quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

HAMLET


Acordou com o gosto amargo da ressaca miserável na boca. Antes de sua derrocada até a sarjeta, quando ainda bebia socialmente, ele costumava brincar com seus amigos comparando este gosto ao "gosto de pau de mendigo". Todos costumavam rir de sua engenhosidade perversa em tecer estes tipos de comentários que misturavam originalidade com asco. Hoje, sem teto, ele não acha mais nenhuma graça em si e não mais zomba dos alcoólatras e nem dos que sobrevivem nas ruas. E pensando bem ele jamais bebeu socialmente e tão pouco foi admirado - as pessoas riam era de constrangimento.

E disso ele entendia. De constrangimento. Ele sentia o embaraço que se tornara para si e para os que o cercavam nas festas de aniversário dos filhos, nas reuniões de família, nas convenções sociais em geral. Os olhos da esposa transbordavam com este sentimento, porém o que o amargurava era o silêncio. Ninguém falava nada. Ninguém reclamava. Ele era aquele parente indesejável que era melhor ser ignorado a ser confrontado, tolerado pelo bem dos demais. Ninguém falava nada porque ninguém acreditava que adiantaria. Ele era um caso perdido. E assim, ele se tornou exatamente o que esperavam dele. Se afogou no poço da autopiedade e se livrou de toda esperança, de qualquer sentido na vida. A mulher o abandonou, levou os filhos. A família o renegou completamente. Estava sozinho e perdido e merecia seu destino. Ele trilhava os passos tortuosos de seu pai e apenas a lembrança dos tempos de infância acalentavam seu espírito enquanto seu corpo se acostumava a ser fustigado pelo sol e pela chuva.

Seu pai era do campo e ele crescera do mesmo jeito. Aos nove anos já fumava e bebia, incentivado pelo próprio pai, modelo de homem que ele idolatrava. Ninguém o questionava e mesmo estando errado ninguém o contrariava. Sua mãe o tratava como rei lhe servindo de todas as formas na mais completa submissão. A vida da pobre coitada era para viver em função do marido e assim fora até ela se tornar mãe. Então as consequências dos excessos do marido que ela suportava começaram a ser direcionados ao seu filho. Por mais de uma vez ela se colocou entre o companheiro e o filho e pagou com sangue. O menino que tinha no pai um heroi jamais acreditara que ele fosse capaz de realmente lhe fazer mal e nunca perdoou a mãe por separá-lo dele. Nunca mais vira o pai desde que deixara o campo para vir para a cidade.

Cresceu passando dificuldade, a mãe solteira fazia o que podia para sustentá-los. Ele não ajudava em nada e a culpava. Ela implorou por auxílio com um irmão de seu pai que os acolheu ao procurá-los para dizer que o grande beberrão havia sido encontrado morto no meio do mato, esfaqueado por causa de uma garrafa de pinga. Ao saber do triste fim de seu pai as coisas pioraram, sua mãe agora morava com o tio e se tornara esposa dele se encantando pelo homem que se assemelhava ao antigo marido fisicamente, porém que agia de forma totalmente diferente. Sentia que aquele homem estranho desonrava a memória de seu pai e fugiu muitas vezes de casa. Na última, se casou e jamais voltou a ver a mãe traidora e o tio usurpador.

Agora sozinho por ter esbofeteado a mulher e tentado espancar os filhos como seu pai ele vivia um dia de cada vez para beber e entorpecer os sentidos e recriar em sonhos ébrios seu tempo de criança - a época mais feliz de sua vida. E revivendo o amor que sentia por seu pai, mesmo sabendo que ele jamais o merecera, consciente que sua saúde estava com seus dias contados, decidiu revê-lo uma última vez.

Embora tivesse flertado com a ideia, foi no dia de finados que ele tomou coragem para executar o seu plano. Munido de uma pá de cimento que furtara quando fizera um bico de ajudante de pedreiro ele se infiltrou em meio a massa de familiares saudosos dos seus entes que partiram. Enquanto muitos choravam, acendiam velas, limpavam os túmulos dos falecidos, trocavam as flores dos vasos ele esperou em frente ao túmulo do seu pai e ali lembrou-se de quando testemunhou o coveiro selar seu túmulo. Emocionado conversou com o pai por toda a tarde. Com o movimento enfim diminuindo ele partiu para a ação.

