quarta-feira, 3 de julho de 2024

ALEXANDRINA - A Grande - IN MEMORIAM


Uma das filhas de Alexandrina foi Ilda Klimeck Depetris que se casou com Sebastião Depetris e teve quatro filhos: um menino que faleceu com cerca de um ano e três filhas. Rosangela, a filha do meio, depois de casar-se com Carlos Cesar Machado adotou um menino, sobrinho de Cesar. Este sou eu.

Quando meus pais se separaram escolhi agregar os sobrenomes Klimek Depetris da minha mãe ao meu que até então era apenas Machado. Inspirado por meus avós e bisavó maternos resgatei tanto a história do Klimek russo quanto dos Depetris greco-italiano deixando registrado para a posterioridade o legado de ambos.

***

IN MEMORIAM

Assim como Alexandrina, eu fui uma criança muito imaginativa. Em 2009, aos 23 anos, participei de uma coletânea de contos de escritores de Itararé com um dos meus contos sendo sobre a história de origem da minha bisavó. Na época a revisora do meu texto foi a grande escritora itarareense Maria Coquemala a quem agradeço eternamente pelo auxílio e apoio. Este é o mesmo conto em uma nova versão revista anos após a sua publicação.

Eu tive o prazer de conviver com a minha bisavó Alexandrina durante a infância e início da adolescência tendo esta experiência me marcado profundamente. Sua figura alegre que sempre sorria ao me ver agora também sempre me traz um sorriso ao rosto quando me lembro dela.

Alexandrina costumava nos visitar aos finais de semana dizendo que tinha vindo “ver o fio” – esta era a maneira carinhosa que ela usava para se referir a mim – e como morava próxima, na volta, eu a levava andando devagar, respeitando seus passos, com ela segurando meu braço toda orgulhosa passeando pelas ruas distribuindo simpatia.

O quintal de terra de sua casa era um lugar mágico onde eu brincava embaixo das jabuticabeiras e cavava buracos atrás de minhocas. Lá meu avô Sebastião Depetris, marido de Ilda, filha de Alexandrina, manteve por anos o seu paiol com suas ferramentas e tranqueiras amontoadas junto de uma caixa de abelhas sem ferrão que ele comprara para ter mel. Fuçar naquela bagunça era como explorar um tesouro perdido e é outra querida lembrança dos meus tempos de infância.

Nós chamávamos as abelhas carinhosamente e com um certo deboche de “Bastionetes” em homenagem a meu avô que ao contrário do mel das abelhas de doce e meloso não tinha nada. Meu avô era um homem rude que só se permitia demonstrar afeto para com animais e crianças e por isso por um tempo fui alvo deste seu carinho especial e pude testemunhá-lo direcionar tal cuidado com os bichos e criançada que conheceu. As Bastionetes um dia desapareceram sendo provavelmente furtadas por algum vizinho de olho gordo ou foram libertas por alguma caipora que as levou embora para a mata... Tudo era possível naquele reino mágico.

A casinha de Alexandrina de paredes verde-clara continha uma sensação de pertencimento e paz. Eu quando a visitava acompanhava com curiosidade o ritual diário da minha bisavó de tomar chá-mate e rezar o terço e via o calendário dela com a figura do Sagrado Coração de Jesus com espanto, um certo medo e admiração pelas cores fortes e vibrantes.

O azul celeste, o amarelo do fogo, o vermelho vivo do coração ensanguentado em contraste com o rosto calmo de porcelana daquele Messias europeu me fascinava. Embora aqueles símbolos não significassem nada para mim ainda me lembro como se fosse a primeira vez da sensação de estranheza de encarar aquele desenho que ainda me parece pitoresco e contraditório.

Outra recordação é das suas louças e porcelanas e móveis antigos, o chão de pedra de piso vermelho, a sensação de ter tido contato com a o crepúsculo de vida de uma imigrante que encarava seus dias com alegria se sentindo feliz simplesmente por estar viva e ter superado tantos desafios.

Agora então depois de conhecer as adversidades de sua história entendo o porquê ela ser tão contente. Ter sobrevivido a tudo e chegado à velhice com saúde era a sua maior conquista e a felicidade sua maior vingança.

Suas rugas lhe rendiam um ar místico como as feiticeiras dos desenhos animados, entretanto ela jamais poderia ser considerada uma bruxa má. Pelo contrário, seu sorriso poderia fazer qualquer um se render.

