A SEMENTE
Prelúdio
Ninguém sabe ao certo quando o homem branco descobriu
a passagem mais acessível entre os paredões de granito do Rio Itararé que corroeu
seu leito transformando seu caminho em um abismo. Os bandeirantes podem ter
chegado perto ao explorarem o interior de São Paulo, contudo os indígenas
selvagens hostis aos grilhões e à cruz podem ter conseguido em uma primeira
tentativa impedir que a semente da civilização fosse plantada naquelas matas
virgens. Para muitos esta reação violenta dos guaianazes poderia ser um sinal
de defesa de domínio territorial, de preservação de seu espaço, contudo,
prova-se através de suas lendas que não fora isso que os motivara. Eles
consideravam aquela região amaldiçoada e se comportavam como guardiões do local
como sentinelas impedindo que a paz fosse perturbada e o mal despertasse e
estavam dispostos a morrer por isso.
Quando os tropeiros chegaram no século XVII criando o
Caminho do Viamão a situação era outra. A presença indígena já tinha sido
subjugada e a passagem por cima do Itararé já era utilizada ou ao menos de conhecimento
dos exploradores que rumavam para Sorocaba. Dificultosa, não raro a travessia
cobrava vidas e carga, mas não havia outra forma de transpor o desafio natural.
Os primeiros registros de passagem de tropeiros contam a má impressão dos
mesmos sobre a “Barreira” por sua sensação de opressão e mal-estar como um
ambiente devastador e deprimente. Os jesuítas tentaram mudar esta concepção ao
celebrar missas ali, porém a influência da bruxa Uariri que vivia na gruta do
rio era mais antiga e mais forte que o deus cristão vindo do além-mar.
A terra das três sesmarias doada em 1725 para
povoamento embora fértil traz o sangue do povo que ali viveu por eras
cultuando entidades sobrenaturais obscuras e resquícios desta adoração pagã
ainda sobrevive em pinturas rupestres em paredões e cavernas e demais lendas de
cidades próximas. Toda essa riqueza cultural teve um impacto mesmo que indireto
na criação de uma consciência coletiva da população que cresceu descrente de
esperança e fadada à aniquilação. Tal profecia quase se concretizou em 1930 e
os sobreviventes que ficaram conhecidos como covardes e entraram na história
ridicularizados só esperam a sorte mudar e o destino finalmente se cumprir.
Os artistas da cidade são comumente afetados por serem
mais sensíveis por essa névoa invisível e sofrem de sonhos febris e visões
perturbadoras, pesadelos vívidos e alucinações. Suicídios são comuns na cidade
e os que possuem uma chance fogem sem olhar para trás deste ninho envenenado.
Entretanto como conta a lenda da “água da Barreira”: “aquele que provar das
águas naturais da mina da gruta da Barreira está fadado a retornar”. Então a
cidade coleciona aprisionados sem oportunidade de fugir e frustrados que
fracassaram na sua tentativa de escapar - O Mito da Caverna de Platão.
A semente de um presságio de mau agouro acompanha cada
criança nascida e mesmo em sua inocência o brilho dos seus olhos é embaçado
pela sombra das andorinhas que sobrevoam a cidade e ao anoitecer retornam para
a gruta em uma queda perigosa para se esconder nas paredes úmidas.
Há quem lembre dos tempos perdidos da cidade como
tesouros que jamais serão novamente desfrutados. Há quem cante o paraíso perdido
que é esta terra e a saudade por estar longe. Há quem pinte a Via-Crúcis da
vivência de envelhecer em Itararé. Mas ainda é preciso escrever sobre as
sombras que pairam, sobre as pedras, os paralelepípedos cortados um a um por
escravos que frequentemente são cogitados de serem cobertos por asfalto na rua
principal. Mas é impossível apagar os espectros do passado: os indígenas massacrados
e arrancados de suas terras para dar espaço para um novo país. Os tropeiros com
cargas e escravos desfilando pela São Pedro. Os posseiros, os grileiros, os
coroneis. Os estrangeiros e pobres que construíram os trilhos do Ramal da Fome.
O ditador que foi recebido de braços abertos. Da população que cresce
lentamente em número, mas não em oportunidade ou qualidade de vida. Dos loucos
que perambulam pelas ruas sendo atazanados por crianças que lhes xingam e eles
então os perseguem raivosos. Da pequenez de se estar longe demais das capitais
e perto demais do abismo.
Parafraseando Nietzsche: “quando se olha tempo demais
para um abismo, o abismo olha de volta para você” - esta é a realidade de todo
itarareense. Nós carregamos o abismo na alma, um vazio, um vórtex, um buraco
negro que engole a tudo e nos devolve apenas mais vazio. A fome que devora e
apenas aumenta.
E é nesse poço espiritual que quero gritar a história
que cresce e toma meu cérebro para ouvir o que o eco irá responder. Talvez eu
possa ouvir assim os Grandes Antigos...
5 comentários:
Sensacional meu querido.....bela dinâmica.... ótimo texto... Nascimento de um escritor....
Genial!
Adooorei! Ótimo conto!!
Adooorei! Ótimo conto!!
Arrepiou até a alma!! Fantástico texto!!
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