quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

O Enforcado


Por um fio
Assim surgimos em nove meses
Por um fio
Assim morremos no cadafalso
Por um fio e mergulhamos no abismo
Por um fio e conquistamos o mundo
Por um fio, um passo em falso
O risco sempre é grande
Para quem pisa no palco

O destino fiado das Moiras
A Teoria das Cordas
O vai e vem de um ioiô
É a combustão motriz
Do fogo, das chamas
Do combustível da vida
Do amor

Mensagem em uma Garrafa


Para quem me deixou que seja boa a lição
Para quem deixei que seja boa a lembrança
Para quem me traiu que seja grande a distância
Para quem acreditou espero que tenha sido bom
Porque fiz o melhor e nem sempre acerto o tom
Para quem está comigo, obrigado pela companhia
Sem vocês a minha vida seria bem mais vazia

Para mim desejo a sinceridade de me aceitar
A loucura de me surpreender e acreditar e desconstruir
Todas as verdades, todas as redes de segurança, todo o conforto
Porque se para uns sou palhaço, um tonto, para alguns um monstro
No fim, amigos, só eu sei quem eu vejo quando me encontro
Só eu posso me entender, me perdoar e me defender

E nessa confusão eu sobrevivo
Cicatrizes e ferimentos jamais vistos
Sei que a grande maioria jamais vai compreender
Peço apenas que me deixem ser

O que eu vejo, o que eu sinto, o que eu ouço

Só eu ouso

Que apesar disso eu ache um pouso

Quando sair do alto-mar

Que eu tenho um peito morno para me afogar

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

ERRANTE


No horizonte eu vejo o naufrágio de mais um querido sonho
Nada é realmente para sempre, eu suponho
Enquanto em terra eu piso em cinzas
Queimei tudo com paixões intensas

Jazem os planos em ruínas
Os protocolos de uma vida
Não há certezas nem remorsos
Tão pouco lágrimas nos olhos

Errante, não me culpo por errar
O único crime é não tentar

Pois continuo capitão de meu destino
Cantando nas ruas meus hinos
Que seja em bando ou sozinho
Enquanto estiver vivo
Eu sobrevivo

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

POTNIA - Leonardo Chioda



Na viagem que fiz para Campos do Jordão fiz uma nova aquisição: POTNIA de Leonardo Chioda. Um livro de poesia de um autor totalmente inspirado na simbologia, na filosofia, no subjetivismo. E como tive uma gripe avassaladora neste final de semana não me sobrou muitas opções e ler foi e sempre será um dos meus refúgios quando tudo mais falha, então, por que não compartilhar um pouco desta experiência não é mesmo?

O título "POTNIA" como descrito segundo em seu livro é uma palavra grega que significa: soberana, rainha - título empregado por poetas para exaltar deusas e mulheres de extremo poder. A figura feminina está bastante presente em sua poesia assim como a água e a liquidez da matéria e da existência através da habilidade de sobrepor qualquer coisa.

Cheia de contrastes, adjetivos e comparações que beiram a originalidade estapafúrdia a leitura de sua obra - não vou mentir (cheia de parênteses para descrever descrições sobre descrições) pode ser cansativa e confusa - porém há casos de metáforas tão lindamente lapidadas que não há como não se encantar. Claro que precisamos levar em consideração a limitada capacidade de interpretação desse pobre leitor que se aventura em navegar nestes mares desconhecidos ao lermos esta tão humilde análise.

Eis um exemplo de um de seus poemas para aqueles que se interessarem tirar suas próprias conclusões:

***
e se anda até a escrita
como que semeando um labirinto
para o incômodo glorioso do mundo


e guardado sob o chão o exercício da clareza
entrado mudamente pelos olhos


a escrita se debruça sobre as coisas
[abertas e imundas] com a mão na sombra
e com ela se arranca tudo
pondo a boca dedicada no centro:


eu nasço errado sob o signo da terra
repleto - circular - sem paginação


e o som da palavra se precipita
como se pudesse constelar e resolver a vida
todo próspero

fechado acima ou imenso abaixo
som por onde inspiram os estragos


escrever é a fruta e o seu contrário
a rosa sitiada
a fenda que matura
o devido segredo [no olhar sangrando]
do sobrevivente


eis a escrita extrema: a unção do escombro

***

Essa última descrição sobre a escrita é simplesmente demais: "a unção do escombro". Já li alguns poemas que falam sobre a arte de escrever, mas nenhuma que chegasse perto de descrever este ato assim de forma tão sagrada e destruidora. Pois realmente escrever poesia é um pouco isso. Ação sublime por nos conectar a sentimentos maiores e ao mesmo tempo uma autópsia descarada dos nossos sentimentos e ruínas de certezas. Por esse poema o autor já me ganhou, nesta última linha principalmente.

Não é um autor fácil, de fato. É preciso saber o que é escrever poesia para compreendê-lo. Entretanto é muito gratificante ao ler ser compreendido tão bem. Só quem escreve entende o que é parir palavras.

Ou não, talvez a beleza da poesia seja essa: entender coisas que nós nunca fizemos através da linguagem das almas e dos sentidos.


domingo, 23 de setembro de 2018

O FRUTO - Interlúdio


O FRUTO
Interlúdio

O tempo corrói a tudo e a todos e parece exercer uma força mais opressora e direta nas pobres almas da cidadezinha perdida da fronteira de São Paulo com o Paraná. Em menos de uma geração a memória é deteriorada. Fatos se tornam lembranças confusas, nebulosas, sem nunca ninguém saber ao certo a verdade do que se passou. Estamos afogados em uma ignorância avassaladora.

Houve aqueles que foram convocados e rumaram além-mar para confrontar o nazismo e praticamente ninguém se lembra ou sabe deles. Apenas um memorial reside em uma pequena praça onde ninguém se dá o trabalho de ler a chapa de metal que guarda um pouco de sua memória. Os acontecimentos das Revoluções de 30 e 32 são igualmente ignorados mesmo que suas consequências sejam marcadas em brasa na nossa identidade. Outro monumento esquecido descansa no parque da Barreira sem que ninguém o visite.

Temos os nossos patronos do passado que nomeiam ruas e assim como foram importantes hoje são tão reconhecíveis como um indigente e os transeuntes pisam literal e metaforicamente neles todos os dias sem se dar conta do peso de seus passos sobre os alicerces da sociedade em que vivem. Há um busto na praça principal no coração da cidade que é vandalizado não só pelo tempo, mas também pelos pombos que defecam sem pudor sobre o legado dos imponentes demonstrando que a natureza não se curva ou respeita nada nem ninguém.

O celeiro de artistas que é Itararé está mais para um berço ingrato onde a arte e a cultura não possuem nenhum espaço e não compartilham do afeto da massa que segue hipnotizada sem conhecer os nomes que surgem dela. Todo ano o grande pão e circo ocorre com crueldade animal e mais do mesmo vazio. O pior de Roma vive aqui e a democracia coronelista convive com os vícios antigos da elite parasita.

O rádio é impregnado por bobagens e sensacionalismo sendo a voz de uma linhagem como um mantra de falas distorcidas por línguas bifurcadas de serpentes. Estamos intoxicados pelo populismo, soterrados pelo total descaso e viciados na violência, na tragédia e na mesquinharia. Até onde é mau-caratismo dos que estão acima de nós e que desejam nos manter assim tão cegos e perdidos e o quanto adoramos devorar este banquete de lixo é impossível dizer ao certo. Os nossos governantes são um reflexo de nós e ao contrário de Narciso achamos feio tudo que é espelho. Somos Dorian Grays modernos.