Revisitar e compartilhar estas lembranças me dá a chance de voltar a ser o menininho que adorava o colo da bisavó ou o jovem que caminhava com ela de braços dados e quanto mais envelheço mais vejo e valorizo o quanto foi importante ter vivido estes momentos.

Ela que era tão baixinha e com a idade ficou ainda mais recurvada, mas que aos meus olhos adultos se tornou gigante.

Assim hei de me lembrar dela de agora em diante não só com o apelido de “vózinha” que era como a chamávamos, mas como “Alexandrina, – A Grande”.

terça-feira, 2 de julho de 2024

ALEXANDRINA - A Grande - Considerações Finais

 

presume-se que a mulher na janela seja Alexandrina

Edwiga renomeada como Elvira morreu depois de um parto feito no meio do mato. Seu marido abria estradas de ferro e levava junto sua família para os confins do interior do país. Ela ficava a maior parte do tempo sozinha com as crianças e a mãe. Foi assim que Elvira deu à luz a um bebê e perdeu sua vida. A criança morreria de fome uma semana depois.

A mãe de Elvira, avó de Alexandrina, ao acolher o neto nos braços disse tristemente para que a filha morta levasse o filho junto porque naquele fim de mundo ninguém seria capaz de mantê-lo vivo. A mãe teve que enterrar a filha e o neto enquanto cuidava dos demais netos desamparados até o genro retornar e descobrir o que acontecera com sua família.

***

A mãe de Elvira e outros membros da família não conseguiram suportar os sacrifícios que o inferno verde dos trópicos exigia e tentaram voltar para a Rússia. Sendo considerados traidores de sua terra pelo regime comunista eles acabaram por se estabelecer na Polônia. Os demais parentes de Alexandrina que permaneceram aqui continuaram a trocar cartas com a família além-mar por décadas.

***

O irmão de Alexandrina, Luís Poss Filho, morreu aos dezoito anos enquanto trabalhava derrubando árvores. Luís foi esmagado por um tronco imenso que tombou sobre ele. Pai e filho deram suas vidas para abrir caminho ao progresso da era moderna do Brasil.

***

O pai de Alexandrina que perdera a esposa e o filho enquanto abria caminho para os trens encontrara seu fim no dia treze de março. Elvira teria profetizado em um momento de predestinação, semelhante ao que Alexandrina experimentara na viagem, a data da morte do marido.

A cada ano que essa data passava o velho Luís Poss sabia que tinha mais um ano de vida já que realmente acreditava nas palavras proferidas por sua esposa até que enfim chegou sua hora. Luís prometera a Elvira que se caso ele a perdesse ele não se casaria novamente e manteve sua palavra morrendo viúvo no dia em que ela determinara.

***

da esquerda para a direita o quarto homem é João Doscka Klimek

Alexandrina casou-se com João Doscka Klimek, nascido em Almirante Tamandaré, Paraná, descendente dos camponeses da Prússia. Abridor de rodovias e estradas como seu pai, João fez nela onze filhos, sendo cinco homens e seis mulheres. No início de suas vidas eles foram morar em um sítio a pedido de Alexandrina já que ela vinha de uma família de camponeses e conhecia o trabalho do campo.

João mal parava em casa e quando ia embora deixava mais um filho dentro de Alexandrina. Certa vez em uma de suas visitas ao ver a situação precária da família teria aconselhado à esposa que ela e os filhos comessem pedra para saciar a fome demonstrando o desacordo em deixar uma mulher cuidar da casa e da terra.

Segundo Alexandrina este comentário demonstrava o desapreço do marido à sua capacidade de cuidar da casa, dos filhos e do plantio revelando sua posição contrária em relação a adquirir aquela propriedade e deixar que uma mulher ficasse responsável por ela. Ao retornar outra vez João se deparou com a fartura da horta regada ao sangue, suor e lágrimas de Alexandrina que se vingou das palavras do cônjuge lhe oferecendo um banquete.

Alexandrina criou e cuidou dos filhos sozinha. Um menino morreu um tempo depois de nascer e outro aos sete anos. João Klimek teve relacionamentos extraconjugais e seus filhos vivem espalhados pelo interior.

Ele fora descrito por Alexandrina como um homem ausente, frio com quem ela manteve um relacionamento sem convivência durante décadas pelo bem dos filhos. Assim que a última filha se casou Alexandrina imediatamente se separou de João pondo um fim ao casamento infeliz.

