidão das trevas entre os pontos brilhantes e não mais a beleza das
estrelas. Com dificuldade levantou-se e descobriu-se sozinho, não havia sinal
do acampamento ou de sua companhia. Um vento frio soprava e nele ele ouviu
vozes, ao longe. Cânticos e gritos, encantamentos, reza, não sabia ao certo
como chamar aquilo, só sabia que aquilo lhe perturbava.
Sem escolha
resolveu seguir as vozes que o atraíram para a margem do rio que anteriormente
cruzara. Porém o terreno estava diferente, as águas não corriam entre os paredões
de pedra e sim sobre a planície brilhando como se fossem feitas de escamas
reluzentes. E próximo ao rio fogueiras ardiam, enormes e em seu redor sombras
dançavam em transe, enlouquecidas entoando palavras que Debret não compreendia,
mas temia. Ele se esgueirou entre as pedras até mais perto e avistou uma linda
mulher nativa que chorava e gritava raivosamente com o corpo de um guerreiro
nos braços. Ela o cobria de beijos como uma amante e cuspia em direção ao rio.
Ouviu então o
berro de animais, eram cabras selvagens que os homens daquela tribo bizarra
sacrificavam sem escrúpulos. Eles se banhavam com o sangue dos animais e
vestiam a carcaça deles e assim começavam a agir como bestas, urrando e se
debatendo como feras raivosas. Debret não entendia o que via, sabia contudo que
corria perigo e que deveria partir, mas não conseguia sair do lugar.
O chão
estremeceu com um abalo sísmico como se algo tivesse implodido sob a terra.
Então a poeira se ergueu e a terra começou a se rasgar no meio abrindo-se em um
abismo. O rio despencara para dentro daquela escuridão jorrando água para o
alto. Os índios gritavam e se jogavam contra o chão, corriam alucinados e
rogavam aos céus gritando: Itararé, Itararé!
Debret com
muito esforço conseguiu se afastar daquilo que ele descreveu para Saint-Hilaire
como uma cena dantesca - os índios em desespero pararam de dançar e começaram
um suicídio coletivo. Eles cortavam as próprias gargantas como haviam feito com
os animais e manchavam o solo de vermelho tombando às centenas.
Quando chegou a
uma distância que considerou segura olhou para trás e viu algo ainda mais
aterrador. Os céus se abriam e tentáculos colossais se agitavam daquela ferida,
ele não podia acreditar no que via. Choviam brasas incandescentes carbonizando
tudo que estava por perto, incendiando a mata e toda a tribo. Ventos tão fortes
quanto os de um furacão espalhavam a fumaça e as cinzas. Debret só conseguia
ouvir os gritos de dor e as palavras sendo repetidas incessantemente: “Itararé,
Itararé” quando o som de algo caindo e explodindo no chão o acordou.
Quando Debret
despertou sua companhia desacreditou ao vê-lo vivo e bem. Ele estava desnorteado
e não sabia explicar o que tinha se passado, os homens diziam sentir a presença
do mal com as garras fincadas em Debret.
Seguiram depois
para a aldeia de Itararé e lá Debret aprendeu que não fora o primeiro francês a
visitar aquelas paragens e que assim como ele, o botânico Saint-Hilaire também
havia contraído uma curiosidade inconveniente sobre o rio. Debret desistira das
incursões pelo interior do Brasil logo depois, cada vez que fechava os olhos
via a imagem da destruição da tribo e rememorava o terror que ainda carregava
consigo na memória.
Ao retornar à
França enviou cartas para Saint-Hilaire perguntando o que ele descobrira no
Brasil, na pequena aldeia próxima ao rio Itararé. Debret precisava de um
cúmplice para poder dividir suas experiências e entender melhor o que havia se
passado e o que Saint-Hilaire lhe revelou foi a história por trás da visão – a
lenda do rio Itararé.
Os dois
acabaram por se tornar amigos e trocaram várias cartas em segredo, até a morte
de Saint-Hilaire. Debret sentiu muito a perda do amigo, principalmente porque
Hilaire confessou-lhe que via além do véu que cobria seus olhos ao se aproximar
da morte e sabia que o demônio que descansava abaixo do rio maldito o esperava
e que Debret seria o próximo.
“_O Caos Rastejante nos aguarda” -
escreveu em sua última carta. Debret pouco antes de falecer pediu que
queimassem todas as cartas, queria esquecer aquela história e partir em paz, mas
seu criado não o obedeceu e guardou para si as correspondências visando
vendê-las e obter algum lucro em um futuro incerto sem seu senhor.