O fruto desta semente de ignorância e mau-agouro é a essência do nosso derrotismo, a fatalidade está no nosso DNA. Não nos surpreendemos com as desgraças, as recebemos de braços abertos como visitas a muito tempo aguardadas. Sabemos sem querer que há algo de muito errado entre nós, não sabemos exatamente o que é, mas é possível sentir no ar, no chão, algo respirando nas entranhas da terra. Profetas do azar.

No último século o mundo quase se abriu para que aqueles que dormem despertassem de seu sono lúcido, porém os sacrifícios necessários não foram feitos. Eles, que existem em todos os tempos e conhecem todas as realidades e dimensões aguardam pacientes, sabem que a sua vitória é certa e que não há nada que possa impedi-los. Eles são os Senhores do Caos e habitam o nosso mundo e o universo e todos os outros mundos e universos. Há uma porta que leva a um destes pesadelos - a cidade cantada por Robert W. Chambers que é só o início da jornada para a insanidade - e ela está entreaberta. O porta-voz - o monarca amarelo - destes deuses sussurra por entre esta abertura e tenta fazer com que os mortais pratiquem a mortandade necessária para que seu superior que dorme abaixo do Rio Itararé possa abrir seus medonhos olhos. A espera só o diverte ainda mais. Não há pressa, apenas prazer ao corromper. E a cada dia estamos mais próximos de cair e cumprir as sugestões de Nyarlathotep.

Eles vão saborear o doce fruto de sua influência perversamente desenvolvida nos arrebatando como moscas contra um furacão. Não somos nada para eles e esta verdade sozinha já é o suficiente para destroçar a mente dos mais incautos. Cada universo é uma caixinha de brinquedos e de possibilidades de tormentos esperando para serem postos em prática.

Antes nos enganarmos com falsas imagens e deuses customizados ou ainda a ignorância bela e presunçosa de sermos os únicos seres conscientes a existir. Reles imbecis. Coitados. Deixem que gozem de suas festas, a ignorância afinal é realmente uma benção. Usamos toda a capacidade de nosso cérebro o que desmente um mito popular sobre o potencial de nosso entendimento e mesmo assim não chegamos sequer a arranhar a superfície da verdade que há além porque é impossível para nós compreender a insanidade cósmica onipotente e onipresente. Conhecemos mais sobre o espaço do que o fundo dos oceanos e isto demonstra a fragilidade de nossas certezas. Cthulhu não deseja ser incomodado nas ruínas inundadas de sua metrópole, R'lyeh. "Há mais coisas entre o céu e a terra do que desconfia a nossa vã filosofia" - como diria Shakespeare. Acima ou abaixo não importa, estamos completamente perdidos.

Sendo assim, neste caso da ignorância ser mesmo uma dádiva, Itararé pode ser considerada uma das cidades mais afortunadas que existem.

O século XXI chega e as estrelas mortas novamente começam a se colocar em movimento para a grande conjunção. A oportunidade de retornar estará novamente ao alcance dos Grandes Antigos e talvez dessa vez nós seremos tolos o bastante para ceder e derramar o sangue necessário para pavimentar seu caminho. O fruto da semente da Discórdia está cada vez mais doce e atraente; ele é a isca na armadilha e nossos olhos brilham seduzidos ao mesmo tempo que nossas bocas salivam e nossas mãos se levantam para tocá-lo.

Não é preciso muito para nos derrubar e de qualquer forma nós adoramos mesmo rolar na lama no fim das contas. 

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Cosmonautas


Sou sol entre lua!
Sou só uma parte do teu sol.
Suas nuvens carregadas de amor,
fazem-me flutuar.
O seu dia parece, o meu.
O seu dia faz o meu.
O seu dia faz o meu!

Sou lua entre sol!
Sou só uma parte da sua lua.
Suas noites carregadas de dor,
fazem-me pensar.
A sua noite parece, a minha
A sua noite faz a minha.
A sua noite faz a minha!

No céu perco as horas
Contando as estrelas
Cego de luz

Vejo você e sorrio
A eternidade é só um triz
ao lado de quem nos faz feliz

O zodíaco não faz jus
Aos astros e desencontros
O horizonte em cruz
Na irís, só você reluz

Poesia feita em parceria com Fábio Ribas Macedo

terça-feira, 28 de agosto de 2018

"Memento Mori" - Capítulo V



O século vinte surgiu em um crescendo que culminou em um ápice de insanidade e horror, uma confluência astral maligna onde todos os signos se entrelaçaram para tecer os piores episódios da raça humana. Todos se afetaram em maior ou menor grau. Artistas se inspiraram a retratar coisas que não deveriam existir e criaram aberrações nunca antes sentidas. Crianças foram marcadas para sempre por pesadelos inomináveis criando toda uma geração traumatizada e psicóticos ouviram vozes ecoando na escuridão profetizando o que estava por vir e revelando-lhes a verdade estarrecedora. As estrelas entraram em formação para que a má influência do vazio eterno pudesse emanar e enlouquecer as pobres e frágeis mentes neste planeta perdido no recanto escuro do Universo.

Como um rio lúgubre que corre inadvertidamente até um oceano de obliteração ou uma locomotiva seguindo inevitável pelos trilhos do destino nós rumamos para duas grandes guerras mundiais, revoluções, quedas de impérios e ascensão de superpotências e a criação da maior e mais terrível das armas feitas por mãos mortais fazendo o medo da aniquilação se tornar palpável e real nos corações de todos. O relógio do Juízo Final nunca esteve tão próximo da meia-noite. Carcosa se aproximava.

Assim como encaramos esta possibilidade trágica de nossa extinção esta revelação ante ao terror inominável e asqueroso como o de quem compreende e aceita finalmente a sorte derradeira; – “Deixai toda esperança, vós que entrais” (Inferno de Dante) – assim foi chocante e repugnante também a reação da descrição no diário dos tropeiros ante as águas - um dos primeiros registros que se tem notícia sobre Itararé - ao traçar o caminho do sul até as entranhas do interior do estado de São Paulo: “Paramos à borda deste Itararé, rio muito caudaloso, muito feio, vem sempre por baixo de pedras, muito perigoso de passar” (27 de janeiro, 1845). A natureza foi afetada na sua raiz e criou o cenário pervertido ideal onde finalmente o casulo da estrela negra que descansa abaixo das águas do rio poderia eclodir o apocalipse. O tempo para o despertar dos Grandes Antigos se aproximava.