Mesmo sendo o divórcio algo tão contrário aos preceitos religiosos cristãos que Alexandrina acreditava, sua vida e liberdade estavam acima destas crenças e ela após aturar tanta coisa finalmente teve sua paz ao viver independentemente.

Ao menos João deixou para Alexandrina a casa em Itararé onde ela viveu até o fim da vida. Alexandrina faleceu em mil novecentos e noventa e oito morando sozinha e rezando o terço todos os dias.

Alexandrina, seu filho Valdomiro e família


segunda-feira, 1 de julho de 2024

ALEXANDRINA - A Grande - Parte V

todas as fotos pertencem ao acervo de memórias de Alexandrina

              as identidades dos indivíduos nelas retratados são desconhecidas 

                     

Como se as coisas não pudessem piorar, uma névoa surgiu obstruindo o horizonte e os ventos morreram por completo. Quando a noite veio a escuridão era profunda envolvendo todo o navio em um reino de mistério e magia com uma mortalha fúnebre sobre aquele imenso caixão flutuante. O ronco dos motores e as vozes abafadas do calabouço eram os únicos sons que cortavam o silêncio tirânico. O mundo dos sonhos estava mais próximo do que o normal e a ameaça do desconhecido espreitava sorrateira causando arrepios.

Perdida em devaneios Alexandrina foi acordada por um choro familiar. Eram gritos altos e fortes a plenos pulmões de criança de colo como se um lobo ou tigre branco estivesse pronto para atacar seu berço ou como se as águias gigantes que arrebatavam recém-nascidos das histórias que sua mãe lhe contava estivessem mesmo atrás de um bebê. Alexandrina assustada e ainda meio sonhando acordada seguiu o choro tateando seu caminho, sendo levada em transe para o convés escorregadio. Um passo em falso a faria desaparecer nas águas sem que alguém pudesse encontrá-la e nada além do seu anjo da guarda a protegia de uma tragédia.

A morte a tirara para dançar e a pequena sem saber do perigo que corria seguia cega para o abismo. Se ela sem querer não tivesse esbarrado no capitão que foi pego desprevenido pela menina que surgia do nada como conjurada no ar não há como saber se ela terminaria a sua viagem. Ela caiu sentada e desandou a chorar acordando de vez com o susto. Instintivamente o capitão apiedou-se da menina e se ajoelhou abraçando-a para acalmá-la e o toque de outro ser humano que por quarenta dias ela não sentia apaziguou sua mente.

O capitão sob efeito daquele marasmo tétrico estava ruminando a culpa de condenar os passageiros à sua própria sorte. Entre aqueles pobres coitados que fugiam de suas terras e os homens que o acompanhavam ele não hesitou em escolher por aqueles que confiavam em sua autoridade e obedeciam a suas ordens. A triste realidade era que dificilmente viagens como aquelas ocorriam sem baixas e ele estava calejado de tanto cruzar os oceanos vendo corpos que se tornavam comida para os tubarões que seguiam o navio devorando tudo que era a eles atirado. Poseidon raramente deixava de cobrar seu tributo.

Alexandrina tentou omitir sobre o que ouvira, mas ao ser encarada pelos olhos do velho lobo-do-mar a menina acabou confessando que ouvira o choro da irmã e a estava procurando. Assim que Alexandrina contou sobre o que acontecera o som de água sendo jogada para o alto com forte pressão ecoou na escuridão rendendo um susto e um momento de risadas descontroladas do homem e da menina pelo sobressalto inesperado. Uma baleia enorme e negra chegara para afastar os tubarões e escoltar aqueles infelizes para fora do reino de morte que se encontravam.

Era de conhecimento do capitão que uma das imigrantes estava escondendo o corpo da filha bebê recém-vítima do sarampo. A mulher não queria que jogassem a filha morta ao mar e por isso escondia a criança no colo a ninando como se ela estivesse dormindo. Porém ele não sabia que a menina que observava seus marinheiros trabalhando era irmã da falecida. O capitão fingira até então não saber sobre o ocultamento já que a quarentena estava para se encerrar e estavam para chegar ao destino final.

Com certeza estes foram os quarenta dias mais duros da infância de Alexandrina que disse para as filhas e netos que sua irmã teria sido enterrada em uma ilha deserta no mar. Quem sabe uma Ilha Pirata? Mal sabia ela que aquilo na verdade era o Brasil. Os navios com imigrantes muitas vezes nem chegavam a aportar simplesmente desembarcando seus passageiros estrangeiros em barcos pequenos ao invés de se dar o trabalho de manobrar para ancorar.

