segunda-feira, 22 de dezembro de 2008
ANGELUS ERRARE - O Sexo dos Anjos Caídos
segunda-feira, 1 de dezembro de 2008
sexta-feira, 28 de novembro de 2008
Mozart - Requiem em Ré Menor
I. Introitus
Requiem aeternam dona eis, Domine,
Et lux perpetua luceat eis.
Te decet hymnus, Deus, in Sion,
et tibi reddetur votum in Jerusalem:
Exaudi orationem meam,
ad te omnis caro veniet.
Requiem aeternam dona eis, Domine,
Et lux perpetua luceat eis.
*
Kyrie eleison.
Christe eleison.
Kyrie eleison.
*
...
Dies irae, dies illa
solvet saeclum in favilla
teste David cum Sibylla.
Quantus tremor est futurus,
Quando judex est venturus,
Cuncta stricte discussurus.
...
Tuba mirum spargens sonum
per sepulcra regionum,
coget omnes ante thronum.
-
Mors stupebit et natura
cum resurget creatura,
judicanti responsura.
-
Liber scriptus proferetur,
in quo totum continetur,
unde mundus judicetur.
-
Judex ergo cum sedebit,
quidquid latet apparebit:
nil inultum remanebit.
-
Quid sum miser tunc dicturus?
Quem patronum rogaturus,
cum vix justus sit seccurus?
...
Rex tremendae majestatis,
qui salvandos salvas gratis,
salva me, fons pietatis.
...
Recordare, Jesu pie,
quod sum causa tuae viae,
ne me perdas illa die.
-
Quaerens me, sedisti lassus
redemisti crucem passus
tantus labor non sit cassus.
-
Juste judex ultionis,
donum fac remissionis
ante diem rationis
-
Ingemisco tamquam reus
culpa rubet vultus meus
supplicanti parce, Deus.
-
Qui Mariam absolvisti,
et latronem exaudisti
mihi quoque spem dedisti.
-
Preces meae non sunt dignae
sed tu bonus fac benigne,
ne perenni cremer igne.
-
Inter oves locum praesta
et ab haedis me sequestra
statuens in parte dextra.
...
Confutatis maledictis
flammis acribus addictis
voca me cum benedictis.
-
Oro supplex et acclinis
cor contritum quasi cinis
gere curam mei finis.
...
Lacrimosa dies illa
qua resurget ex favilla
judicandus homo reus.
-
Huic ergo parce, Deus
pie Jesu Domine
Dona eis requiem, Amen.
...
1 - Domine Jesu Christe
Domine Jesu Christe, Rex gloriae,
libera animas omnium fidelium defunctorum
de poenis inferni et de profundo lacu:
Libera eas de ore leonis,
Ne absorbeat eas tatarus, ne cadant in obscurum:
Sed signifer sanctus Michael repraesentet eas in lucem sanctam:
Quam olim Abrahae promisiti et semini ejus.
...
Hostias et preces tibi, Domine, laudis offerimus:
Tu suscipe pro animabus illis,
quarum hodie memoriam facimus:
Fac eas, Domine, de morte transire ad vitam.
Quam olim Abrahae promisisti et semini ejus.
...
Sanctus, Sanctus, Sanctus Dominus, Deus Sabaoth.
Pleni sunt coeli et terra gloria tua.
Hosanna in excelsis.
...
Benedictus, qui venit in nomine Domini
Hosanna in excelsis.
...
Agnus Dei, qui tollis peccata mundi: donna eis requiem.
Agnus Dei, qui tollis peccata mundi: donna eis requiem sempiternam.
...
Lux aeterna luceat eis, Domine:
Cum Sanctis tuis in aeternum: quia pius es.
Requiem aeternam dona eis, Domine:
Et lux perpetua luceat eis.
Cum Sanctis tuis in aeternum: quia pius es.
terça-feira, 11 de novembro de 2008
Pulso
Que sorriem maliciosos pelos lábios que me beijam onde sou mais fraco
Suas pequeninas e leves mãos tocando-me com a delicadeza e dedicação
De um gentil e diabólico querubim pornográfico
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Meus dedos se agarram trêmulos às selvagens cascatas de cachos carmim
Você então, me aninha carinhosamente em seu colo, entre seus seios fartos
Para que eu possa sentir o bater profano de seu sagrado coração apaixonado
E responder em pulsar crescente e espumante meu veneno, flecha de Eros alvejado
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O ritmo do sangue em nossas veias, fogo líquido correndo feroz e rápido
A tortura cuidadosa de seu corpo, templo, altar, venerando-me o falo
Ninando meu desejo lascivo, servindo é que você me faz de escravo
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Inocentemente, com a candura maléfica de um anjo caído, você continua
Parecendo não ouvir meu sofrimento, meus júbilos, suplicantes gemidos
Até eu romper incendiando seu busto e rosto, me desfazendo em gozo e gritos
quinta-feira, 30 de outubro de 2008
Folhas ao Vento: antologia de contos e microcontos (Andross Editora)
quinta-feira, 23 de outubro de 2008
Ninguém mais - Cassiano Ricardo
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Quando pergunto alguma coisa ao silêncio da hora triste,
não sei de onde uma voz me responde
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Quando olho no espelho do rio,
no azul sem mágoa da planície da água,
vejo alguém que me espia longamente
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Quando vou pela estrada que serpeia o oceano de areia
sob a lua que me ilumina o passo incerto,
noto que um vulto,
alguma sombra estranha,
pelo caminho que me acompanha...