Retirou o cimento de entre os tijolos com o maior cuidado possível para não fazer muito barulho e puxou tijolo a tijolo até chegar no caixão semicorroído. Dentro dele a carcaça de seu pai jazia em paz imperturbada e ele, alucinado pela emoção etílica, entrou dentro do túmulo para conseguir o que queria: o crânio do homem mais poderoso que conhecera, do rei entre todos os outros. Ao pegá-lo nas mãos, estranhou, ele não parecia ser tão pequeno. Aos olhos de menino ele tinha o pai como um gigante invencível e ali encontrara somente um esqueleto sem nada de especial.

De qualquer forma, ciente de que não tinha mais como voltar atrás, escondeu na camisa rota e suja o tesouro e partiu do cemitério. Ao passar pela entrada, leu a mensagem em latim sobre os quatro pilares: "haec itarareentium domus secunda donec tertia" e mesmo sem entender nada sorriu. A satisfação do êxito em cometer tal ato ao mesmo tempo ousado e asqueroso lembrou seus tempos de juventude e de seus comentários. Talvez alguém tenha o admirado em uma dessas frases de efeito nas mesas de bar, com toda certeza, depois daquele dia, todos iriam se lembrar dele.

Para completar e deixar o seu legado ele precisava ser descoberto. Um crime perfeito só vale quando se revela a genialidade (ou loucura) de quem o cometeu. E assim, ele não foi para muito longe e adentrou a Santa Casa de Misericórdia portando entre trapos o crânio de seu pai e conversando com as pessoas apresentando o maior homem que elas conheceriam em suas vidas. O cheiro de morte, urina e bebida emanavam dele como uma peste e a comoção por sua aparência, cheiro e tesouro fora tanta que as pessoas realmente talvez nunca esqueçam o mendigo insano que perturbava a frágil paciência dos pacientes do SUS naquele dia agourento.

A Guarda Municipal foi chamada e o sujeito detido com uma fiança de mil reais. Seu meio-irmão que ao ser contatado respondeu biblicamente repetindo as palavras de Caim para Deus: "Acaso sou guardião do meu irmão?" ao ser indagado se teria o dinheiro para livrá-lo do cárcere deixou claro o seu desprezo. O crânio foi devolvido ao túmulo e este ato de megalomania não surtou o efeito desejado tendo apenas uma nota de rodapé no folhetim mais sensacionalista e ridículo que circula no município.

O homem aguarda seu destino preso, sabendo que aquela talvez seja sua última noite, ele dorme sonhando em rever os braços do pai para fumar um paiero ao seu lado e matar uma garrafa de aguardente. E sente a presença de seu espírito como um fantasma a lhe anunciar o fim. 

"Há mais coisas entre o céu e a terra do que desconfia a nossa vã filosofia" - ele concordaria, com certeza, se conhecesse Shakespeare.

E sem ter tido chance de se questionar sobre "ser ou não ser", ele se foi.

sábado, 24 de junho de 2017

Prefácio

Cuidado caro pobre leitor...

Saiba que tudo que aqui você irá ler de nada foi pensado em você ou para o seu bem. Nada foi feito através das boas e virtuosas intenções modernas de auto-ajuda e de elevação espiritual. Pelo contrário, se pensei em você foi com o intuito de facilitar a sua auto-destruição, a sua queda, a sua morte, o seu fim.

Eis diante de ti a minha Bíblia Negra, o meu Necronomicon, os meus escritos desgraçados, a minha cria demente e pervertida de pensamentos bizarros, doentes e belos. Como um Íncubo, como a Serpente, como uma sereia em uma rocha a beira-mar, como uma ninfa a se banhar em um lago no coração da floresta, como Eva, Pandora; eles (a minha prole mental) te seduzirão para destroçar a sua sanidade e a sua alma. Todos os monstros e demônios somados não se equiparam com o que a minha mente foi capaz de produzir pois nunca tive limites para fantasiar e esta é a minha perdição.

