A ORIGEM DO MAL
Capítulo -
I
Depois de estudar as sementes, flores, animais e as
curiosas pinturas rupestres de mais de dez mil anos atrás na região do rio
Jaguaricatu - em vinte e cinco de janeiro do ano de mil oitocentos e vinte
chegou à aldeia de Itararé o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire. Sempre
acompanhado por um índio botocudo, seu fiel companheiro que lhe servia como
guia, tradutor, mercenário e conselheiro, Saint-Hilaire ficou por algumas
semanas nas três sesmarias aproveitando a hospitalidade daquele chão antes de
seguir para Itapeva da Faxina. Seus cadernos continham anotações esmiuçadas da
cultura e costumes e desenhos em mínimos detalhes das plantas, Hilaire anexava
aos herbários esses documentos e diários que de tempos em tempos eram despachados
para além-mar.
Porém quando Saint-Hilaire finalmente estava pronto
para partir seu companheiro caiu de cama subitamente. O índio tinha febre alta
e delirava aterrorizado balbuciando sobre o inferno e repetia incessantemente
um nome: “Uariri”. Seu semblante forte tornara-se rapidamente decrépito,
doentio, a peste que lhe acometera era de uma sordidez tamanha que aparentava
ser efeito de algum veneno ou de uma mandinga ou macumba pesadas, como diziam
os nativos. Os capuchinhos ofereceram ajuda, mas não podiam fazer muito pelo
índio, só lhes restava oferecer o favor de lhe encomendar a alma. Desesperado
já que o índio por diversas vezes havia lhe salvo a vida, Hilaire sentindo-se
obrigado a pagar sua dívida de gratidão recorreu ao povo, já que os religiosos
se negavam a falar a respeito na menor menção do nome da mulher misteriosa. Foi
ouvindo a população que Hilaire descobriu quem era Uariri.
Uns diziam que ela falava com os espíritos, lia mãos e
até adivinhava o futuro. Outros contavam em sussurros, amedrontados, que ela
rogava maldições, preparava poções de ervas e dormia com o diabo. O mais velho
dos moradores da vila contava que já ouvia falar das histórias do espírito da
velha bruxa que morou na gruta do rio Itararé ainda criança. Contava ele que
mesmo antes do primeiro tropeiro pisar aqui ela já guardava a caverna. Mesmo
temerosos, o povo antigamente, dizia-se, ia até ela muitas vezes na calada da
noite para pedir ajuda. As escravas que engravidavam dos seus patrões e temiam
por suas vidas por dar a luz aos bastardos levavam as crianças para ela criar “anjinhos”,
os batizando nas águas do rio Itararé e nelas os afogando. Ao ouvir esses
relatos Hilaire entendeu a razão dos senhores do solar não quererem falar a
respeito do assunto, ele sentia que ao mesmo tempo que aquelas histórias
causavam pavor, também traziam embaraço por envolver casos vergonhosos da
história do vilarejo. Contava a tradição popular que para cada andorinha revoando
no crepúsculo procurando abrigo na gruta do rio uma criança havia sido morta
pelas mãos da anciã. Hilaire estava aturdido e sem alternativas decidiu ir
investigar em segredo a tal gruta onde a bruxa indígena vivera.
Sem avisar ninguém partiu sozinho do solar na hora
mais negra da noite no lombo de sua mula. Apeou, amarrou sua montaria a uma árvore
retorcida e continuou a pé. Ao galgar aqueles degraus feitos pelo prazer do
vento e da água pensou ter ouvido o choro de crianças. Balançou a cabeça,
aqueles depoimentos dos simplórios pareciam estar afetando seu julgamento
impressionando-o como nada antes o fizera.
Finalmente alcançou o fim daquele declive, uma caverna
onde um rio barrento e propositalmente calmo escondia segredos do passado em
suas entranhas turbulentas. O luar descia por uma abertura do cimo da gruta iluminando
as águas que pareciam chamar por Hilaire. Elas o atraiam, ele encantado e
amedrontado caminhava lentamente sem conseguir se conter até a borda da gruta
para olhar dentro do rio. E assim, de joelhos, vidrado pelo rio ele viu no
espelho d’água um vulto atrás de si, a mulher de que se falava na aldeia, em
seu rosto a idade e a loucura estampadas. Em um segundo, sem jamais saber se
fora por descuido ou se de fato algo o empurrou, caiu dentro do lago frio da
gruta do rio Itararé. Imerso naquelas águas em um batismo forçado, algo parecia
lhe puxar para baixo, chegou a imaginar tentáculos lhe puxando, talvez. Em meio
aos ruídos ferozes da corrente de água enfurecida contra as rochas uma voz
pareceu lhe falar.