***

O ramal de Itararé da Estrada de Ferro Sorocabana havia sido construído sobre as águas deste mesmo rio com muito esforço e a custa de vidas de vários trabalhadores. Os palanques de madeira que ajudaram a sustentar os pontilhões de ferro para serem assentados pegaram fogo e um vagão chegou a desmoronar de cima rolando pelas pedras abaixo sendo engolfado pelas gargantas do percurso do rio. Mesmo assim o progresso é implacável e em 1930 os rumos do país se cruzaram na gare de Itararé quando o golpista gaúcho Getúlio Vargas desceu de seu trem e se tornou presidente de um Brasil rendido. O preço por profanar a terra daquilo que descansa abaixo de Itararé com sua petulância e fome de poder foi o suicídio décadas mais tarde. Este pequeno homem, Bonaparte tupiniquim, teve um sonho na viagem de trem que mudou sua história e foi visitado por uma presença inexplicável que ele apenas registrou em um diário secreto que tentou queimar antes de tirar a sua vida no Palácio do Catete. Esta informação foi varrida da História por conter um reflexo doentio passado de uma mente colapsada prestes a tirar a própria vida. Não cabia à memória de um déspota que se autointitulava o “Pai dos Pobres” o conhecimento das massas de seus devaneios profundos e mórbidos. Algo tão perturbador e despropositado que se assemelhava apenas talvez, às tentativas do III Reich em desvendar  segredos místicos e criar círculos de estudos de ocultismo. Entretanto, claro, quando um rei cai, os peões não mais precisam seguir suas ordens. Por isso este tal documento sobreviveu, em partes ao menos, e acabou por se tornar uma lenda entre especialistas sobre uma visão mais complexa e sombria do homem por trás da figura construída pelo populismo. Seu paradeiro e quanto a veracidade do que nele se supõe ter sido escrito é impossível de localizar e certificar se perdendo durante os anos da ditadura militar.

Na medida que o trem ia serpenteando até Itararé onde o conflito iminente pairava sobre as margens onde as tropas enfrentavam a espera de ambos os lados Getúlio sentia um peso na alma. Não era apenas a antecipação de finalmente fazer valer a sua vontade, sua carreira tinha sido habilmente construída na política e militarmente para este momento e todas as peças tinham sido jogadas para que o xeque-mate contra São Paulo fosse dado e a esperança era que ele não precisasse dizimar os últimos peões que se erguiam contra ele para assumir o controle. Uma guerra civil não ajudaria em nada nos seus planos e a morte de jovens é uma tragédia difícil de recuperar ante às famílias. Ele precisava manipular o povo para que este o visse como um messias, como aquele que estava disposto a tudo para salvá-los dos desmandos da política vigente de oligarquias. Entretanto este mal-estar não era só ansiedade sobre os eventos que iam se seguir, era algo mais inexplicável, possível descrever até como uma sensação sobrenatural. Um sentimento quase palpável de uma presença maligna.

O líder das forças sulistas estudara o pouco que havia para saber sobre o território onde a maior batalha da América Latina ocorreria e estava preocupado sobre as poucas formas de transpor o rio Itararé. Esta ponte principal poderia dar vantagem aos defensores paulistas que encurralariam as suas em um gargalo. Seria melhor que eles desistissem antes. E a cada centímetro que se aproximava noite adentro parecia ouvir algo sussurrar rastejando sibilante em seu ouvido que a vitória estava a seu alcance. Bastava ele sacrificar as vidas na batalha em Itararé, dizimar a cidade, e o país seria seu. O temor é a ferramenta dos deuses, com ele se criou impérios que jamais serão esquecidos. Os faraós, os sacrifícios incas, a morte molda o mundo. Abre portas. Afinal, é a ordem quem arranja as peças no tabuleiro, mas é o caos que as move.

Estes pensamentos surgiam em sua mente, porém pareciam vir de outro lugar, sugestionados por uma outra força, eles invadiam e brotavam sementes. Getúlio estava repetindo estes pensamentos baixo, murmurando consigo mesmo em transe. E uma palavra ininteligível começou a sair de sua boca: Nyar-la-tho-tep... Nyar-la-tho-tep... Uma palavra não, um nome. Um nome que ele jamais esqueceria. Pois aquilo propunha a ele a morte, o sacrifício de milhares de homens para lhe garantir o poder absoluto. Algo demandava o derramamento de sangue no rio Itararé. Algo que aguardara até o momento pacientemente, adormecido e preso, vindo da escuridão eterna e que ansiava por se libertar ao preço de vidas quando finalmente as conjunções estelares e planetárias lhe favoreciam. Lucien e Marie Foiz já haviam deixado tudo preparado, o ritual fora feito e agora o sacrifício era o único obstáculo que impedia a loucura de sair de sua prisão.

Por sorte esta decisão que perturbou a sanidade de Getúlio não precisou ser feita, São Paulo se rendeu antes dele chegar e nenhuma gota de sangue foi derramada. Mais tarde o então Presidente ficou sabendo sobre o relato de um rapaz paulista que enlouquecera aguardando o combate nas trincheiras e esta notícia o fez rememorar os seus próprios pesadelos no trem indo para Itararé. Em seu anos de exílio voluntário no final dos anos quarenta ele voltou a escrever em seu diário secreto sobre a sensação que lhe tomou em Itararé. Aquilo que o cercou aparentemente jamais lhe abandonou por completo. Aquela voz alienígena e estranha que falava através de palavras e sons que não podiam ser produzidos por humanos. Ele tomou uma decisão neste tempo que se caso voltasse à política faria o que fosse preciso para completar seus desejos e preservar seu legado ou morreria tentando. Como os escravos dos generais romanos repetiam aos ouvidos de seus mestres: “Memento Mori” (lembre-se que você é mortal, lembre-se da morte) - Vargas tinha incrustado em sua mente esta mensagem que ecoava na voz horrenda e disforme de Nyarlathotep. Ele deixara de aceitar o pacto de derramar sangue para ascender ao poder e mesmo assim havia conseguido o poder. Entretanto ele parecia compreender que a sua importância e relevância no cenário político e histórico diminuía cada vez mais. Seu nome era alvo de campanhas oposicionistas e motivo de chacota. Não haveria respeito nem legado, Vargas seria apagado dos anais e somente ter apagado Itararé do mapa poderia ter-lhe garantido a chance de ser lembrado.

Mesmo sabendo que sua derrocada estava próxima e que seus esforços poderiam muito bem não vingar como já não o faziam, ele jurou para si mesmo antes de novamente ganhar a sua última eleição que iria provar para a voz em sua cabeça que as pessoas se lembrariam dele e que ele não precisava ter aceito o pacto com o diabo para conseguir isso. As últimas coisas que Getúlio Vargas registrou antes de morrer no tal diário secreto após escrever a carta de suicídio foi ter ouvido a risada insana de Nyarlathotep e que tudo que ele queria era calá-la. A bala de seu revólver o fez para sempre.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

50 Tons de Temer

O Brasil assiste o conservadorismo dar os seus últimos pontapés. Nós não somos conservadores. Adoramos putaria. Somos apenas hipócritas.

Queremos ser homofóbicos, mas somos um dos países que mais pesquisam pornô com travestis. Não queremos a liberação das drogas, porém fazemos piada e idolatramos os piores momentos de famosos como o Fábio Assunção. Condenamos as mulheres, entretanto as gravamos e expomos em grupos. Não queremos o aborto, contudo julgamos e condenamos cada criança de rua que se aproxima porque ela não tem força de vontade suficiente e sucumbe às drogas, à criminalidade como se isso fosse uma questão apenas de escolha pessoal. Odiamos o funk e queremos proibi-lo, mas há alguns anos atrás dançamos na boquinha da garrafa.

Enfim, a forma que nos vemos não se encaixa com quem nós somos. E isso acontece porque temos um complexo de vira-lata que se enxerga menor e aplaude a elite e diminui a massa.