Por isso neste prefácio eu te rogo: desista. Desista inocente que jamais poderá esquecer-se do que aqui foi registrado com sangue. Nem mesmo se arrancar os seus próprios olhos você será capaz de eliminar as imagens oníricas, os paraísos psíquicos que despertarei em sua mente mundana, patética e miserável. Vá de retro curiosas crianças que sem malícia anseiam por percorrer avidamente este bestiário imaginário de contos, poemas, e crônicas malignas e profanas. Nenhum de vocês será o mesmo após esta leitura herege, este ritual de evocação do que há de mais terrível e sedutor no ser humano. A fagulha da criação que permaneceu dentro de nós refletindo como em uma casa de espelhos todas as facetas do mal, da tragédia, da dor, da existência mortal, dos prazeres da carne.

Como Dante outrora avisara nos umbrais que se seguiam ao inferno: "Ó vós que entrais, abandonai toda a esperança..." estejam cientes do que lhes aguarda. Ou como a maldição declarada dos profanadores da pirâmide de Tutankhamon: "A morte virá com asas rápidas para aquele que perturbar a paz do rei" aqui jaz o meu último aviso dos piores augúrios para os que exumarem os meus escritos. Estes que deveriam seguir ao túmulo comigo e nenhum olho humano deveria se debruçar sobre "Nunca mais" - grita o corvo de Poe. Mas a vaidade me vence e não suporto mais manter este pandemônio privado e por isso vencido passo adiante tal praga como uma epidemia literária para que contamine o mundo e todos possam sucumbir comigo.

Boa sorte, pobre leitor, e nunca diga que não fora avisado.

Boa leitura.

Seja bem-vindo ao meu mundo.

JOSÉ RODOLFO KLIMEK DEPETRIS MACHADO

terça-feira, 30 de maio de 2017

A Derrota de Ares


A noite fria arrepiava a pele do lado de fora, mas dentro daquela tentativa de trazer o mítico conforto ébrio da ilha sem serpentes aos trópicos o ar era quente. Ao fantasiar com os pubs do Velho Mundo e dos da terra dos leprechauns alguém se empenhou em evocar este sonho de proporcionar uma tradição antiga de se embriagar começando pela fachada com portas de madeira enegrecida trabalhada. Naturalmente a cor do interior era verde escura como a de um trevo de quatro folhas que cresce sob a sombra, se existissem trevos de quatro folhas. E havia ainda o balcão de madeira, as marcas importadas nas prateleiras, a decoração cheia de coisas do além-mar. Aquele pub representava mais o ideal de um pub do que a grande maioria dos pubs ingleses e escoceses, pocilgas subterrâneas e porões úmidos e fétidos. Os celtas, os vikings, toda a cultura medieval das tabernas ajudaram a criar no imaginário mortal um paraíso de alegria e indulgência que só os bares poderiam proporcionar. Lembrou-se de seu amigo Dionísio e riu, ninguém imaginava o quanto ele se daria bem nos tempos que viriam. Afinal, entre o amor e a guerra todos precisam esquecer seus traumas e dores e nada melhor do que procurar esta trégua com a memória no fundo de uma garrafa. Ele entendia isso agora. Sentia saudades do amigo, mas ele se fora há tanto tempo que quase não sentia remorso pelo que fizera.

Enquanto bebia e ria com os seus mais novos amigos de infância (era incrível como a bebida e os entorpecentes uniam as pessoas e criavam intimidade) a TV mostrava uma luta de UFC onde dois grandes nomes da violência do entretenimento travestida de esporte tinham desistido de se enfrentar. Os gladiadores modernos explicavam diante de flashes e câmeras que simplesmente não viam mais razão em lutar. Entretanto se não bastasse esse registro bizarro, a transmissão foi interrompida por uma notícia histórica: a Coréia do Norte e a Coréia do Sul acabavam de fazer um acordo de paz inédito e abriam suas fronteiras bem como no Oriente Médio as guerras seculares finalmente terminavam com um acordo entre líderes religiosos e políticos de um cessar fogo imediato e perpétuo. 