Cortava esse chão, como uma serpente d’água, um
rio poderoso e cheio de peixes. Neste rio os jovens se banhavam e pescavam, o
povo havia conseguido domar o espírito bravio e selvagem daquela víbora e
ninguém temia as águas. As coisas das bestas às pedras possuíam espírito
próprio e o do rio sibilava quando ninguém podia ouvir, com uma fome que não
sabia saciar. O rio apaixonara-se pelo mais belo dos guaianazes, Taiguara, um
destemido guerreiro de pele de suçuarana querido por todos, do morubixaba ao
pajé.
O rio então moldou em segredo as pedras de seu
leito deixando-as pontiagudas como adagas e cantou imitando a voz de seu amor,
Uariri, chamando Taiguara. Ele seguiu aquela voz e ao ver o rio, mergulhou nele
para não mais voltar. As águas, antes calmas e belas, tornaram-se vermelhas e
violentas, o espírito consumira Taiguara e o pervertera, viciando-se na morte.
Serpentes agitaram-se de seu interior e vapores funestos se ergueram cobrindo
as estrelas. O povo ao perceber o que acontecera chorou e amaldiçoou o rio
pedindo para Tupã puni-lo.
O senhor dos céus respondeu fazendo o chão
tremer derramando fogo do firmamento. Tupã mandou uma estrela negra que se
enterrou na terra. O espírito do rio cavou as terras entrando por dentro das
pedras para se esconder, temendo a ira divina, mas a estrela se escondeu abaixo
dele. Os índios apavorados gritavam – Itararé, Itararé – avisando Tupã que a
serpente já havia se escondido e que de nada adiantaria Tupã liberar sua fúria
sobre a terra. O deus então amaldiçoou o povo que se deixara enganar por um
espírito tão vulgar e que lhe conjurava quando estava aflito, porém não
confiava nele para lhe proteger. Todos os guaianazes foram exterminados pelo
fogo e pelo vento, só Uariri fora poupada para velar seu amor, para guardar o
rio e para impedir que a semente da estrela brotasse da terra e trouxesse o fim
do mundo.
Quando finalmente Hilaire conseguiu voltar para a
superfície a sensação era de que havia permanecido uma eternidade submerso. Tossia
e chegou a escarrar sangue, engolira muita água do rio, como um feto no ventre
da mãe sentia-se conectado de uma forma inexplicável com o passado e o mistério
do Itararé. Uariri poderia finalmente descansar porque a sua tarefa fora
passada adiante.
A correria dos empregados da casa acordou
Saint-Hilaire de seus sonhos. Ao ver o tumulto percebeu que pareciam todos
surpresos e temerosos. Rezavam e cochichavam tolices, entreolhando-se abismados.
Hilaire seguiu a criadagem e encontrou seu companheiro de pé, como se nunca tivesse
caído de cama. O bugre lhe agradeceu pelo favor de joelhos, ele sabia a verdade,
o que o francês tinha feito para salvá-lo da influência dos poderes sombrios. O
índio nunca mais fora o mesmo, ele desde então e até o fim das expedições se
manteve reservado, taciturno sem nunca comentar nada, angustiado por ainda
sonhar com o que lhe fora revelado no delírio da febre. Saint-Hilaire não sabia
separar o sonho da realidade do que acontecera naquela noite e decidira guardar
para si aquela experiência ao mesmo tempo incrível e terrível.
Prosseguindo para a aldeia seguinte, Itapeva da
Faxina, uma lenda indígena sobre aquela região de solo irregular e repleta de
morros fez Hilaire entender melhor o pesadelo que lhe fora revelado. Os índios
acreditavam que abaixo daqueles montes uma serpente gigantesca descansava e
moldava as ondulações no terreno e que a cada ato desmedido de um membro da
tribo o monstro ficava mais desperto até o momento que despertaria de vez para
vir à tona e engolir a tudo e a todos.