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Só tenho três amigos:
meu eco,
minha imagem, minha sombra
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quarta-feira, 15 de outubro de 2008
POESIA ERÓTICA - tradução de José Paulo Paes
quinta-feira, 9 de outubro de 2008
sábado, 27 de setembro de 2008
Sozinho no Escuro
SOZINHO NO ESCURO
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Ele estava distraído, assistindo através da mortalha o agonizar dela. Mesmo à beira da passagem, ela era tão bela, ele, no entanto podia ver a marca da morte em seu rosto, o sinal inclemente maculando-a. Ela não resistiria, não havia nada que pudesse fazer. Contudo, o que o perturbava era a ausência de medo, sua paz, ela não possuía nada que a prendesse, como ele a possuía. Pois ele sabia, estava agrilhoado naquela existência negra por causa dela, era ela o que o mantinha longe da destruição. Ou de ser salvo. Se ela partisse, livre, fosse para ser engolida pelo vácuo, fosse para atravessá-lo e encontrar a verdade que ele temia, ele sabia que não sobreviveria sem seu grilhão para protegê-lo de si mesmo. Estava exausto, usara toda sua força para adentrar a carne de sua amada e espiar seus pensamentos, ver e sentir sua alma. Talvez tenha sido isso, seu cansaço, as grades que o protegiam de sua sombra, de seu semelhante das trevas estavam fragilizadas. Seu descuido custaria caro.
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Não percebeu as rachaduras se transformarem em veias negras, pulsando entropia, aumentando de ritmo e se tornando maiores, tomando as paredes. Um coração vazio seguia ao ritmo da rebentação do mar de atormentados. A sua sombra interior conjurou a nulidade para arrebatá-lo em seu momento de fraqueza. Ela aprendera que a sutilidade era melhor do que a luta, para vencê-lo deveria enganá-lo, aproveitar seus vícios e desespero. Ninguém conhece melhor do que a sombra de cada um o meio mais eficaz de se atingir as feridas mais profundas.
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Os cantos do quarto eram aberturas para o abismo que ecoava ainda distante o som do flagelo dos que orbitam o Limbo. Sua mente estava ocupada chorando pela perda que se seguiria e por seu destino incerto. Ver a aceitação e o cumprimento do destino de sua mulher o fazia refletir sobre sua própria negação e covardia. Estava envergonhado por sua miséria, era fácil descobrir o que estava além do mundo cinzento de pesadelo que ele habitava por escolha própria. Só precisava se jogar contra o núcleo negro da Tempestade. Submeter-se ao julgamento incompreensível da transcendência era um caminho sem volta, para qualquer lugar que seu tormento o levasse ele nunca mais poderia tê-la.
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Sempre acreditou que quando chegasse a hora dela, quando finalmente ela estivesse pronta, eles iriam se reencontrar e a ferida que o corroia desapareceria. A ilusão estava se desfazendo e com ela, ele próprio. Não havia mais razão para lutar, ele não a veria mais, e sem ela, não existia mais nenhum motivo para permanecer naquele reino intermediário de dor e anestesia auto-infligida. Tanto tempo perdido vigiando e planejando um futuro impossível, se enganando e mentindo. Repetindo até ficar surdo de que tudo acabaria bem. Das janelas, na distância, rostos e braços agitados se arrastavam esfomeados para despedaçá-lo, mais e mais se aproximavam sem que ele se desse conta. Trovões explodiam ao redor, se ele não gostasse tanto do som de sua voz e de sentir pena de si mesmo, ele poderia ouvir a marcha da maré crescendo para buscá-lo. E o riso maligno e sombrio da sua parte mais obscura, antecipando o fim que tanto almejava.
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Ela expiava depressa, o coração batia suave, a respiração era uma brisa praticamente imperceptível. Os olhos perdiam o brilho de vida e se tornavam vítreos e opacos. Seria a qualquer momento. Todo trabalho em vão, o arrependimento era tão insuportável que ele teve que se entreter com alguma outra coisa e foi então que ele percebeu a armadilha em que estava. As janelas mostravam as entranhas do Limbo, garras e dentes se esticavam dos cantos e buracos das paredes para agarrá-lo, uma legião de monstros que só os mais insanos podem vislumbrar estava pronta para fazer dele mais um dos que desistem. Eles o queriam para alimentar o nada.
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Investiu contra a onda de corpos que começava a ser vomitada pelas paredes para dentro do quarto, mas de nada adiantava. Eram muitos, machucá-los só os deixava mais irritados e ansiosos por devorá-lo. Olhou uma última vez para o rosto da única pessoa que ele teria vendido a alma para ter consigo, viu que ela não estava mais tão calma como antes, e percebeu que se ela viesse para o mundo dos mortos seria tragada assim como ele para a destruição. Ele não poderia permitir isso, ela precisava de uma chance, ela era mais forte do que ele. Quem sabe ela fosse capaz de desvendar seus mistérios interiores para alcançar as praias distantes de que todos somente ouviram falar. Aquele oceano de terror não iria embora sem arrastar algo junto, ele de braços abertos se entregou para o redemoinho sem enfrentá-lo. Era seu fim e ele o aceitava, toda dor e abandono estavam esquecidos e aceitos, já não importavam mais.
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Sua travessia para fora da estagnação se iniciou com o seu primeiro ato de coragem, ele precisou viver e morrer para poder tomar essa decisão. No momento em que os tentáculos o carregavam ela acordou sozinha no quarto cinzento. Sua jornada acabava de começar e ela teria que percorrê-la sozinha pelo vale das sombras. Todos nascem sozinhos, todos morrem sozinhos. Temos somente nossa sombra como companhia eterna.
terça-feira, 23 de setembro de 2008
Óbolo
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O som agudo e ritmado, repetitivo, foi se perdendo, distanciando-se e diminuindo até restar somente uma nota fina contínua, como o zumbido silencioso que penetra profundamente na mente quando nos deitamos para dormir. Depois, tudo ficou confuso. Sombras, vultos desfocados e silhuetas estranhas, tudo em incontáveis tons de cinza, borrado. Barulhos indefiníveis chegavam devagar, como se passassem por uma barreira líquida, murmúrios e sussurros misturados com ruídos de coisas que não estavam por perto, era quase um sonho. Se a sensação de perda irreversível, terrível, se o abatimento do ânimo e das forças não despertasse a consciência de que algo estava extremamente errado, seria fácil se convencer de que se tratava de um delírio, uma ilusão, um pesadelo.