 

sexta-feira, 28 de junho de 2024

ALEXANDRINA - A Grande - PARTE IV

Alexandrina era perspicaz e apesar do desafio de ser uma estrangeira em uma terra estranha aprendeu a ler e a escrever em português sozinha e aprendeu também as orações em nosso idioma para cumprir a promessa de rezar o terço feita para sua mãe. Ela encaminhou os onze filhos na sua fé que fora o seu único abrigo contínuo que encontrou nos árduos anos em que viveu. Seu livro de catecismo escrito em russo é uma das relíquias que o tempo ainda não devorou por completo. A religião pode tanto conectar as pessoas quanto servir de santuário quando elas falham e foi desta última maneira que Alexandrina encontrou abrigo em Cristo.

Isenta da ameaça da epidemia de sarampo blindada por sua fé Alexandrina estava só com os marinheiros no convés. A única passageira virara uma espécie de amuleto da sorte aos olhos dos marinheiros que ela conquistara com sorriso, agulha e linha. Ela se divertia como podia, com os rolos de corda, os transformando com a magia da imaginação em castelos sitiados, lar de princesas, serpentes hipnotizantes, covis de dragões... As lendas e contos foram o que a salvaram da solidão. A imaginação é a ferramenta das crianças, dos loucos e dos poetas para sobreviver à realidade.

O som dos volumes enrolados em lençóis sujos com manchas rubras e que fediam a comida estragada sendo atirados ao mar pelos marinheiros com luvas e lenços sobre o rosto se tornaram cada vez mais comuns. Cordas asseguravam que os corpos ficassem contidos em seus casulos e pedras garantiam o sepultamento no fundo do mar. Os homens não sabiam como lidar com a presença da pequena que os observava com semblante curioso e pensativo enquanto eles cumpriam a tarefa nefasta de dar cabo dos mortos e constrangidos não ousavam lhe dirigir o olhar. Mais ainda Alexandrina rezou naqueles dias e suas preces foram as únicas palavras de despedida das vítimas que em silêncio eram atiradas por mãos rudes.

A menina Alexandrina chegou ao seu limite e contrariando as ordens da mãe correu para as grades do portão do porão para chamar a mãe. Edwiga ninava a irmã de Alexandrina no colo. Ela estava tão pálida, dormia profundamente a ponto de não se mexer. A mulher com um olhar triste sorriu para a filha a salvo. E com uma voz trêmula Edwiga repetiu o pedido para a filha não se aproximar mais do portão deixando a criança falando sozinha desaparecendo nas trevas. Repelir a filha cortava o seu coração, todavia se isso garantiria a sobrevivência de ao menos uma das meninas ela faria o que fosse preciso para que Alexandrina fosse poupada da desgraça que se abatia sobre eles.

Por todo o resto do interminável dia e a noite Alexandrina passou chateada, chorosa, aborrecida. Corvos voavam em volta de sua cabecinha torturando sua mente com coisas que não deveriam lhe dizer respeito. A morte mesmo sem ser totalmente compreendida cavava espaço entre seus pensamentos e plantava dúvida e medos desconhecidos. Ela sentia que algo muito ruim acontecera, porém não tinha naquela idade meios para entender e aceitar a terrível verdade.

 

quinta-feira, 27 de junho de 2024

ALEXANDRINA - A Grande - Parte III


Para se entreter Alexandrina tricotava conforme aprendera com sua mãe e auxiliava remendando as roupas dos passageiros e tripulação sendo paga por seus serviços com presentes como grampos de cabelo e outras quinquilharias que para aquela menina valiam mais que ouro. Os marinheiros ao verem o deslumbramento da menina diante de uma maçã, algo que ela nunca havia visto antes quem dirá provado, lhe deram como forma de pagamento uma destas frutas que ela ficou admirando por sua cor viva segurando-a em suas mãos uma infinitude de tempo antes de finalmente lhe cravar os dentes e provar o seu gosto. Suas primeiras recompensas e descobertas faziam-na sonhar com as possibilidades que a nova terra lhe prometia onde ela poderia enfim crescer, viver e conquistar o que quisesse.