Brasileiros, nós somos a massa. Os 99%. Aqueles que se fodem todos os dias. Que não desfrutam dos privilégios e lutam para ter os poucos direitos garantidos. Que aguardam em filas, que deixam seus filhos em escolas que são grandes celeiros de gente. Que morrem nos hospitais públicos. E quando alguém ousa dizer que quem está errado, que a esculhambação vem exatamente dos 1% que parasita e abusa de todo o resto ainda ouvimos dizer que estes são loucos, são sonhadores. 

Meus amigos, estou do lado de quem quer mudar e não manter as coisas como estão. Temos vários candidatos com um mesmo discurso, 50 tons de Temer. Mas alguém ali quer fazer a diferença. E só por isso já merece o meu respeito. De mediocridade já estamos mais do que bem servidos.


quinta-feira, 12 de julho de 2018

MORTE BRANCA


O despertar é lento e perigoso. Voltar do limbo dos sonhos sempre resgata memórias antigas de pecados inomináveis, lembranças que ele daria tudo e sacrificou tudo para esquecer e que a cada noite voltam para assombrá-lo, sem falta. Finalmente na segurança da solidão ele se dá conta de onde está. Os dentes cerrados relaxam no maxilar duro como alguém que sofre de bruxismo. A respiração rápida como a de um cão com raiva que baba selvagem e louco se acalma. Os punhos fechados se abrem e a consciência se ergue ante ao caos da confusão: mais um dia começa. 

Não importa se ele vive como um sem-teto, dormindo em um saco de dormir no chão de um lugar abandonado com um barril enferrujado queimando lixo para aquecê-lo do frio noturno capaz de matar. Todos se foram para longe e aquela cidade estava remota, ele tinha aquele lugar todo para si. Durante o inverno ele vivia nas sobras da civilização que fugia das temperaturas congelantes, tal qual o último círculo do inferno ele estava condenado como Lúcifer à desolação. Era o mais próximo da humanidade que ele ousava se aproximar.

Caminhar e procurar sobras de comida para sobreviver a mais um dia naquele cenário fazia-o lembrar de quando assistiu pela TV o desastre de Chernobyl. De como as pessoas tiveram que deixar suas casas para trás e de como a radiação mudou os animais transformando-os em aberrações, em monstros... como ele. Não, não como ele. Nada poderia ser pior do que acontecera consigo, ele de fato era um amaldiçoado. Mesmo assim desejava viver em paz e falhou inúmeras vezes ao tentar tirar a própria vida. Então conseguiu uma maneira de ficar longe dos seus instintos e aprendeu que onde não há ninguém não há como haver morte, exceto a sua. E esta ele aceitava de bom grado desde que não fosse por suas próprias mãos.

A fome não se saciava com os enlatados que encontrava nas despensas, todos saiam e esqueciam coisas e quando voltavam nem se lembravam de como as coisas estavam. Seria um sonho viver ali para sempre, no frio, na luz que ardia os olhos ao se refletir na neve. Pensou inclusive em ir para Norilsk viver meses sem o pesadelo da noite. Porém ele sabia que não podia se sentir confortável demais. Uma hora a noite chega e quando ela vem a Besta iria tentar enganá-lo a se descuidar e liberá-la uma vez mais. E ele havia prometido que isso jamais iria acontecer novamente. Se não pudesse agrilhoar seu demônio interior, dessa vez ele apertaria o gatilho do rifle e daria cabo de sua vida de uma vez por todas. 

A fome não deixa pensar direito. É carne e sangue que ela demanda. Então ele vai checar suas armadilhas. Quem sabe hoje ele não teria sorte? Horas se passam e nada. Os animais pressentem sua presença, seu cheiro, entendem que há um predador na área e fogem. A natureza sente seu rastro que macula o ar gelado, ele, a coisa que não deveria existir. Então, sobra caçar. O rifle está carregado, falta encontrar um bom ponto na floresta onde o vento não o denuncie para finalmente se saciar.

A espera é longa, sem se mexer, aguardando. A cabeça conjecturando possibilidades, considerando hipóteses, memórias de uma vida toda estraçalhada deixada para trás voltando como fantasmas para assombrar. Sem descanso de dia ou de noite ele está sempre a um passo de perder o controle, de enlouquecer. Eles nunca deixam seus pensamentos e ele nunca se perdoará pelo que fez. Mesmo que não tenha sido de fato ele, mas o outro que o habita.

Finalmente um cervo surge e ele camuflado na neve se prepara. Mira sem usar luneta, prende a respiração e atira. Ele se lembra da história do "Morte Branca", o soldado finlandês e maior franco-atirador que já existiu. Como ele, sua habilidade em caçar e matar era lendária, mas não com o rifle. Com as próprias mãos.

Um tiro rasga o ar e acerta em cheio o coração do animal que cai sem entender de onde veio a morte. A presa sangra na neve e ao se aproximar e sentir o cheiro do sangue suas mãos começam a tremer. Ele respira fundo o ar que chega a machucar os pulmões por causa do frio. Controle é tudo, mas a cada noite fica mais difícil. Hoje é um daqueles dias que ele não consegue estar no controle por completo. 

De repente ele se joga no chão e rasteja selvagemente para a carcaça e bebe o sangue ainda quente que escorre por sua garganta e morde a carne crua sentindo a fibra dos músculos se romperem em seus dentes. Um deleite. Nada no mundo será tão bom e tão cruel quanto ceder aos seus instintos mais básicos e selvagens. E é neste momento de fraqueza e loucura que ele escuta com seus sentidos aguçados alguma coisa na floresta. E sua alma toma um choque. 

Ele vê uma criança assustada e suja atrás de uns arbustos logo a frente. Os mesmos olhos grandes como o de seu filho e a lembrança de desmembrá-lo e sentir o gosto de sua carne macia e doce lhe deixa alvoroçado. As grades da prisão interior se rompem e a criatura toma controle. Ele avança em quatro patas rapidamente para um banquete voraz e o horror no rosto inocente ressurge para assombrá-lo mais uma vez. Ele jamais vai ser capaz de se perdoar pelo que fez com seu filho. 

Finalmente acorda. O pesadelo passou. O gosto na sua boca é recente, mas pode ser apenas a lembrança do pecado tentando lhe seduzir. Esta será uma noite de lua cheia e durante as poucas horas do dia ele terá que tomar uma decisão. Será hoje que apertará o gatilho? 

Enquanto não se decide a fome lhe faz começar tudo de novo sem realmente nunca saber o que é realidade e o que é sonho, vontade ou lembrança. 

segunda-feira, 9 de julho de 2018

"A Aparição" - Capítulo IV


A noite veio e com ela a terrível tempestade. As gotas empunhadas pelo vento eram navalhas a cortar a pele. As fardas remendadas grudavam no corpo enquanto as botas afundavam na lama. As mãos tremiam e os dentes batiam sem controle. Os soldados se reuniram lado a lado para se aquecer embaixo de coberturas improvisadas. A água fazia o equipamento pesar ainda mais, cansando o corpo e quebrando o espírito. Enquanto a chuva caísse a batalha teria que esperar.

Os soldados de São Paulo, jovens universitários inspirados pela paixão da luta pela liberdade mal sabiam o que esperar da força sulista. Iludidos sonhavam com vitória.

Mesmo esperando a chegada do trem de Getúlio com o grosso do exército os sulistas já haviam instalado sentinelas e canhões na margem oposta do rio Itararé. Os números eram de três soldados sulistas para um paulista. Os golpistas aguardavam ansiosos uma trégua da tormenta para poderem lançar seu ataque. Eles varreriam aquela cidadezinha do mapa de vez e adicionariam sangue à receita da política Café com Leite que até então vigorava no país.