Seres esguios de trajes esbranquiçados, que lembravam vagamente a imagem dos médicos e enfermeiros de um hospital, estavam em volta dele, que permanecia deitado. Eles o observavam com suas feições monstruosas escondidas por trás das máscaras, seus olhos opacos revelavam desconsolo. Conversavam entre si, no entanto, era impossível entender o que diziam. A urgência de escapar tornava o desespero de não conseguir se mexer mais horrível, o corpo não respondia a sua vontade. Deixaram a sala, mas ele tinha certeza que não podia continuar ali quando eles voltassem. Era como se não pudessem, mesmo ao encará-lo, ver que ele estava consciente. Sirenes, sinos, rebentação, trovões ecoavam na distância acompanhados por gritos de dor e sibilos secretos; e incontáveis correntes ensurdecedoras sendo arrastadas por todos os cantos, se aproximando. O ar trazia consigo um peso estagnado, misturado a um miasma insuportável. Ele sentia que uma tempestade se aproximava trazendo destruição, era preciso fugir.
Sentiu entre os dedos uma moeda, a examinando através do tato, reconheceu a familiaridade de sua superfície e lembrou-se de quando ganhara aquela moeda de seu pai, no funeral de sua mãe. A voz calma e triste de seu pai, de joelhos, com as mãos sobre seus ombros o encarando nos olhos, explicando que antigamente, quando alguém falecia, era costume deixar uma moeda com o corpo da pessoa para pagar a sua passagem para um lugar melhor. Que aquela moeda era para ele dar para a sua mãe, para mostrar a ela que sempre iria amá-la, não importava para onde ela fosse. A lembrança súbita reavivou a vergonha infantil e a culpa de ter escondido a moeda que o pai havia lhe dado e de não ter cumprido a promessa de entregar para sua mãe o pagamento de sua passagem para o céu. Ele a queria com ele, não queria perdê-la, por isso guardou para si a moeda e manteve segredo. Quando seu pai morreu anos mais tarde, ele pensou em devolver a seu pai a moeda, para que ele pedisse desculpa a sua mãe por ele, porém não conseguiu se desfazer daquela lembrança e novamente perdeu a chance de fazer a coisa certa. O que significaria aquela moeda em sua mão agora? Em um descuido, a moeda escapou de seus dedos e caiu no chão causando um estrondo ensurdecedor. A frustração foi tão exagerada que ele por pouco não rompeu em choro, descontrolado.
A necessidade de lembrar mais o fez lutar contra a sua inércia e descobriu-se coberto por pesadas correntes que ao se mexer, ele derrubava da maca. Sem controle de seus movimentos desengonçados, acabou caindo da cama, foi tudo tão rápido que ele teve a impressão de ter atravessado a maca. A dor de cair contra o azulejo frio o trouxe de volta para a realidade. O chão estava sujo de sangue escuro, as correntes que derrubara haviam sumido. Ele rastejando conseguiu recuperar sua moeda. Estava exausto pelo esforço que aquilo custara, entretanto sentia-se feliz por poder contar com algo que o fizesse pensar em outra coisa além daquela situação insustentável. Virou-se de costas para o chão e fitando o teto, começou a tentar estimular a memória. Pôs as mãos sobre o peito e tocando a moeda com os dedos, fechou os olhos, concentrado. Ouviu o tilintar de ferro contra ferro e abriu os olhos para ver o que era. Uma coisa, uma figura manchada começou a se formar no teto e rapidamente foi se assemelhando mais e mais a um homem maltrapilho, coberto por um capote, com botas e uma máscara de oxigênio sobre o rosto. Ele caminhava pela parede e vinha devagar em sua direção, parecia não só ser capaz de vê-lo, como se aproximava com uma atitude hostil, carregando um grilhão com algemas.
A fadiga o impossibilitava de fugir, nem mesmo gritar, nem um só fiapo de voz saía de sua garganta. Segurou a moeda consigo forte, consumido pelo pavor ao ver as garras daquele ser medonho puxar algo que estava sobre seus olhos e que ele não se dera conta. A substância viscosa e grudenta depois que fora arrancada de sobre sua face, devolveu sua visão e audição, todavia antes ele não tivesse visto a criatura o pregar em ferrolhos, fazendo-o de escravo, dizendo com sua voz tuberculosa e de uma ironia maléfica:
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“_Bem-vindo ao outro lado, inquieto. Você agora me pertence, veremos se você vai fazer jus à chance de poder me servir, ou se vai ser mais útil servindo como distração para os terrores do Limbo, enquanto eu fujo da Tempestade.”
sexta-feira, 29 de agosto de 2008
domingo, 17 de agosto de 2008
Jabor
Na hora de cantar todo mundo enche o peito nas boates, nos bares, levanta os braços, sorri e dispara: "eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também". No entanto, passado o efeito do uísque com energético e dos beijos descompromissados, os adeptos da geração "tribalista" se dirigem aos consultórios terapêuticos, ou alugam os ouvidos do amigo mais próximo e reclamam de solidão, ausência de interesse das pessoas, descaso e rejeição. A maioria não quer ser de ninguém, mas quer que alguém seja seu. Não dá, infelizmente, para ficar somente com a cereja do bolo - beijar de língua, namorar e não ser de ninguém. Para comer a cereja é preciso comer o bolo todo e nele, os ingredientes vão além do descompromisso, como: não receber o famoso telefonema no dia seguinte, não saber se está namorando mesmo depois de sair um mês com a mesma pessoa, não se importar se o outro estiver beijando outra, etc, etc, etc. Desconhece a delícia de assistir a um filme debaixo das cobertas num dia chuvoso comendo pipoca com chocolate quente, o prazer de dormir junto abraçado, roçando os pés sob as cobertas e a troca de cumplicidade, carinho e amor. Namorar é algo que vai muito além das cobranças. É cuidar do outro e ser cuidado por ele, é telefonar só para dizer bom dia, ter uma boa companhia para ir ao cinema de mãos dadas, transar por amor, ter alguém para fazer e receber cafuné, um colo para chorar, uma mão para enxugar lágrimas, enfim, é ter "alguém para amar". Somos livres para optarmos! E ser livre não é beijar na boca e não ser de ninguém. É ter coragem, ser autêntico e se permitir viver um sentimento.