Todos comemoravam se abraçando e bebendo ainda mais e beijos nasciam desta atração de corpos. Parecia ter em sua companhia não pessoas e sim sátiros e ninfas. A comparação lhe fez rir-se, como seria bom se fosse verdade. Ele estava se divertindo como nunca, quem diria que uma folga seria tão prazerosa? O mundo não iria acabar se ele relaxasse um pouco, aprendera que poderia ceder se fosse por um bom motivo: como cair nos encantos de Afrodite. Jamais ele teria alguém como ela, ele sabia da dura realidade, mas ninguém poderia persuadi-lo de tentar encontrar uma substituta... ou milhares. As chamas da paixão e da batalha queimam insaciáveis e o mundo estava ao seu dispor. E amar uma mulher comprometida só adicionava mais lenha naquela fogueira eterna.

O sino tocara e chegava a hora de fechar as portas. Mas naquela rua ninguém parava se não quisesse e se tivesse como bancar a sua devassidão. Bastava manter-se consciente o bastante para não acabar como o fundador do império romano morto por sua esposa e que nomeava aquela rua embora ninguém soubesse sua história. Contra Cronos ninguém vence e mortais e deuses são engolidos por ele ora ou outra, o grande déspota castrado pelo próprio filho que esquecera o próprio nome e apenas cumpria o seu dever de devorar a tudo e a todos apagado como todas as outras lendas e contos. Não havia ninguém mais da velha guarda. Só ele resistira como tinha que ser. E agora o velho soldado queria descansar e gozar o tempo que ainda lhe restava. Nem mesmo ele, a mais natural das emoções humanas iria sobreviver. O sadismo, o derramamento de sangue estava por acabar. E para comemorar o fim de todas as coisas correu para o templo de Pan, o primeiro a cair, um grande casarão que honrava as prostitutas da antiguidade.

Lá o cheiro de vulgaridade e promiscuidade fez os seus sentidos despertarem. Não havia nada que os mortais pudessem inventar que fosse melhor e mais forte do que o doce gosto do vinho divino, do sangue dos inimigos, do hidromel e do néctar da vulva de uma deusa. Mesmo Héstia, a casta, ao ser estuprada detinha um aroma e um sabor indescritível. Mesmo assim as dançarinas ali poderiam lhe fazer lembrar destas experiências com mais detalhes e só isso justificava sua presença naquele prostíbulo. E o desespero dos homens ao encarar mulheres tão poderosas era incrivelmente afrodisíaco como os náufragos ao se depararem com as belas e terríveis amazonas. E pensar que os descobridores desta terra acharam que a floresta repleta de mosquitos e que nunca deixa de chover seria a terra de tais guerreiras. Tão tolos e tão inocentes. Os mortais eram uma criação absurdamente divertida por nunca deixar de surpreender. Ao pensar nisso quase se arrependeu de ter dado cabo de Prometeu, que roubou o fogo do Olimpo para entregar a estes vermes com vida.

Passeou e conversou com as mulheres ouvindo-as mentir doces mentiras baratas de que ele era o homem mais belo que já conheceram e que estavam loucas para galopá-lo. No entanto aquelas palavras de adoração fajuta fazia o seu ego faiscar, como quando pagavam grandes sacrifícios a sua imagem para garantir sucesso nas batalhas. Ele jamais, contudo, garantiu vitórias. Vitórias eram obtidas através de estratégia e ele não pensava para agir. Simplesmente inspirava o ódio puro e simples no coração dos guerreiros, como nos espartanos e os berserkers. Estratégia era com Atena, a querida Atena, que mesmo com toda a sua sabedoria não pode evitar seu fim ante a espada do deus da guerra. E de ser violada por ele antes de morrer e desaparecer. Ah, lembranças, lembranças tão queridas...