Ao ouvir a lenda de uma tribo similar a que habitou as
planícies de Itararé tudo fez sentido. Em um instante a memória das revelações
voltaram de uma só vez fazendo Hilaire desmaiar. Sua consciência subjugou seu
corpo, a verdade era terrível demais.
Anos mais tarde nas suas últimas expedições no
nordeste, ele aos poucos foi recordando e registrando cada lembrança até montar
o quebra-cabeças: as pinturas feitas por homens primatas que viveram há
milhares de anos nos paredões do Jaguaricatu de um sol ou algo parecido onde
selvagens se curvavam em adoração e temor, a lenda da estrela negra que havia
sido mandada em forma de maldição divina pelos deuses e que caíra abaixo do rio
Itararé e a lenda da serpente gigante que se escondia abaixo de Itapeva formando
os morros do lugar eram todos fragmentos de uma mesma história. Tratava-se de
um acontecimento antes do homem moderno, a queda de um objeto cósmico que
promoveu uma destruição de proporções épicas, tanto que os povos antigos
criaram um mito apocalíptico para explicar o evento sobre uma inteligência
perversa de poder incalculável que permanecia enterrada na terra adormecida
sonhando com destruição e que se alimentava do sofrimento e da dor dos
insignificantes homens que perambulavam sobre a superfície.
Hilaire absorto decidiu quebrar o silêncio que
impusera a si mesmo sobre a enfermidade e recuperação inexplicáveis de seu
amigo botocudo e pôs-se a escrever obcecado. O índio tentou o impedir, dizendo
que a praga que lhe acometera era um aviso sobre o que aconteceria caso a
verdade fosse revelada, o rio enganara Hilaire, ele queria ser conhecido e
reverenciado e Uariri tentou impedir o estrangeiro de cair nos encantos do mal
que habitava Itararé falando com o botocudo em sonhos. Não obstante foi em vão,
na primeira chance que teve Hilaire despachou entre os seus cadernos e diários páginas
e mais páginas sobre a lenda do Rio Itararé.
Entretanto o navio que singrava o Atlântico rumo à
Europa levando a carga de Saint-Hilaire foi pego por uma terrível tempestade.
No meio da tormenta, relatou um sobrevivente, um raio atingiu em cheio o mastro
da nau provocando um incêndio em alto-mar e o esmagando contra um recife de
corais ainda na costa brasileira. Hilaire ao saber do acontecido tremeu dos pés
a cabeça, pois nunca conseguira explicar o que acontecera na gruta naquela
noite em Itararé e esse naufrágio só vinha a alimentar a sua imaginação de
temores insensatos.
Aterrorizado a cada vez que pensava a respeito,
decidira não retomar mais o assunto, nunca mais, sua sanidade dependia disso.
Temia ter a lógica sobrepujada pela loucura. O botocudo desacreditado por
Hilaire não abandonou seu mestre que logo encerrou suas viagens. Hilaire
aprendera que o silêncio sobre o que não se compreende é a única saída para se
resguardar a sanidade e teria se calado até o túmulo se Debret, seu
compatriota, não o procurasse em mil oitocentos e trinta e um na volta da
Missão Artística para lhe falar sobre a sua passagem por Itararé.
2 comentários:
Estou aqui anestesiada com o que acabei de ler. Zé, sem palavras para expressar!! Simplesmente genial!! A medida que fui lendo a história toda foi passando em minha mente como a um filme onde os cenários me são todos familiares. Uma sensação indescritível!! Sobre a parte dos "anjinhos" e as andorinhas me emocionei. Difícil até dizer que parte me tocou mais. Usarei seu texto com os adolescente da escola esse ano com toda certeza. Obrigada por esse presente literário. Você é mestre!!!
Muito obrigado pelo carinho e apoio de sempre Andréa. Fico muito feliz de saber que essa história que faz anos que estou escrevendo está agradando. Principalmente por tratar de coisas pesadas, a parte dos "anjinhos" mesmo é uma que me perguntei por um bom tempo se manteria ou não. E para mim é uma honra se esta obra fizer parte de seu trabalho com os alunos, tomara que eles também apreciem.
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