sexta-feira, 15 de agosto de 2008
MASQUERADE
Uma caleidoscópica multidão colorida e sem face fervilhava pelas ruas, envolta em confetes e purpurina num pandemônio de alegria vulgar, até a hora mais negra que antecedia a aurora. Então, todos se iam, como uma legião de vampiros anônimos a fugir do sol. Os que restavam, impossibilitados de se lembrarem de onde pertenciam, eram o retrato trágico da solidão e do excesso. Atrás de suas máscaras, homens e mulheres se escondiam e mostravam o que verdadeiramente possuíam dentro de suas almas. Alegria regada a vinho, nos cantos mais escuros das ruelas e becos se tornava perversa e excitante, e a carne convenientemente mais fraca. Anjos, demônios, gênios, clowns, piratas, mandarins, sultões, odaliscas, magos, bruxas, reis, princesas, samurais, gueixas, gregos, romanos, ninfas, melindrosas, bailarinas, ciganas, cleópatras. Cada ser do imaginário da humanidade desfilava languidamente pelo luar, provocando com sua exposição dos corpos e seu ocultamento de identidade; sem contar as caricaturas das figuras mortais pervertidas em erotismo como os padres, monges e freiras, aos beijos com o bestiário profano. Se deus não existe, tudo é permitido, assim era o carnaval.
Em meio ao mar onírico, uma figura que trazia consigo a insolência da beleza despudorada, a ousadia da alegria insensata, o suspiro da leveza inquietante valsava sem querer valsar com sapatilhas herméticas através da horda bizarra. Ela deslizava misturando em seus movimentos a malícia de serpente e a vaidade felina, o aroma fresco da brisa primaveril era visível no róseo pálido de sua pele e os que sentiam seu caminhar próximo eram tomados momentaneamente pelo delírio de se sentirem vizinhos do paraíso. Acompanhando a inesquecível figura, orbitando em sua volta e sendo ignorado por ela, um fantasma ebúrneo de olhos negros murmurava choramingos poéticos apaixonados, cultuando sua pequena deusa inacessível e pretensiosa. Mesmo sendo patético, algo perturbador nesse servo afastava quaisquer outros pretendentes, seu sofrimento é o que fabricava o ódio em seu íntimo, transformando sua derrota em uma pérola de puro terror. A fada do desejo alimentava seu guardião com desdém, assim ela podia escolher alguém igual a ela, tão insano, febril e etéreo sem ser importunada pela malta em massa.
Passeando a esmo, chegaram a uma praça antiga com estátuas de conquistadores esquecidos e monumentos ignorados, onde o violino, a flauta, os pandeiros, os tambores e a mágica circense faziam da turba, títeres dançantes quais macacos adestrados. Cuspidores de fogo imitavam dragões fantásticos enquanto engolidores de espadas saboreavam Excalibur, palhaços se esbofeteavam em algazarra tola na fonte de pedra, enquanto no alto das pernas-de-pau, acima dos demais, os malabares incandescentes confundiam o bobo-da-corte com um anjo de luz. O coração de passarinho se encantou imediatamente pelo gigante vagabundo, que em um salto e uma cambalhota desceu de seu andor para cumprimentar a donzela de cristal. Os olhos se cruzaram, uma vertigem tomou a moça que perdeu o rumo nos losangos negros e vermelhos do traje da estranha deidade. Tão insólita quanto ela, talvez. Se o dueto silencioso de encanto do casal recém-descoberto não fosse tão ensurdecedor, eles poderiam ouvir o coração do espectro se partindo enquanto desaparecia com uma única lágrima a rolar por seu rosto e os punhos cerrados lutando contra uma tempestade n’alma.
A princesinha acostumada a ter homens que apenas beijavam seus pés, de repente encontrou um que não só lhe empregava os lábios de lábia em sua mão, como a enfrentava de frente, encarando seus olhos com a certeza de enxergar sua alma. E ela creu nessa ilusão, vendo na fanfarronice, realeza. Apaixonara-se pela megalomania do dançarino mascarado com o cetro de madeira, ele sorriu ao ver tamanha bobagem inocente em tão fácil presa, e tocou as notas certas para levá-la onde ele desejava. Escapulindo da feira, ele a levou por escadarias e ruas estranhas e cada vez mais escuras e vazias até chegar a um beco onde um coche abandonado escondia um portão de ferro. O cavalariço enigmático, por uma algibeira de moedas, entregou a chave da entrada para o bufão que convenceu a musa dos ais a acompanhá-lo para tomar o melhor vinho que ela já provara. Uma sombra seguia as fitas esvoaçantes e o tilintar dos guizos, escondida por entre os ossuários de uma família poderosa que se desfez pelas gerações, tendo suas catacumbas funerárias transformadas em adega.
Enfim encontraram uma parede com dois enormes barris, a ingênua menina ainda tentou entender o que estava errado, quando o diabrete louco mostrou suas garras agarrando-a, rasgando suas fitas, o cetim e a seda. Seus gritos foram calados por beijos soluçantes, até a pausa surpresa. O coringa se afastou com nojo, salivando como quem está prestes a vomitar, a sua Colombina, tão delicada e bonita era um homem! Cambaleando, o Arlequin fugiu aos tropeços do rapaz divino e andrógino que chorava tanto pela recusa, como pela estupidez de se deixar enganar. Apenas nas efêmeras noites de carnaval é que o jovem podia ser livre e desejado. Poderia seguir por anos assim, respirando sonhos nas noites carnavalescas, desde que se controlasse e não se deixasse levar para não ter a sua fantasia descoberta. Agora tudo estava acabado.
Da escuridão surgiu Pierrot e ajoelhando-se, beijou os pequeninos pés de Colombina, subindo por suas pernas e coxas, lavando a pele maltratada com suas lágrimas e com o seu hálito quente até encontrar a língua quente e seu pequeno milagre. Finalmente feliz.
domingo, 13 de julho de 2008
O Jardineiro
Gênesis, cap 3, ver 19
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quarta-feira, 25 de junho de 2008
Valdecir Ravazi
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Ela disse:
“Mal o nosso amor morreu, e seu coração já arrumou outros!”
Então respondi:
Meu coração não arrumou nada.
Estes amores aqui, apenas vieram para o enterro,
Daquele que morreu.
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Eles chegaram de mãos dadas,
sem identidade e com um destino certo.