O talento para a costura tornou-se sua profissão herdada por pelo menos uma de suas filhas. Na velhice Alexandrina fazia pequenos tapetes com sacos plásticos de leite que ela vendia e dava de presente para os familiares. A sua imaginação e habilidade com as mãos nunca a deixaram ser ociosa. E enquanto suas mãos empunhavam com maestria as agulhas ostentava um simpático sorriso no rosto.

Acostumando-se com a morosidade da viagem tudo estava indo relativamente bem para Alexandrina quando algo perturbou a frágil calmaria da viagem. Empilhadas no navio as pessoas eram forçadas a conviver muito próximas umas das outras com praticamente nenhuma privacidade. Esta situação forçada criava laços de fraternidade entre estranhos que eram obrigados a compartilhar o parco espaço, contudo a falta de isolamento os expunha a ameaças invisíveis que eles sequer suspeitavam. A condição de viagem não era das mais salubres e doenças eram comuns onde o lucro, não o conforto, era prioridade. Um mal repentino surgiu e rapidamente se alastrou. Febre, tosse, feridas, sangue.

 Em uma semana veio a primeira morte. Não havia como saber quantos passageiros haviam sido contaminados. O número de mortos começou a crescer. Os velhos, os doentes e as crianças eram as principais vítimas. Os marinheiros que se mantinham saudáveis por não confraternizarem com os passageiros tendo seu dormitório separado seguiram a contragosto a ordem do capitão de trancafiar todos os passageiros em quarentena nos porões. O líder do navio sabia que nenhum porto os aceitaria se soubessem que as pessoas a bordo carregavam o signo da morte e segundo seu aprendizado era preciso esperar a maldição expurgar quem tivesse que morrer para que os sobreviventes pudessem chegar ao fim da viagem.

Alexandrina não entendeu a razão de toda a sua família ter que ficar no frio, escuro e feio porão do navio. Os gritos de dor, os pedidos de socorro, o suplício de adultos e crianças, sepultados nas entranhas da nau ecoavam abaixo de maneira sinistra como uma sinfonia dantesca. Sua mãe antes de ser escoltada com o resto dos passageiros para a masmorra entregou para a filha um terço rogando a ela para que rezasse enquanto estivesse sozinha pela salvação de todos e a menina por toda a vida cumpriu esta promessa à mãe, Edwiga, rezando diariamente durante toda a sua vida.

domingo, 23 de junho de 2024

ALEXANDRINA - A Grande - Parte II

 


A viagem transcontinental ocorrera durante meses. Os dias se passavam lentos, minutos se transformavam em horas e dias em séculos. Logo a sensação da jovem era estar vivendo uma eternidade presa em uma dimensão paralela feita de ar e água e esta impressão se estabeleceu em seu estado de espírito. Sentia-se como na Arca de Noé imaginando que o mundo todo havia sido engolido pelas águas e que talvez, desta vez, não tivesse sobrado mais nenhuma terra e eles ficariam ali presos até morrer. Apenas com o céu cinzento sobre sua cabeça e o mar escuro ao seu redor a imaginação da menina influenciada pela criação profundamente cristã voava solta e alcançava lugares sombrios. E provou-se de certo modo assustadoramente profética; um dom tão inexplicável quanto o que sua mãe também manifestaria logo mais.

Embora não houvesse de fato um dilúvio este seria o século mais atroz da humanidade e ninguém poderia prever ou sonhar com os horrores que ele geraria. As guerras em proporções globais, o holocausto em escala industrial, as armas de destruição em massa que ameaçam a vida como conhecemos são alguns dos maiores exemplos dos pesadelos hediondos que estes últimos cem anos trouxeram. Somente o ideal de lutar pelo bem comum do ser humano garantiu que no momento mais sombrio não sucumbíssemos ao ódio e assim graças à luta em comum dos trabalhadores o nazismo foi derrotado tornando a menina e o seu povo heróis não reconhecidos da humanidade. Ironicamente seria com este epíteto - heroína da humanidade - que ela seria batizada ao chegar ao Brasil. Mesmo considerada uma traidora da nação por sua pátria-mãe por fugir e vista apenas como mais uma imigrante desesperada que seria explorada à exaustão por aqueles que a aguardavam ao desembarcar, ela venceria tudo e cravaria suas raízes fundo na nossa terra até enfim nela ser enterrada.