Assim fora anunciado aquele embate: como a maior batalha das Américas. No entanto a verdade é que se esperava um massacre. São Paulo fora deixado sozinho para enfrentar as forças do sul e só o seu orgulho lhe impedia de desistir. Enquanto isso os civis fugiam com medo. As famílias que não puderam partir se trancavam nas casas. As ruas de terra e paralelepípedos estavam desertas. Não ouvia-se nada na até então agitada estação de trem. Uma tensão invisível era sentida por todos. Tratava-se de um estado de sítio contra um vilarejo que aguardava ser dizimado, destruído, que iria se tornar cinzas como se falava no rádio. Todos sabiam que seu fim estava próximo. A chuva era a única coisa que adiava o inevitável.

Nada era pior entretanto do que a vida nas trincheiras. Lutar-se-ia aos moldes da Primeira Guerra Mundial: cada trincheira era uma cova improvisada para os combatentes que nela aguardavam seu destino. A tática que poderia auxiliar o lado paulista era a mesma dos trezentos de Esparta nas Termópilas que usaram o terreno a seu favor para reduzir a vantagem inimiga em números os forçando a cruzar uma única passagem estreita e encará-los de igual para igual. Existiam poucos acessos através da Barreira – o abismo que divide os Estados de São Paulo e Paraná – e avançar por eles diminuiria  a vantagem dos soldados gaúchos. As águas revoltosas do Rio Itararé seriam o descanso final dos combatentes de ambos os lados. As famílias não reaveriam os corpos de seus filhos, aquela batalha custaria tudo.

Após longas e custosas horas de tempestade os soldados estavam encharcados, exaustos e gélidos. Ao cessar o dilúvio eles se prepararam para iniciar a batalha tão ansiosamente anunciada, derrotados antes mesmo de lutar. O espetáculo não podia parar e o palco estava pronto para o sacrifício em prol do entretenimento midiático.

Contudo ao invés de bonança um véu se ergueu do Itararé cobrindo toda a região. Uma névoa mística que transformava o campo de batalha em uma dimensão paralela, fantasmagórica e sobrenatural criando um novo entrave para o combate direto. As mãos procuravam as armas, os dedos se aproximavam dos gatilhos dos rifles, as baionetas eram mantidas em riste, as adagas preparadas para enfrentar o que quer que surgisse ou saltasse daquela nuvem fria e poderosa que se espalhava das profundezas do leito do rio até o mais alto dos morros do cerrado propiciando camuflagem perfeita para um ataque surpresa. Aquela era uma oportunidade única para os inimigos rastejarem escondidos até as trincheiras do lado paulista e surpreenderem seus inexperientes combatentes os rendendo e fuzilando à queima-roupa. Os estudantes estavam em desvantagem numérica e estratégica e os comandantes sabiam disso. Alguém precisava se certificar que as sentinelas inimigas continuavam imóveis.

 Um soldado das trincheiras mais avançadas foi designado para investigar em meio à escuridão e o vapor a posição inimiga e ele mesmo sabendo que aquilo provavelmente custaria sua vida não se negou em cumprir seu papel para defender o país e a democracia. O patriotismo era o seu coveiro e a ignorância seu escudo. A mensagem dos comandantes era clara e com abraços de admiração dos colegas ele se despediu e pediu para que dissessem à sua mãe que ela se orgulhasse de seu filho e que os conterrâneos lembrassem seu nome. Ali nasceria um mártir da liberdade, um herói nacional.

Sozinho ele adentrou esgueirando-se por entre o arame farpado a terra de ninguém que separava a maior passagem que ligava as margens do Rio Itararé e dividia os Estados do Paraná e São Paulo. Quando ninguém podia mais ver seu rosto ele finalmente se permitiu rolar as lágrimas que até então aprisionara. Como um condenado que sobe para o cadafalso ele caminhava para encarar seu destino final.

Nova espera mais cruel do que a anterior se sucedeu ao aguardar o soldado raso que não retornava com notícias para o front. Nenhum tiro era ouvido para mostrar quantos passos ele teria dado antes de ser abatido. Será que ele teria fugido? Ou pior, será que ele teria sido rendido pelos gaúchos?

Não, ele não era um covarde e jamais cairia sem lutar. A hora mais escura que antecede a alvorada se aproximava quando finalmente o rapaz retornou cambaleando como um regressado dos mortos o que fez os seus colegas quase o alvejarem o confundindo com um inimigo. Seus olhos estavam arregalados e sua boca aberta deixava escorrer saliva em uma expressão patética de pura ausência de consciência. Era como se o seu sistema nervoso devido à exaustão e pressão tivesse simplesmente se fechado deixando apenas as capacidades motoras básicas ativas. Ao ser resgatado ninguém conseguia fazê-lo falar e tão pouco parecia que ele havia feito contato com o inimigo, era mais como se ele tivesse visto algo inexplicável, sobrenatural e tivesse sucumbido ante a presença do que quer que tivesse se apresentado a ele. Adentrara um estado de catatonia quase que absoluta. Estava preso em seu mundo interior, perdido em uma batalha própria de onde nunca mais conseguiria sair o mesmo.

O levaram para longe da área de combate e sem condições para tirá-lo do front até o dia raiar despacharam-no para a gruta para aguardar por ajuda médica. Até então nenhum tiro havia sido dado quando o deitaram aos pés do lago natural da gruta da Barreira sob os olhares das andorinhas escondidas nas reentrâncias das paredes. Havia um religioso na tropa que ficou com ele velando seu corpo porque sua mente estava em algum lugar muito longe dali e era mais do que certo dizer que onde quer que ela percorresse, claramente sofria. Seu semblante agoniado e feições retorcidas denunciavam um suplício absurdo. O que o soldado devoto relatou para as autoridades depois foi totalmente apagado dos registros militares.

O rapaz despertou de seu estado exatamente quando os raios de sol adentraram a abertura do alto da gruta no lago. Ele abriu os olhos lentamente e ao ver tal cena disse avistar naquela luz a imagem de uma mulher e que ela teria lhe revelado em sonho o fim dos tempos. O religioso viu o rapaz começar a falar em várias línguas desconhecidas e reconheceu ao menos entre elas uma, o francês, e percebeu que ele sussurrava implorando para que lhe matassem. Por conhecer a história de Nossa Senhora de Lourdes o religioso relatou que o soldado teria tido uma revelação semelhante à menina francesa interpretando à sua maneira o acontecido. O religioso que depois acabou por se tornar ateu omitiu por conselho dos seus superiores todo o horror que vira estampado nos olhos do jovem que cometeu suicídio no manicômio que fora internado logo depois. A descrição da mulher na luz foi apontada mais tarde pelos arquivistas do processo na ditadura de Getúlio por se assemelhar em muito ao perfil de Marie Foiz, a argelina procurada pelo governo francês que teria fugido na companhia do marido para a gruta no começo do século. Uma coincidência insólita, apenas, concluíram já que ela e o marido tinham sido dados como mortos há anos pelo governo francês que foi devidamente consultado.

A cidade de Itararé no fim foi poupada da batalha e ridicularizada pela História por ser o centro da revolução que se encerrou sem disparar sequer um tiro. São Paulo se rendeu às forças de Getúlio que se tornou Presidente do Brasil ao pisar na estação ferroviária Gare Sorocabana de Itararé.