Por alguns instantes ela foi à musa e ele o poeta
Naquele divã um sonho se efetivou e
seus papeis foram bem interpretados.
Eles se esqueceram do passado e da nova vida
que iria começar, só pensaram no presente.
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Abraçaram-se sentindo o calor um do outro.
Ele a tocou, deixando-a afoita.
Os carinhos nasceram e aos poucos aumentaram.
Colheram flores e as beijaram.
Bem me quer e mal não quer,
enunciaram seus lábios encostando-se.
Despiram-se.
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E a lua recatou-se,
fechou os olhos para não ver o que estava acontecendo.
Os namorados, no estremecer dos corpos,
mataram o desejo dos corações apaixonados.
E no cair daquela noite silenciosa,
os gemidos e os sussurros acabaram surgindo.
O amor aconteceu naturalmente.
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As pessoas que por ali passaram se horrorizaram,
mas os amantes riram com tal presente magnífico.
A ninfa virou uma deusa e a paz reinou no colo amado.
O suor molhou seus corpos quentes
e no calor daquela noite cega eles descansaram.
O nu foi coberto pelos abraços.
A vida veio trilhar de novo e o destino se cumpriu.
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Como havia pouca luz eles não me viram.
Só viram um céu sem estrelas, pedras removidas da calçada e a fonte,
que também estava descansando.
Os amantes foram embora e o palco das emoções ficou solitário.
O fantástico acabou e os montes sumiram na escuridão
Só ficaram o perfume das flores vivas no jardim e
o choro das flores esmagadas no chão.
terça-feira, 17 de junho de 2008
SONATA
...baseado em fantasias reais...
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Prelúdio
Ela, sem objeção alguma, sem perguntas, permitiu ser vendada por ele. E carinhosamente ele cobriu aqueles belos olhos rasgados com uma venda de seda negra. Os olhos que apenas em fitá-lo excitavam-lhe porque traduziam, sem a necessidade de palavras, quando ela estava molhada de tesão, esperando por ele. E que o olhavam pedindo por ele nas situações mais improváveis, o que o surpreendia e encantava. Ele encontrara a mulher perfeita, uma cadela de cio interminável que o satisfazia à exaustão. Rodaram pela noite fria, pelas ruas e avenidas labirínticas até ela perder o sentido de tempo e direção. Não perguntou nada durante o trajeto, obedientemente rebelde. Uma oportunidade dela para mostrar quem estava no controle. Seu silêncio o incomodaria mais; ela não vestia qualquer personagem para agradá-lo, porque o que ele mais gostava nela era seu tom desafiador, subversivo e indecente de ser. E ela gostava de se comportar assim, para ao mesmo tempo desafiá-lo a domá-la e para dizer que só ele era capaz disso. Enfim estacionaram. Silêncio absoluto. Nem parecia que ainda estavam na cidade. Não havia nada que pudesse denunciar sua localização ou o que ele pretendia. Sempre sendo conduzida pelas mãos, ela sentia o frio e a umidade da noite tocando sua pele, arrepiando os pêlos. Ele a encostou contra a parede e começou a acariciar seu sexo. Deveriam estar em algum beco, em algum canto escuro e esquecido. Beijava-a com sede enquanto seus dedos, por baixo do vestido que ela usava sem calcinha, a pedido dele, se escondiam dentro do calor do seu corpo. Suas intenções eram as piores possíveis e ela gostava disso. Excitava-se ao correr riscos. Ao sentir os dedos molharem, ele parou abruptamente; ela sabia que ele sorria aquele sorriso perverso. Ao menos ele permitiu a ela a oportunidade de experimentar a própria libido que começava a escorrer por entre as coxas. Ela não deixou por menos e, aceitando o convite para o jogo de sedução, lambeu languidamente os dedos dele, gemendo baixo. A língua viva e quente o incitava a deixá-la experimentar algo mais que seus dedos. Eles adoravam se provocar. Principalmente quando havia alguma chance de serem surpreendidos no meio das carícias. Mas não estavam ali para isso e ele não lhe daria esse gosto. Não ainda.
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Saíram de onde estavam e entraram por uma pesada porta enferrujada fechada à corrente, que ele abriu com o cuidado de um invasor. Seguiram e de repente, uma breve pausa na caminhada ligeira; ele pediu a ela, sussurrando em seu ouvido, que o acompanhasse mais furtivamente dali em diante. Retirou o par de saltos dela e continuaram. Os pés sentiram o carpete macio.
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“Onde ele estaria me levando?”
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Abafado pelas paredes e passagens das coxias e camarins, uma música ganhava forma na melodia delicada que se insinuava à medida que eles se aproximavam, até que ela não sentiu mais a proximidade das paredes ao seu redor. A acústica do teatro reverberava cada nota tocada pelos dedos hábeis, distribuindo a sinfonia igualmente por todos os cantos. Ela imediatamente parou, hipnotizada. Ora cristalinos, ora graves, os sons compunham uma dança de luz e trevas que a entorpecera. Ela poderia ficar ali, eternamente, embalada pela música do piano, sem ver, somente sendo alimentada pelos ouvidos, sem coragem de se aproximar, sem coragem de se afastar. Ele, que não contava com essa reação, a tirou do transe com um sacudir brusco. Por um instante, todo o trabalho que ele teve para satisfazê-la foi ameaçado por uma ação impensada. Não havia como disfarçar a raiva momentânea que se apoderou dela, por ele tê-la privado do êxtase que experimentava. E o ódio da ameaça de ter seu plano desfeito por uma armadilha da sensibilidade feminina, também o irritou, quase o cegando. Sem precisar de explicação, como verdadeiros cúmplices, ele não precisou dizer que não poderiam discutir ou denunciar sua presença: eram intrusos e não podiam ser expostos. Porém ele sabia como desfazer o embaraço, e com um beijo profundo e longo, resgatou a verdade deles, de estarem juntos, da paixão que os transformava em animais. Ela tremia em seus braços, pois por mais que conhecesse seu homem, sabia que ele havia preparado algo realmente grande dessa vez, e a expectativa a deixava nervosa e ansiosa. A espontaneidade inata dele, escondia sua capacidade maquiavélica de planejar. Aliando seu comportamento com sua ousadia, podia-se dizer que ele era capaz de tudo.