Escolheu as mais belas e depravadas e seguiu para o quarto e lá chafurdou entre os lençóis por horas. Dinheiro não era problema, afinal, para quem possuía a Cornucópia nada era impossível. E enquanto proporcionava os maiores orgasmos daquelas fêmeas quase as fazendo morrer de exaustão e prazer o mundo ia esfriando e deixando de ser o que era. Os predadores do planeta morreram em poucas horas, famintos e incapazes de caçar e atacar os outros animais. As plantas, claro, por um breve tempo floresceriam até a população de herbívoros destruir o ecossistema e tornar o mundo estéril. Até o último instante porém Ares teria a sua aposentadoria fornicando e quando não houvesse mais humanos para usar ele morreria se masturbando e lembrando de toda a sua existência e de todas as vidas que tirou e de todo o prazer que o sexo e a violência lhe garantiram. A paz e a passividade enterrariam a tudo e a todos e condenariam a vida no planeta. Gaia iria dormir o sono sem sonhos.

Antes do apocalipse, todavia, já amanhecia e as padarias abriam. Chegava a hora de comer um pão com manteiga na chapa e tomar um pingado na terra da garoa. Mais um dia de luta surgia para o deus que desistira de lutar contra seu destino. Agora era hora de aproveitar enquanto podia os louros da vitória. Vencera e exterminara todo o panteão e enterrara-os no Olimpo. Viveria como e com os mortais até o fim e não mais lhes invejaria a urgência de viver já que toda criança que nasce sabe que eventualmente morrerá. Agora ele também entende como é conceber o próprio fim e sorri pela oportunidade de conhecer a mortalidade. Depois de garantir que todos os deuses aprendessem essa lição agora era a sua hora de aprender que todos são derrotados e que o que vale é o que fazemos até beijar a lona de vez.
 

quarta-feira, 15 de março de 2017

Contos de Fadas Fodas

Não espere a agulha da roca cumprir a maldição. Nem que alguma profecia venha selar o seu destino em vão. Há torres de castelos onde você poderia ser presa, caixões de vidro para expor a beleza da princesa mesmo depois de sua queda - quem foi jamais deixa de ser realeza - ao menos sete likes você garante para saciar a fama que você almeja. Até onde você iria pela vaidade que te ensinaram a perseguir? Seja quem você quiser, uma gata borralheira se lhe convier, não corte, não alise se não for pra ser feliz sendo você mesma.

Bonecas para donzelas aprenderem como se comportar em suas douradas celas, marionetes para crianças ingênuas, quem decide quem vence o dragão? É melhor ser vítima ou o conquistador do reino? Há quem diga que é possível fazer os dois, ser queimada sem queimar e ainda lutar pelo trono além mar. Só é fantasia se você não acreditar que é capaz. Não é preciso temer a moça, rapaz. 

Joanas D'Arcs modernas que não se sujeitam a se encaixar nos moldes, como os sapatos da Cinderela. Rapunzéis que deixam seus pelos crescerem onde e o quanto quiserem, sem amarras, ainda assim igualmente belas. 

Não ature as Feras que não sabem lhes tratar, fujam com o Lobo Mau que desde o princípio foi muito claro sobre o que queria... e não era se casar. Despachem os Príncipes Encantados que afobados te estupram com os lábios enquanto você dorme, te abusam e querem um final feliz onde eles ordenam e vocês sempre dizem sim, por medo, belas, recatadas e do lar, obrigadas a dizer: "obrigado" e a nunca negar.

Sejam livres, sejam Valentes, sejam felizes e sejam irmãs. Sejam damas e vagabundas sem julgar nem condenar a decisão umas das outras. Deslumbrantes bruxas ligadas pela amizade como um talismã. Pois só se unindo vocês irão vencer este mundo onde em cada esquina, em cada família há um vilão querendo manter a tradição de diminuir a mulher para fazê-la acreditar que ela deve se respeitar e ser tratada como uma princesa: uma princesa que obedece aos outros, porém nunca se liberta da sua fraqueza.

As coisas estão mudando, com certeza. Quem diria, até nos comerciais de cerveja. 