O boato sobre a visão ocorrida em 1930 durante a tensão das forças nas margens do Rio Itararé foi a semente do tido milagre até hoje repetido e relatado por fiéis da aparição de Nossa Senhora de Lourdes na gruta da Barreira. A história ganhou tamanha proporção que em 1939 uma estátua foi entronada sobre o lago onde na luz que adentra da abertura na cobertura da caverna dizem ser possível ver a tal figura feminina.

Até hoje romeiros visitam e oram para o que quer que habite a gruta reforçando a existência através dos tempos de uma força misteriosa que emana das águas e das profundezas. A presença de algo inexplicável na gruta é inegável e cabe a cada um tirar suas próprias conclusões se é que é possível para nós compreender o que quer que seja que fez daquele lugar sua morada.

quinta-feira, 7 de junho de 2018

A Sabedoria do Perdedor




Beije a lona, lamba as suas feridas
Você sabe que ninguém ganha sempre
Por favor aceite que erros não são pecados
Meu querido, não há vergonha em perder

Vista as suas cicatrizes como medalhas
Falhas são troféus para serem exibidos
Pelo menos você está tentando e lembre-se
A vida é sua para viver do seu jeito

Leva tempo para aprender
Falhando com orgulho você precisa continuar
Eu sei, eu sei que dói
Se não te mata, te deixa mais forte

Aproveite a chance, assuma o risco 
Qualquer consequência é melhor que não viver
Não perca tempo, se arrependa do que você fez
Nunca do que poderia ter sido

Vista as suas cicatrizes como medalhas
Falhas são troféus para serem exibidos
Pelo menos você está tentando e lembre-se
A vida é sua para viver do seu jeito

Leva tempo para aprender
Falhando com orgulho você precisa continuar
Eu sei, eu sei que ainda dói
Se não te mata, te deixa mais forte


segunda-feira, 12 de março de 2018

O CÂNTICO DOS DECAÍDOS

Eu quero me livrar da sua inocência
O Paraíso está perdido e nós também
Desplugar as suas asas com os meus dentes
Eu não vou fazer suavemente ou gentilmente
Aqui na Terra
É assim que os animais amam e vivem...

Mordendo e rosnando, gemendo no escuro
Beijo de cuspe, lambendo, colocando com força
Nós fodemos como cães, então vamos uivar
Não há escapatória da insanidade
Deixe-me te encher de mim

Se nós uma vez voamos
Agora nós rastejamos
Nós não temos mais ninguém
"ELE" só nós deixou cicatrizes
Nós vagamos na sujeira
Com pensamentos mais sujos ainda
É um inferno vivo
Do jeito que nós amamos...

Mordendo e rosnando, gemendo no escuro
Beijo de cuspe, lambendo, colocando com força
Nós fodemos como cães, então vamos uivar
Não há escapatória da insanidade
Deixe-me te encher de mim

terça-feira, 6 de março de 2018

O CONCEITO DE AMOR


O meu país nasceu do estupro
Filhos e filhas de escravos
Descobertos por acidente
Explorados sem vergonha

Nós fomos criados e pilhados e abusados
Até nós chegarmos aqui, então nós não estamos nem um pouco próximos
De entender o conceito de amor
De curar as feridas daqueles
Que machucamos ao longo da estrada

Soldados assediando crianças
A resposta para o cidadão de bem
Nós só entendemos violência
Nós só respeitamos violência
Isso é o que nos foi ensinado
Isso é o que ensinamos
A lição de injustiça se repete

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Morra com memórias, não sonhos


Todos nós nascemos sozinhos e morremos sozinhos. E inquestionavelmente essas duas experiências vão envolver de alguma forma, dor. Mas entre estes momentos, embora a dor faça intrinsecamente parte da nossa vida, isso não precisa ser o que nos define. A vida é feita de escolhas e mesmo nós tendo tanto que já nos é imposto desde o começo, ainda assim as escolhas principais residem conosco. Por isso fazer o melhor com o que nos é apresentado é um desafio que cada um enfrenta e errar faz parte do processo. Cair nos ensina a termos força para nos reerguermos.

Eu particularmente tenho orgulho de cada fracasso, cada derrota, cada vez que fui vencido pois realmente sei que tentei. E nada deve ser pior do que sequer tentar. Beijar a lona faz parte da luta, mas para isso é preciso encarar o ringue. Se arriscar e assumir as consequências de suas escolhas. E cada tentativa, independente do erro, envolve o que há de melhor em nós: os nossos sonhos, a nossa esperança.

E embora possamos perder eventuais batalhas, a guerra jamais está perdida enquanto estivermos vivos. Ainda podemos nos transformar em pessoas melhores e refletirmos isso no mundo. O nosso legado é o que passamos para os nossos filhos e a verdade que carregamos dentro de nós. Podemos ser moldados por nosso meio ou usar as barreiras para vermos o quão longe podemos voar. Não é fácil, nada é, e se te disseram isso mentiram para você.

Sou professor e essa é a lição que a vida continua me ensinando: "morra com memórias, não sonhos".  

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

"O VISITANTE" Capítulo - III


O VISITANTE
Capítulo – III

O homem da lei tivera uma vida difícil. Nascera pobre, filho de um pai bêbado que jamais lhe ensinou nada exceto a suportar a dor calado. Sua mãe falecera no parto, sua primeira vítima. O menino jamais chorou ante os espancamentos e aprendeu a cultivar o ódio como uma ostra criando uma pérola através do sofrimento. Este sentimento de rancor e raiva lhe acompanhou desde então e a violência fora uma constante em sua vida. Aprendeu com os tropeiros a rudeza da estrada. A maneira de superar os traumas encontrada pelo menino foi se tornar um homem tão cruel ou mais quanto seu pai corroborando como proferira Nietzsche de que quem luta com monstros deve se precaver para que, no processo, não se transforme também em monstro. O delegado não tivera tanta sorte e se tornara exatamente um monstro como o que lhe moldou. Se tornou então ironicamente defensor da lei e da ordem quando a idade começou a pesar após escrever os capítulos mais sanguinários de sua história suja na Revolta da Degola ele desejava conforto e paz para se aposentar e desfrutar do inverno de sua existência sem preocupações. E assim fugindo da ira dos familiares de suas vítimas no sul refugiou-se atrás do distintivo da primeira cidade do sudoeste.

Em seu novo lar fez questão de honrar seu cargo e se tornou o pesadelo dos bandoleiros, ladrões de gado, ciganos, ex-escravos e índios que se recusavam ainda a acatar a autoridade da civilização e demais indesejáveis que pudessem atrapalhar ou incomodar a visão higienista que vigorava na época. Mendigos, vagabundos e desocupados desapareciam sem deixar vestígios. Bandidos eram soltos nos limites da cidade, mas jamais chegavam às cidades vizinhas. Sozinho ele estabeleceu uma pax romana à região jamais vista. E deu sua contribuição com a agricultura ao abrir muitas covas rasas adubando a terra com os pobres que tinham o azar de cair em suas garras. As famílias dos poderosos latifundiários que garantiram por meios escusos que a cidade fosse municipalizada tinham além do prefeito e o pároco como ferramentas de seu sistema um temível cão de guarda. E durante quase dez anos eles reinaram absolutos prosperando sobre a miséria alheia.