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Salvos de si mesmos, ele a conduziu por entre as sombras das poltronas da platéia, ela sempre vendada, a luz opaca mais próxima. O piano soava mais perto, capaz de dominar tanto quanto a flauta de um encantador de serpentes. Quando estavam ao lado do palco, somente um holofote de luz baixa iluminava o homem de óculos escuros e fraque. Os dedos interromperam o balé sobre o marfim e o ônix. A respiração ficou suspensa. O pianista suspirou, como se recobrasse as forças para concluir uma tarefa incômoda e penosa, afugentando fantasmas. Apagou o cigarro no cinzeiro de prata acima do piano e acendeu outro. Tateou com a mão direita ao lado de sua banqueta, procurando uma garrafa de vinho tinto já pela metade e se serviu dele. A música voltou a falar por ele. Por um segundo, ela pensou que seriam pegos, que finalmente a brincadeira de se exibir iria deixar de ser divertida para tornar-se um pesadelo. Ela, então, entendeu de uma só vez o que ele pretendia. Na intimidade da cama, certa vez confessou que tinha a fantasia de ser currada sobre um piano, ao som de alguma bela sonata, para convulsionar de orgasmo no ápice da composição, tendo os gritos abafados por beijos esfomeados, que mastigam os lábios e misturam o sangue à saliva. Entretanto, ela nunca imaginou que pudesse realizar esse sonho. Revelou o segredo porque sabia que isso o excitaria. Seu fetiche com o piano de cauda devia-se a seu primeiro namorado e primeiro homem, que tocava piano e que com ela estreou o gozo. Toda fantasia corre o risco de deixar de ser lírica, ao passar do onírico ao real. A tragédia de qualquer utopia. Quanto mais as sexuais.
Aquele medo contemplativo de antes, retornou mais profundo e sólido, misturado com uma sensação absurda de prazer que a tomou sem pedir permissão. Ela percebeu que não havia como voltar atrás. Estavam a ponto de tentar a maior ousadia que já foram capazes; todos têm limites e os de ambos seriam testados aquela noite. O que sobrasse após, estava fadado a ser sublime ou uma ruína. E sem alternativa, ela se entregou aos instintos, em febre, calando a razão e o medo.
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Interlúdio
Ele deu-lhe a mão para ela beijar e os dedos para sugar, para calá-la, para silenciar os murmúrios de sofrimento da tortura que ele estava prestes a aplicar. Ele a deitou e mergulhou o rosto nas pernas trêmulas, sua língua a abrir caminho pelas pétalas rubras, em fogo. Ela sempre se molhava facilmente, assim como bastava um olhar ou mesmo uma brisa que convidasse os cachos vermelhos dela para dançar, para fazê-lo perder a cabeça. Porém, os dois estavam perplexos de como a situação os estimulava. Um dedo, procurando o calor e a umidade para acariciá-la onde ela era mais sensível, dois, três dedos e a língua, todos a serviço da mais cruel das torturas. Ela cravava os dentes na mão dele, para afogar os soluços que brotavam do seu ventre e respondiam pela garganta se espalhando pelo corpo inteiro, implorando pelo outro corpo para alimentar a sua necessidade de sexo. As unhas afiadas, aceradas e vermelhas como seus cabelos, seguravam firmes os cabelos dele; uma forma de tentar retribuir e controlar o tesão, o gozo, o orgasmo. Tantos tentaram fazê-la gozar sem invadi-la, sem sucesso, impacientes amantes que apenas queriam foder e voltar sozinhos para casa, mais leves. Até ele se arriscar. Sem pressa, ele descobriu onde e como ela gostava mais, e ao invés de se impacientar com a escalada da progressão do orgasmo, ele se excitava exatamente com a demora. Com o poder de torturá-la longamente, prolongando o quanto pudesse o tempo que ela precisava para o rio de fogo que escorria por suas pernas abrir-se e inundar sua boca, seu rosto, sua barba. O cheiro do sexo excitado, vermelho e ferido pela barba, era uma fragrância afrodisíaca que os enlouquecia. Entretanto, como não teriam tempo para se devorar pela noite adentro, ele a deixou a beira do precipício de aniquilação e parou. Ela, espumante, pedia clemência, seu rosto contorcido como uma viciada que rasteja por mais um pouco de sua droga. Ela avançou em um bote rápido procurando livrar a roupa que separava o membro dele da boca dela. Ele não poderia se defender do beijo, paraíso osculante que só ela sabia dar. Por isso antes que ela alcançasse o que desejava, ele segurou suas mãos com força e a ajudou a levantar-se dizendo no fundo do seu ouvido:
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Ao Piano
Acobertados pela música que crescia em sua magnitude e potência, puderam, ele e ela, subir os degraus e se aproximarem no escuro até o piano e seu pianista. E ela se viu livre subitamente de sua venda e entre a luz e a escuridão, contemplou a figura solitária sentada à frente do piano de cauda negro e lustroso. Seu rosto era o de alguém que sofre em silêncio, angustiado, sutil e sereno. Como quem espera algo especial que o distraia de seu próprio enfado do talento, degustando alguma ferida antiga. Não se podia ler em sua expressão nenhum resquício que revelasse o que se passava em seus pensamentos, um enigma. As janelas de sua alma estavam hermeticamente fechadas. O cabelo desalinhado contrastava com a bela indumentária; o vaidoso músico, mesmo ensaiando sozinho no teatro antigo em reforma, gostava de ostentar boa aparência. E os ignorava, cego. Ela percebeu a ardilosa artimanha do seu homem para conseguir realizar a sua fantasia. Ele havia se superado, sem sombra de dúvida. Ele a beijou e a colocou inclinada na borda da cauda do piano e levantou o seu vestido. Suas mãos firmes agarraram seu quadril, fazendo com que ficasse totalmente empinada. Gostava de vê-la sem o olhar pernicioso de quem está no controle da situação. Ela, sem emitir som, pronunciou para ele ler em seus lábios o pedido:
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“_Me fode...”