Mas não é por isso que temos de diminuir a luta.
Que cada vez mais haja quem queira participar desta causa.
E a moral de respeitar o próximo seja o legado desta história.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

A Mordaça da Educação


Antes de falar, nós cantávamos. Cantávamos imitando o som da natureza, dos animais, da chuva, do trovão, encantados e envolvidos pela magia do mundo. Nas religiões foi apenas através do comando da palavra que foi possível Deus criar o universo e que o homem pode criar-se a si próprio ao ponto de criar um Deus para si que pudesse explicar através de evangelhos os ensinamentos de geração em geração sobre a sua própria origem. A fé se manifesta através da palavra, as pinturas na caverna são o abecedário da imaginação do homem primitivo. Damos poder aos que falam e o que está escrito torna-se lei. Somos unidos pela língua, podemos travar guerras ou lutar pela paz com a perspicácia da argumentação.

Ao nos apaixonarmos pedimos a mão de alguém, mas é através do som que fazemos isso. Seduzimos, nos apaixonamos, demonstramos os sentimentos: o nosso melhor e o nosso pior. E para que tudo isso ocorra é preciso uma ligação transcendental entre a boca e o ouvido. Não há sentido em falar se não for para ninguém ouvir. E não há alegria maior do que ser compreendido por um próximo que te escuta. Este é o reconhecimento máximo da comunicação.

No entanto cada vez que uma palavra migra de uma boca para um ouvido ao ser replicada por uma nova boca ela é transformada pois é amorfa e flexível para se moldar ao tipo de discurso de cada um. Logo, esperar ou exigir um único discurso das pessoas é censurar toda a humanidade. O meu papel é compreender que o aluno não se expressará como eu me expresso, mas que aquilo que foi dito por mim seja transmitido até ele para que ele possa tomar para si da maneira que ele achar melhor este conhecimento. A liberdade de conhecer é esta: fazemos o que quisermos com o conhecimento porque com ele podemos tudo. Sem ele estamos presos aos grilhões da ignorância. E reconhecer que há momentos que a formalidade exigirá um discurso padronizado não é desmerecer os demais discursos, é oferecer mais uma camada de possibilidade linguística a quem já se comunica.

E esta responsabilidade que é também um fardo que nós professores da língua possuímos é desconhecido dos demais profissionais da educação. Os pais e os que comandam as escolas muitas vezes mal conseguem conversar entre si, mas somos nós quem somos os condenados quando um aluno não se sente confortável em se abrir; já que temos a obrigação não só de passarmos o bastão do conhecimento da língua como também estabelecer um elo que faça o aluno ser capaz de se expressar e que ele seja confiante o bastante em si mesmo para não temer qualquer desafio e encare o mundo com sua voz desenvolvida. E dentro do possível conseguimos isso, mesmo que raramente, estabelecer uma conexão onde a língua se torna uma forma de se comunicar, trocar informações e manter um respeito mútuo - mesmo que para outros isto pareça o contrário.

A escola é um antro de pensamentos atrasados perpetuado pela tradição de subestimar os alunos, esta atitude que é partilhada muitas vezes pelos pais. Ninguém acredita que o aluno seja de fato capaz, porém querem que os enganemos para que eles pensem que são. Este é o paradoxo cruel da nossa profissão. A educação tradicional olha os alunos de cima, nós temos de olhá-los nos olhos.

Lutar contra uma educação retrógrada, conservadora, elitista e que cada vez mais tenta iludir os alunos com promessas de grandeza e opções de futuro onde só reside o vazio, o sofismo, a retórica barata, é cansativo e frustrante. Muitos são cooptados e acreditem na promessa de que as mudanças são para concretizar a frase que diz que "as crianças são o futuro" - contudo com base no que estamos vendo acontecer o nosso país continuará a ser um país ancorado no passado.

Um lugar onde o aluno vai para a escola porque os pais não podem e nem querem passar o dia com eles, onde o Estado prefere armazenar como gado os jovens para evitar problemas e onde os professores são os bobos da corte que os mantêm distraídos enquanto eles envelhecem o suficiente para trabalhar e pagar impostos. E os que quiserem honrar o seu diploma e realmente desejarem trabalhar serão aconselhados a repensar sua conduta já que não devemos mostrar os erros e a ruína da aprendizagem dos alunos e da degradação da relação entre pais e filhos.

