Alexandrina era perspicaz e apesar do desafio de ser uma estrangeira em uma terra estranha aprendeu a ler e a escrever em português sozinha e aprendeu também as orações em nosso idioma para cumprir a promessa de rezar o terço feita para sua mãe. Ela encaminhou os onze filhos na sua fé que fora o seu único abrigo contínuo que encontrou nos árduos anos em que viveu. Seu livro de catecismo escrito em russo é uma das relíquias que o tempo ainda não devorou por completo. A religião pode tanto conectar as pessoas quanto servir de santuário quando elas falham e foi desta última maneira que Alexandrina encontrou abrigo em Cristo.
Isenta da ameaça da epidemia de sarampo blindada por sua fé Alexandrina estava só com os marinheiros no convés. A única passageira virara uma espécie de amuleto da sorte aos olhos dos marinheiros que ela conquistara com sorriso, agulha e linha. Ela se divertia como podia, com os rolos de corda, os transformando com a magia da imaginação em castelos sitiados, lar de princesas, serpentes hipnotizantes, covis de dragões... As lendas e contos foram o que a salvaram da solidão. A imaginação é a ferramenta das crianças, dos loucos e dos poetas para sobreviver à realidade.
O som dos volumes enrolados em lençóis sujos com manchas rubras e que fediam a comida estragada sendo atirados ao mar pelos marinheiros com luvas e lenços sobre o rosto se tornaram cada vez mais comuns. Cordas asseguravam que os corpos ficassem contidos em seus casulos e pedras garantiam o sepultamento no fundo do mar. Os homens não sabiam como lidar com a presença da pequena que os observava com semblante curioso e pensativo enquanto eles cumpriam a tarefa nefasta de dar cabo dos mortos e constrangidos não ousavam lhe dirigir o olhar. Mais ainda Alexandrina rezou naqueles dias e suas preces foram as únicas palavras de despedida das vítimas que em silêncio eram atiradas por mãos rudes.
A menina Alexandrina chegou ao seu limite e contrariando as ordens da mãe correu para as grades do portão do porão para chamar a mãe. Edwiga ninava a irmã de Alexandrina no colo. Ela estava tão pálida, dormia profundamente a ponto de não se mexer. A mulher com um olhar triste sorriu para a filha a salvo. E com uma voz trêmula Edwiga repetiu o pedido para a filha não se aproximar mais do portão deixando a criança falando sozinha desaparecendo nas trevas. Repelir a filha cortava o seu coração, todavia se isso garantiria a sobrevivência de ao menos uma das meninas ela faria o que fosse preciso para que Alexandrina fosse poupada da desgraça que se abatia sobre eles.
Por todo o
resto do interminável dia e a noite Alexandrina passou chateada, chorosa,
aborrecida. Corvos voavam em volta de sua cabecinha torturando sua mente com
coisas que não deveriam lhe dizer respeito. A morte mesmo sem ser totalmente
compreendida cavava espaço entre seus pensamentos e plantava dúvida e medos
desconhecidos. Ela sentia que algo muito ruim acontecera, porém não tinha
naquela idade meios para entender e aceitar a terrível verdade.
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