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Ele lhe deu um tapa no rosto, de leve, e fez da venda uma mordaça para ela. Entrou com gosto, fundo, dentro dela, que gemeu de satisfação. Mesmo com a mordaça, um vestígio de gemido escapou e se misturou à música. Como era belo o seu rosto ao ser comida: em seu semblante mil mulheres se mostravam. Desde a puta que gostava de levar tapas e provocar, à menina-mulher que sofria, como sofreu desde o primeiro instante com o pianista, de prazer. Nenhum homem ficaria imune à visão dela, fêmea bela e profana, sofrendo a delícia indecente de se mostrar e amar, em conluio corajoso e sem-vergonha. Sem culpa de ser boa.
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Revelação
Quando a cavalgada se encaminhava para o fim que toda cavalgada como aquela termina, de orgasmo, júbilo e derrota, ele vacilou. Afastou-se, como se tivesse asco, como se não suportasse mais. Ela não entendeu, até mirar o pianista. A música, que no calor dos movimentos ela não reparava mais, estava mais simples, ainda extremamente bela, mas sua composição havia se tornado tão minimalista que só se o músico estivesse tocando com uma mão apenas ele conseguiria aquele efeito. E seu rosto, retraído, como quem sofre de uma angústia enorme, respondeu o porquê seu homem hesitara: a sua armadilha lhe enganara, o pianista não era cego. Ela percebeu no rosto do seu amante que ele sabia e que firmara um acordo para colocá-la naquela situação para realizar sua fantasia, para vencer esse desafio e chegar ao limite do exibicionismo. Ela jamais aceitaria se ele tivesse proposto antes que se mostrarem para um voyeur, pensava ele. Então, ele tentou realizar a fantasia dele, sob o pretexto de realizar a dela, e agora que havia ultrapassado o limite, via que não seria capaz de realizar seus intentos. Qual não foi a decepção dele ao perceber que ainda havia convenções em seu coração até então despudorado. Convenção não, ciúme. O pianista, por sua vez, também foi surpreendido. O que ele queria era estar ali e ser completamente ignorado. Esse era o trato: deveria enredá-los em sua música sem interromper ou se intrometer. Assistiria a sua música personificada na paixão do casal à sua frente. Testemunhar, esse era o seu papel a que tinha direito. Nem mais nem menos. Mas resistir àquela mulher era impossível. O namorado desviou o olhar, não podendo encarar a própria mulher. O pianista fez menção de fugir. E ela, brasa ardente, sedenta e esfomeada, provocantemente provocada, indecentemente deliciosa, ainda esperava para ser satisfeita. Ela estava tomada por uma súcubo que queria ser possuída. Sentia-se traída e irada pela desconfiança e por ter sido subestimada pelo próprio companheiro. Mal sabia ele que ela era mais desavergonhada do que ele sequer poderia imaginar. E ela faria com que ele aprendesse isso, da pior forma possível.
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Servir a dois homens, para a mulher, é ser escrava erótica. Diferentemente da supremacia da fantasia masculina de ter duas mulheres para satisfazê-los. O anseio de quebrar todas as correntes e afogar aqueles dois homens no fundo do poço, que em segredo a enganaram para satisfazer suas taras secretas, era maior do que o seu amor-próprio. Levada pelo instinto de vingança de mulher magoada, ela deu início ao ménage à trois. Sem permitir que o pianista fugisse, o hipnotizando com os seus olhos de feitiço serpentário, da mesma forma que a música a hipnotizara, ela se aproximou dele, apagou o cigarro e o beijou longamente, dando-lhe um banho de saliva. Ajoelhou-se a sua frente, bebeu o resto do vinho para não hesitar e fervorosa em sua prece, engoliu o pianista que, desacreditado, experimentava o desgosto de estar em uma situação que ele não esperava e não queria, e a surpresa de estar adorando isso.
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“_Vladimir, meu nome é Vladimir...”
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Ela não se conteve ao ver aquele sacana tão vulnerável, ela não perguntara nem queria saber o nome dele. Eles nunca teriam intimidade, esperava nunca mais vê-lo depois de terminar o que precisava ser terminado. Talvez tenha sido o sorriso de vitória sedutora em dominar os dominadores, de puta mesmo, que ela fazia nessas situações. O que importa é que, subitamente, ao ver aquela cena, o namorado que deveria achá-la grotesca, excitou-se de forma bizarra. Descobriu-se mais excitado do que outrora, o que parecia impossível. Lembrou-se de onde foi buscar o comparsa, o tarado para realizar seu exibicionismo imbecil; dos comentários doentios de seus amigos ao indicarem-no; de todo o trabalho e espera para poder ser visto fodendo a sua linda mulher, despertando desejo de um desconhecido. A sensação infantil de fazer com a sua mulher o que outro nunca poderia, de jogar na cara do desconhecido o quanto se amavam e como trepavam gostoso. Sentiu nojo de si mesmo, e masturbando-se, aproximou-se mendigando atenção à própria mulher. Ao ver o namorado derrotado, vencido e humilhado pelo desejo que com certeza ele execrava estar sentindo, ela sentiu-se vingada, embora o seu sucesso tivesse um terrível amargor. Sádica, libertou Vladimir de seu beijo para sentar em seu colo, sentindo-o enterrando-se ao máximo em seu corpo. Pegou suas mãos e as colocou em seu quadril para agarrá-la firme e forte, como o seu namorado gostava de fazer. Vestiu a máscara dominadora, embora quisesse mesmo era chorar. Os três estavam excitados e frustrados, porque haviam perdido o controle e sabiam que assim que acabassem e o frenesi terminasse, se sentiriam culpados por só terem gozado pela necessidade de se humilharem mutuamente. Rebolando em cima do pianista e chupando o namorado, eles ficaram, gemendo, se envenenando, sem coragem de sequer trocar um só olhar. Reféns dos seus corpos, até todos, ao ritmo que ela comandava, se destruírem no maior orgasmo de suas vidas.