Os professores são o band-aid que seguram a ferida exposta que é a educação no Brasil e nunca são ouvidos quando o assunto é melhorar a educação. Há algo muito errado nisso e uma hora não haverá mais como estancar essa chaga. A mordaça vai cair e a verdade virá à tona. 

sábado, 18 de fevereiro de 2017

A Pena É Mais Forte Que A Espada


Nós nascemos derramando sangue
Abrindo caminho como um caranguejo saído do mangue
Do lodo nós viemos projetados para sofrer
Andando sempre para trás somos o retrocesso da evolução
E nos contentamos para sobreviver a
Causar cada vez mais dor ao penetrar
Sangue, a cada mês o casulo da vida
Se perde e se esvai como uma ferida
Uma cicatriz que não se cura
Um coito interrompido, fúria

O irmão mata o irmão
A mãe afoga o embrião
O pai devora o varão
O filho destrona o barão
Na linha de sucessão
Só a violência impera

E temos prazer no sofrimento
Envenenamos o pensamento
Com ódio, rancor, mágoa
A vingança condicionada
Tragédia anunciada a cada alvorada

Recorrer aos instintos mais básicos
Aos que nascem sem garras cria-se a espada
Eu desafio a todos a realmente serem bravos
E encarar a existência na palavra

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

REVOLUCIONÁRIO


Para aquele que precisa estar sempre no topo do pódio
Do medo e da ignorância se destila o seu extrato de ódio

A ameaça no seu discurso deixa cada vez mais claro
Aquilo que se revela através de seus argumentos falhos
Do saudosismo do terrorismo da tirania do passado
Atravancando o futuro, remoendo o próximo passo
As gerações transformam a realidade impossível
E as mudanças, para os incrédulos, inverossímil
Se concretizam como profecias de pesadelos
Para os que se regozijavam com a injustiça
Agora têm de encarar as crianças quebrando os tabus
E todos os seus medos eles enfrentam
Ao olhar no espelho a ignorância lhes questiona
Onde foi que eles erraram?

Em muito mais do que vocês pensavam
Tudo que está vindo à tona já lhes era conhecido
Vocês apenas estavam conformados
O ópio da fatalidade, do intransponível lhes limitara
O óbvio ululante deixou de ser um fardo
A verdade é triste, mas a coragem de revelá-la
Veio com as crianças tristes que foram maltratadas
Que receberam surras na tentativa de doutriná-las
Coagi-las a seguirem as tradições inválidas
A perpetuarem os preconceitos cegamente, caladas
Ajustando o cabresto e a mordaça
As algemas, as correntes, as amarras foram despedaçadas

Ninguém nasce sabendo odiar, ninguém derrota o ódio com o ódio
Nós queremos nos permitir amar, a nós mesmos, ao próximo
O mundo não vai se deixar derrotar pelas viúvas e viúvos
Que não conseguem se despedir das trevas
E tentam impedir a alvorada, sentindo-se derrotados

"Num país como o Brasil, manter a esperança viva é em si um ato revolucionário" - Paulo Freire

sábado, 14 de janeiro de 2017

Teoria do Caos


"É impossível" - eles me disseram. Repetidamente, sistematicamente eles tentaram me fazer acreditar, me doutrinar sobre a estabilidade do padrão estabelecido, do sistema vigente, da realidade presente. Não importa o quanto você tente, o quanto se comprometa e quanta força dedique nada é possível de mudar: as coisas são como são. O mundo já estava pronto antes de você nascer e continuará igual após a sua morte. Esta era a mensagem que a escola, que a família, que a religião, que as instituições governamentais e que a elite da sociedade propagavam para a grande massa. A hierarquia estava estabelecida e para manter a pirâmide da injustiça e da desigualdade este discurso, esta lavagem cerebral era passada de geração em geração, um pessimismo tóxico que se espalhava como uma praga, como um vírus. Um fatalismo inerente que sabotava qualquer pensamento de revolta, de diferença, de mudança. Ou quase isso.

Afinal, em qualquer grupo há aqueles que por mais que tentem, não se encaixam. Os marginais, os esquisitos, os indesejáveis. A última ponta de resistência em um mundo rotulado e classificado conforme a vontade e poder dos mais ricos para domar os milhares de milhões mais pobres. Porque o mundo não está pronto, somos jovens e antes de tudo, no início do universo fomos todos poeira estelar. Foi a mudança que é a essência da natureza que transformou este pó em galáxias e sistemas solares, estrelas, até chegar na vida e em nós. A mudança está acontecendo, apenas leva mais tempo do que podemos perceber para notá-la. Contudo há outras formas pelas quais também podemos nos dar conta que tudo está em transformação.