Nos registros brasileiros todos esses imigrantes do leste europeu foram catalogados apenas como “eslavos”. Um nome que resumia tudo o que o Brasil não conhecia e tão pouco fazia questão. Apagar as nacionalidades dos imigrantes ao rotulá-los da mesma forma facilitava segundo a lógica irracional da época o processo de imigração ao forçar os imigrantes a abandonarem seu passado para abraçarem a sua nova vida, como se fosse preciso forçar alguém que renunciou a tudo para se integrar a um novo lugar.

Então não apenas destituímos os imigrantes de suas identidades como também os recriamos à nossa imagem e semelhança ao reescrevermos seus nomes e sobrenomes com a justificativa que seria mais fácil para os brasileiros pronunciarem os termos estrangeiros. A recém república que nunca superou a colonização realizava o sonho doentio de deixar de ser oprimido para se tornar o opressor alimentando o ciclo vicioso de violência.

Por isso a nossa protagonista recebeu o nome de “Alexandrina” (nome de origem grega que significa “defensora da humanidade”). Nunca saberemos seu nome verdadeiro. Só podemos cogitar qual seria, pois, ao rebatizá-la lhe comunicaram que o novo nome se parecia o suficiente com o original e seria melhor para ela agora que era brasileira.

Apesar de todas as tentativas de apagar um povo a coragem prevalece. Alexandrina escondeu dentro de si seus tesouros de além-mar onde ninguém poderia saquear seu legado. E é graças à sua força de vontade e tenacidade de espírito que estou aqui para registrar esta história singularmente épica.


quarta-feira, 19 de junho de 2024

ALEXANDRINA - A Grande - Parte I

 

A inocente menina de pele clara e bochechas rosadas nunca mais esqueceria a primeira vez que os seus olhos azuis viram o leviatã de ferro e vapor que se agigantava à sua frente. A besta mecânica colossal movida a carvão em brasa que expelia colunas incessantes de fumaça galgando as alturas celestiais parecia para ela, uma simples camponesa, uma visão vinda dos sonhos. Então ela soube através de sua mãe que aquilo era o que iria levá-la para a sua nova casa no outro lado do mundo.

Sentiu-se nervosa. Parcialmente curiosa pelo futuro que se apresentava e maravilhada pelas possibilidades que o mundo reservava, mas também ao mesmo tempo triste pois mesmo com poucos anos ela já era capaz de entender que havia ali também uma despedida implícita que determinaria sua vida para sempre; ela jamais retornaria à sua terra natal.

Sua humilde casa de dois andares onde vivera até então os seus dez anos permaneceria apenas em suas lembranças. E tais memórias ficaram marcadas profundamente em sua mente como quando no inverno sua família compartilhava a casa com os animais que dormiam no chão enquanto eles se deitavam no andar superior e desta forma com o calor das bestas o interior do lar se mantinha aquecido permitindo que eles pudessem resistir ao frio implacável. O lar de sua infância seria deixado para trás ao pisar a bordo do navio de imigrantes. Como Jonas ela fora engolida por aquela baleia de aço e o seu derradeiro destino se iniciaria quando enfim desembarcasse.

Os pais da garota, sua irmã pequena, a avó materna e os avós e tios paternos sonhavam com uma terra menos árdua, gélida e hostil. Toda sua família estava cansada de lutar pela sobrevivência e compreensivelmente desejava uma vida melhor. O novo século trazia em si o augúrio de profundas mudanças que se formavam como uma tempestade por sobre o mundo. A menina e sua família só queriam se abrigar antes da tormenta chegar.

E um pouco antes da dinastia dos czares encontrar o seu fim chegou até eles o rumor de um convite a um paraíso onde bastava plantar para colher em abundância e o verão era eterno. Se tratava de um país do outro lado do mundo que eles nunca haviam ouvido falar. Esta terra encantada estava de braços abertos convidando os trabalhadores europeus para construírem seus lares em seu regaço. Cheios de esperança eles ganharam o mar arriscando tudo por tal promessa sem saber o preço que este sonho iria custar.

Este embuste brasileiro atraiu milhares de imigrantes para trabalharem nos campos ocupando o lugar da mão de obra barata que os fazendeiros desejavam para explorar na lavoura após o fim da abolição da escravatura. Os imigrantes também serviriam para serem triturados nas engrenagens dos tempos modernos que exigiam gente para se arriscar nos rincões selvagens e pavimentar as novas estradas e trilhos do futuro. Sem saber a menina e sua família fugiam do epicentro dos maiores conflitos da humanidade para cair na armadilha de uma nova república que ainda funcionava como uma colônia: sempre parasitando o povo em prol dos interesses dos ricos.