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Último Ato
Quais as palavras para se dizer quando se cai do paraíso para as profundezas do inferno? O pianista se encostou ao piano, com os cotovelos sobre as teclas provocando um barulho quase insuportável. O silêncio quebrado, todavia, era ainda mais insuportável. Ela se limpou rapidamente e sem dizer uma palavra, apenas com um único olhar de adeus para o seu homem, que não era mais seu, despediu-se e foi correndo para fora, lembrando de como chegara até ali. Assim que alcançou a rua, pegou um táxi e voltou para o seu apartamento, chorando copiosamente. O namorado, sem ter coragem para impedi-la, vestiu-se e, deixado a sós com Vladimir, sentiu toda a culpa, raiva, nojo, vergonha, remorso e ódio personificados naquela figura patética que precisava da paixão alheia para conspurcá-la e desse modo, satisfazer-se. Vendo a reação do homem à sua frente, Vladimir ainda tentou se explicar, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, o outro pegou a garrafa de vinho e a arrebentou contra a sua cabeça e, sem defesa, desmaiou esvaindo-se em sangue. Com as pontas afiadas da garrafa quebrada, perfurou várias vezes Vladimir, como que se com cada punhalada, ele pudesse ferir um inimigo que na verdade era ele próprio. Passado o instante de fúria, sem saber o que fazer, vendo as manchas de porra no maldito piano, abriu-o e jogou o seu pianista para o útero de seu instrumento. Seriam um na morte; orgulhou-se da poesia que estava para realizar, fazendo do piano o esquife para o pianista. Empurrou o piano que caiu do palco com a sua tampa da caixa acústica selada contra o chão. Com o isqueiro de Vladimir, acendeu a pira que consumiria o instrumento e seu mestre, desaparecendo nas ruas com o seu carro logo em seguida.
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Ele saiu com o carro, no meio da chuva que começou a cair e entre tentar ligar para o telefone do apartamento dela que ela deixara fora do gancho, do celular, e dirigir, atingiu em cheio o concreto do viaduto caindo com o automóvel de ponta-cabeça na rua abaixo. Preso pelo cinto, desacordado, não conseguiu sair a tempo do meio das ferragens, sendo carbonizado vivo.
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O incêndio criminoso que cremou o pianista vivo foi vencido pela tempestade, sem maiores danos ao teatro. Três meses depois, a orquestra da cidade fez uma bela apresentação com o repertório do músico, em homenagem.
terça-feira, 27 de maio de 2008
O Diabo Visita o Bar do Santo
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A consciência tropeçava nos degraus da escada ascendente em espiral entre o sono profundo e o despertar, ao sabor dos sacolejos do ônibus que ganhava a rua principal de paralelepípedos. A claridade amarelada dos postes ia devagar, incômoda, jogando feixes de luz nos porões escuros de sua alma através dos olhos que reviravam. E pouco antes de vir à tona, ele viu de relance no calabouço da memória o segredo há muito esquecido, que ele esperava nunca mais ter que encarar. Olhou para o outro lado, instintivamente, tentando esconder o rosto nas sombras, e viu à esquerda, a Igreja de São Pedro, com suas torres azul-celeste e seu relógio parado, prédio típico dos templos provincianos de São Paulo. Aquele relógio, onde os ponteiros se amavam, um sobre o outro, denunciava que Deus há muito se esquecera daquela cidadezinha. Em Itararé sempre é meia-noite. Na praça, em frente à igreja, jovens tocavam violão e bebiam cachaça com refrigerante barato, cantando Legião Urbana e Raul Seixas. Enfim, o carro parou em frente a um bar, numa freada que fez o estômago do único passageiro dar voltas. Da janela via-se no letreiro o nome do estabelecimento: Bar Tropical. Uma súbita sede nervosa acompanhada de um pigarro enervante fez sua garganta arranhar; se não fosse isso, o nome nada condizente com o aspecto do ponto, decrépito, ao menos assim parecia aos olhos do recém-chegado, provavelmente desenharia um esboço de um sorriso malicioso no rosto transformado em carranca, disforme, daquele homem. Sua boca era uma caverna desértica onde um verme desidratado se debatia em meio a dentes afiados. Ressuscitar da letargia imposta pelos remédios se fazia necessário e praticamente impossível. Qualquer lugar serve para quem não sabe aonde ir, pensou. A passagem era para adiante, o mais longe possível, mas assim como não queria se lembrar de onde viera, tão pouco o destino lhe interessava. Tirando força das pernas dormentes, ergueu-se, apoiando-se nos bancos, caminhando cambaleante, exausto, para fora. Cada degrau para descer provocava vertigem, sentia que poderia desmaiar a qualquer momento. A dor é universal.
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“_O que diabos seria Moreninha?” A curiosidade infantil revolveu as cinzas de seus sentimentos sem lhe pedir permissão.
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Sua aparência era horrível, seu rosto transparecia doença, descuido, desgraça. O ar noturno trazia em si o frio de uma garoa que aspergia sobre as ruas delicada umidade, perfeita para provocar os pulmões frágeis que quase imediatamente se fecharam, implorando à alma que levasse o corpo para algum abrigo do sereno. Se ao menos o toldo marrom-poeira estivesse aberto, ele não seria obrigado a entrar. Do lado do bar, uma retrosaria¹ com fachada de vidro e marquise que se transformava em varanda para o andar acima, refletia a calçada praticamente inteira ocupada por jovens, quase todos com um copo descartável na mão. Sem escolha, ele avançou bar adentro sob o olhar curioso dos senhores que se acomodavam em um pequeno banco de madeira ao lado da entrada, fingindo não se surpreenderem pela figura triste e maliciosa que cruzava por eles.
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¹ - Loja de retroseiro; armarinho.
Um senhor calvo com uma aparência que fez o homem sentir-se embaraçado, algo nele lembrava um monge franciscano, embora essa lembrança não justificasse seu embaraço; entrou da porta do fundo do bar e antes de atendê-lo, foi parado por dois rapazes que queriam comprar pinga e refrigerante. Um olhar penetrante analisou os dois rapidamente e então, o senhor que era chamado pelos dois, ora vejam, pela alcunha de “santo”, pediu para conferir a identidade deles. Tudo, de uma maneira bem-humorada e ao mesmo tempo inexpugnável, caricata e inquisitiva. Constrangidos, os meninos surpresos desistiram. Atravessando a rua, eles não encontrariam o mesmo embaraço para comprar bebida ilegalmente.
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