A tragédia deste paraíso maquiavélico se iniciara quando em uma tarde fria de algum dia de outono de 1901 uma carta inesperada chegou às mãos do alcaide. Nela o governo estadual transmitia um pedido feito pela França ao Brasil para investigar e identificar a localização ou qualquer informação sobre o paradeiro de um casal de procurados pela Legião Estrangeira que teria cruzado a fronteira para o Paraná quase dez anos atrás. Os Foiz eram naturais da Argélia e segundo a correspondência teriam praticados crimes hediondos inomináveis vinculados ao ocultismo no seu país de origem e no Velho Mundo. A investigação da gendarmerie alegava que os criminosos teriam partido para o Brasil após terem lido uma suposta troca de cartas secretas entre Saint-Hilaire e Debret onde ambos, botânico e pintor, trocavam confissões sobre as terríveis experiências que tiveram em uma gruta onde um rio havia aberto caminho entre as pedras próxima a um vilarejo no interior de São Paulo. O pedido se encerrava com uma ênfase no caráter urgente da questão ressaltando a exigência de extremo sigilo por se tratar de assunto referente a segredo de Estado. Qualquer menção pública ou atraso seriam punidos com o maior rigor possível e o governador em pessoa assinava dando o peso de sua rubrica à mensagem. Os favores concedidos na municipalização eram agora cobrados ferozmente colocando em risco a boa relação entre a política da elite provinciana e o governo. E pego no fogo cruzado estava o delegado que carregaria o peso de atender aos anseios internacionais e responder a contento sua pátria e livrar seus patronos municipais da fúria de seus superiores estaduais.

Contudo não havia pistas para se seguir nem rastros para encontrar. Os criminosos não sabiam sobre eles, nem os nômades ou os estrangeiros que chegavam para repor a mão de obra barata perdida com o fim da escravidão. O padre vasculhara os pecados mais sombrios de seu rebanho em busca de respostas e nada descobrira sobre os argelinos. Em nenhuma cidade e vilarejo próximo havia quem soubesse alguma informação sobre os Foiz. O delegado usou de todas as suas artimanhas: chantagem, suborno, ameaça e tortura e mesmo assim não conseguiu descobrir coisa alguma. A camarilha instaurada entre os poderosos revirou seus contatos e o grupo dos fundadores do município que agia mais como um culto - um clube de elite com pretensões obscuras que nunca permitiu a admissão do delegado - fez tudo o que podia, consultando forças deste mundo e além e o silêncio continuou o mesmo.

O tempo foi passando descontentando os manipuladores que sentiam a cada dia a pressão aumentar. Mais cartas foram recebidas exigindo um parecer e depois de procurar em todos os lugares possíveis eles responderam a única coisa que puderam: que não era possível afirmar nada sobre a passagem dos Foiz e nenhuma informação sobre o paradeiro dos mesmos pode ser encontrada. Esta derrota caiu como uma praga sobre o delegado que teve o seu nome manchado irreversivelmente por sua incapacidade em cumprir sua missão. Ele perdera o cargo e extraoficialmente estava banido da cidade sob pena de ter um fim tão inconspícuo e não ortodoxo como ele garantira aos criminosos. Mais velho e cansado do que nunca sua velhice lhe mordia os calcanhares e a esperança de gozar de um fim de vida tranquilo fora por água abaixo.

O delegado agora novamente cidadão comum se viu obrigado a fugir das terras da fronteira sem deixar vestígios e segundo contam realmente houve quem o procurou com sede de vingança para lhe pagar a dívida de sangue dos prisioneiros de guerra que ele abandonou no sul, gorgolejando no próprio sangue com as gargantas dilaceradas. Isto corroborava sobre as lendas ao redor do seu nome, de degolador, porém ninguém soube do homem após seu desaparecimento no começo do século XX. Só boatos sobreviveram de seu fim e colecionando hoje informações é que é possível vislumbrar um pouco da verdade. E talvez, na luz de tal conhecimento, o que ficou na escuridão devesse assim continuar. Entretanto os arcanos da Europa não esqueceram sobre Lucien e Marie Foiz e o destino que eles teorizavam sobre o casal envolvia diretamente de forma fatídica o delegado de Itararé.

***

Os Foiz adentraram um mundo muito particular de pessoas que tropeçaram na verdade sobre o universo e que vislumbraram o que há além do véu da ignorância que nos cobre e protege. Para alguns, fora através de livros como o do árabe louco ou a peça de teatro maldita que este conhecimento lhes chegou. Para outros, foi a mais pura sorte e infelicidade. Seja como for para os que encaram tal magnitude de segredos as consequências são sempre profundas. Suicídio e perda da sanidade são as mais comuns. Mas os Foiz não só abraçaram tal verdade como procuraram mergulhar mais no conhecimento tentando se comunicar com as forças além da imaginação que dançam entre dimensões. Os arcanos tentavam impedir que pessoas como Lucien e Marie que se deparam com tais segredos abrissem caminho para estes seres ancestrais. Eles procuravam calar por qualquer meio necessário os mortais para que os deuses não percebessem que sabemos de sua existência e não voltassem sua atenção para nós.

No passado os homens primitivos cultuavam estas divindades, cidades e civilizações inteiras foram aniquiladas ao ousarem se ajoelhar aos Grandes Antigos. Atlântida e a Cidade Perdida de Z são alguns exemplos que sabemos dos que foram punidos por se sujeitarem aos deuses tentando barganhar com seu poder incomensurável. Várias tribos ao redor do mundo relatam em tradição oral e mais eventualmente em pinturas e escritas tais rituais para conjurar os poderes sombrios. Eles atendem aos chamados quando querem e de forma aleatória ou ao menos incompreensível aos nossos padrões e o resultado destes contatos é imprevisível. Para realizar estes rituais é comum o envolvimento de sacrifícios e oferendas e eles precisam ser feitos em lugares específicos, especiais, onde as leis da natureza são mais flexíveis e permitem que a realidade seja levemente alterada como um rasgo nos planos de nossa existência que acessa ao dos monstros desconhecidos. Tais locais são raríssimos e geralmente de difícil acesso rodeados de lendas de mau agouro. A energia transcende nestes santuários perdidos como nas pedras de Stonehenge, ligadas pelas linhas de Ley que os magos ingleses já supunham e que Alfred Watkins viria a descobrir.

Saint-Hilaire e Debret descobriram por acaso a gruta da Barreira, uma greta aberta pela força das águas na fronteira entre os Estados de São Paulo e Paraná próxima a cidade de Itararé. Eles ao retornarem para a França trocaram correspondências sobre suas experiências terríveis e os Foiz acabaram tendo acesso a estes documentos e escaparam para o Brasil fugindo da lei e dos Herméticos que queriam lhes impedir e partindo ao encontro de seu destino.

Navegaram escondidos em navios de carga e viajaram ao lado dos ciganos. Acamparam na gruta e fizeram seus rituais obscenos para nunca mais serem vistos. Este, todavia, não fora o fim dos Foiz e sim o começo de algo muito pior. E neste momento em que o delegado já não mais era delegado fazia anos e se escondia na região de Itararé dentro da mata, vivendo praticamente sem contato com mais ninguém que algo o visitou.