Uma gota é praticamente imperceptível no grande esquema das coisas, mas quando somada a muitas outras pode criar uma tempestade capaz de varrer cidades inteiras do mapa. A força está nos números. Uma manada unida pode repelir o ataque dos predadores já um animal sozinho está fadado a perecer. E é nos pequenos detalhes que esta força se infiltra. É com pequenas rachaduras que se desmorona um forte, um castelo, um palácio, um império. A alquimia da transformação diária e constante, singela, é inexorável. Como o clima que ninguém pode antever não importa quanta tecnologia consigamos criar e desenvolver. O tempo pertence ao desconhecido e assim será. 

Você pode calcular a distância entre astros no vazio do espaço, entretanto não saberá como estará o tempo daqui a alguns dias. Pois isto é imprevisível pois os fatores que o tornam como tal são pequenos, singelos, discretos e delicados e não podem ser medidos por nenhuma máquina. Uma janela aberta que deixe o vento entrar pode contribuir para uma mudança fundamental no clima, uma pipa no céu pode ajudar a reger o amanhã e se ele será ensolarado ou nublado. O bater de asas de uma borboleta pode decidir se existirá um furacão no outro lado do mundo ou não. Esta é a beleza da incerteza da teoria do caos. A única coisa que podemos dizer sobre ela por certo é que a mudança é viva e depende de micro-ações. Se podemos conseguir resultados tão importantes e marcantes com atos tão pequenos por que não poderíamos mudar o mundo, a nossa sociedade, da mesma forma?

A revolução começa internamente, em pequenos e constantes ações. Uma mudança para se tornar uma pessoa melhor torna o mundo melhor. Reconhecer que é preciso mudar a si para mudar o resto não é fácil, pois não fomos ensinados a abrir mão do orgulho e dizer que temos defeitos, que estamos incompletos e vivendo eternamente um processo. Não nascemos prontos e não morreremos prontos. Tudo é mudança e você pode decidir fazer parte dela ou se prender com cadeados invisíveis em correntes ao passado. É impossível impedir o avanço das coisas. Eu escolho mudar, melhorar, sonhar e acreditar que é possível. Se uma borboleta consegue interferir na vida de milhares de pessoas e reinar sobre os céus com suas pequeninas asas eu posso ajudar a melhorar o mundo mesmo sendo igualmente pequeno e fraco. 

Sonho que se sonha só é só um sonho, mas sonho que se sonha junto é realidade. E aos poucos, mesmo que muitos me pressionem para desistir e que tentem me manter no padrão da razão de não me envolver, de permanecer estático e servir de pilar para um mundo que não me aceita e que eu não concordo, aos poucos, eu vou fazendo a diferença. Mesmo que pequena, só o tempo dirá o quão importante ela será. Se não for uma grande diferença para melhorar a minha realidade, mesmo assim estarei satisfeito. Estou pavimentando e construindo a fundação para sonhos mais ousados para os que vierem depois de mim e deixar este legado de possibilidade ao invés da ordem de se castrar por toda uma vida é o melhor que posso fazer.

Obrigado aos que me ajudaram a mudar, aos que acreditam na mudança e aos que compreendem e me aceitam no processo de melhorar. O primeiro passo para isso é deixar de julgar os outros e começar a analisar a si mesmo. Muitos dos erros que você enxerga fora se repetirão em si, já que eles provêm do mesmo lugar: da lição de preconceitos engendrada no núcleo histórico da nossa sociedade. Aprenda a se compreender e se perdoar que isso se estenderá ao seu próximo e tornará a sua vida mais leve, com menos angústia.

Vamos mudar dentro para refletir fora. Com menos condenações precipitadas e mais dúvidas do que certezas sem abrir mão do que é certo, compreendendo que também erramos e precisamos aprender e nos perdoar por isso.