Só sabemos deste acontecimento porque foi encontrado o casebre onde o delegado se escondera no fim da vida e onde morrera e ali ele registrara em um diário o que se passara, pois não havia ninguém para conversar. Neste diário ele promete a si mesmo queimá-lo antes de partir para que a humanidade fosse poupada da revelação que lhe fora feita. Aparentemente para a sorte de estudiosos como eu ele foi incapaz de cumprir tal promessa.

Em uma noite febril, quando uma tempestade de proporções bíblicas fustigava a terra, pesadelos de memórias do passado assombravam a mente por um fio do delegado. Suas vítimas degoladas se aproximavam de sua morada caminhando em meio ao bosque deixando um rastro de sangue prontos para arrastá-lo até o inferno e a cada relâmpago eles que eram invisíveis exceto pelo sangue no chão e movimentação dos galhos surgiam da escuridão. Ele ouve do lado de fora coisas rondando, a agitação de seus poucos animais e os gritos abafados dos mesmos ao serem mortos, degolados, sendo deixados estrebuchando no chão. Até que enfim, algo bate à sua porta. O homem que nunca fora religioso se lembrou do Velho Testamento, das lições da missa quando seu pai o levava para passar as tardes na catequese – seu pai que era o demônio em pessoa e extremamente religioso, uma ironia da qual o delegado sempre se confundia entre rir e se entristecer – quando o anjo da morte visita os primogênitos do Egito para cumprir a ira divina. Outra vez, mais uma batida. E mais uma. Dizem que o diabo só pode adentrar aqueles lugares no qual é convidado. Sem mais esperanças de fugir de sua tragédia particular o homem sonhando com tal visita convida aquilo que lhe perturba a adentrar sua mente.

***

No início tudo era trevas. Até que as estrelas começaram a brilhar uma a uma no céu como furos em um tecido negro deixando passar uma luz doente e distante. A luz de estrelas mortas. Então a brisa tocou seu rosto e a sua consciência retornou lenta. Levantou-se do chão e percebeu onde se encontrava. De alguma forma ele estava na entrada da gruta da Barreira e sabia que tudo o que quis saber sobre o paradeiro do casal argelino e da verdade por trás de todo o mistério que envolvia aquela terra estava prestes a lhe ser revelado. O seu coração batia rápido no velho peito carregado de mágoas e rancor.

Um dos sentimentos que mais inspirou nos outros lhe invadia por completo: o terror. Mas era um terror ainda pior. O total medo do desconhecido. Ao estar prestes a descobrir a verdade é que se percebe a benção da ignorância. Para ele, no entanto, era tarde demais. Caso não entrasse naquela caverna ele sabia que estaria contrariando forças muito além de sua capacidade e a opressão lhe ameaçava até os ossos como se olhos do fundo de um abismo infernal lhe acompanhassem. Sem escolhas entrou para dentro do esconderijo de pedras.

Seus passos ecoavam na catedral da natureza. Do lado de fora as águas rugiam furiosas como bestas apocalípticas. Ali, iluminado por velas, ele reconheceu a figura de Lucien ajoelhado e no chão, Marie. O que até então ninguém sabia sobre o casal é que ela estava grávida e o parto fora feito naquele covil maligno onde olhos brilhantes de andorinhas curiosas escondidas em seus ninhos nas reentrâncias das paredes assistiam o homem trazer ao mundo seu filho das entranhas de sua mulher. Ao menos, foi o que o velho delegado pensou.

Sua presença parecia ser ignorada como se fosse um espírito testemunhando uma lembrança do passado. E o que aquele espírito, o que sua alma vira, nada no mundo poderia lhe fazer esquecer. O que Lucien retirou de dentro de sua mulher preso pelo cordão umbilical não era uma criança. Não há palavras para se descrever o horror que gritava incessante em agonia se debatendo nas mãos daquele homem. Lucien com uma faca cortou o cordão umbilical que ligava a mãe, ou melhor seria dizer: “hospedeira”. Marie parecia exausta, mas satisfeita por ter gerado a monstruosidade. Não obstante o sopro de vida daquela coisa foi breve e ela se silenciou antes que o casal pudesse entoar os cânticos profanos para evocar o Antigo que se enterrara abaixo do rio nas raízes do mundo. Estupefatos e desesperados Lucien atirou o ser nas águas que borbulharam ao tragar tal cadáver e com o próprio cordão umbilical enforcou a esposa que assentiu com um movimento de cabeça o próprio assassinato. Ao apertar o pescoço da mulher ele a encara nos olhos e cantava palavras ininteligíveis que soavam como facas contra os ouvidos.

Quando finalmente Marie perdeu o brilho no olhar depois de um momento que pareceu ter durado uma eternidade Lucien a arrastou até a margem das águas e a jogou sem remorso. Ele sorria em esperança de receber alguma resposta. E as águas se tornaram vermelhas como se o corpo tivesse sido devorado pelas correntes submersas e uma luz no fim da gruta que formava um túnel longo surgiu em um brilho amarelado. O homem estava satisfeito, aquela era a sua resposta. Um convite para conhecer o mundo além dos mundos. O portal estava aberto. A coisa abaixo mesmo inconsciente, estava desperta e havia aceitado o seu presente. Como o Messias nas Escrituras, Lucien caminhou sobre as águas em direção à luz no fim do túnel e antes de desaparecer como o brilho de uma estrela cadente ele olhou para trás e sorriu para o delegado que compreendeu que sua presença não era só sentida como prevista. Ele fazia parte do ritual. A testemunha do poder. Aquele que deveria anunciar para a humanidade que os que estivessem dispostos a se humilhar e comer a poeira e as cinzas de sua mediocridade seriam aceitos para servir ao “Caos Rastejante”. Bastava que profanassem seus filhos e assassinassem os seus amados quebrando todas as regras da natureza, da fé, da moral e da civilização. Eles eram insignificantes e deveriam se portar como tal ante ao desconhecido que brilhava como um Rei de Amarelo.

Tudo isso e muito mais foi registrado no diário pelo delegado assim que despertou em detalhes que são impossíveis de se repetir sem causar o mais profundo asco e repugnância. O delegado não iria jamais passar adiante o que o visitante lhe revelara porque sabia que isso apenas fortaleceria o obscuro ser que orquestrava a humilhação total de tudo. E como ele sabia que sua alma já estava danada, que a de mais ninguém fosse conspurcada por este conhecimento proibido e ignóbil. Se ao menos ele tivesse conseguido cumprir seu desejo de queimar tais páginas sua vontade em encerrar em si aquela história teria tido êxito.

Os mestres das artes ocultas enviaram seus próprios emissários para o nosso país e eles varreram a região até descobrirem o diário e o corpo do delegado e desvendaram o fim dos Foiz através deste documento que foi finalmente incinerado como queria seu autor. Só sabemos dele porque antes de ser entregue aos arcanos europeus os aldeões leram suas páginas malditas e reverberaram em sussurros as loucuras nelas contidas. Se os estudiosos místicos ficaram satisfeitos com a história contada pelo velho ex-delegado ermitão isso não há como saber.

Fora que outra questão permaneceu uma incógnita sobre quem haveria de ter cortado a garganta do homem e causado a sua morte. Concluíram sem muita reflexão que se tratara de um suicídio. Mas a forma escolhida de ceifar a própria vida ser a mesma que diziam ter sido a maneira que ele teria matado os prisioneiros inimigos na esquecida “Revolta da Degola” é um tanto quanto irônica. E a única lâmina encontrada que poderia ter sido usado para causar aquele ferimento fora encontrada longe do corpo, uma adaga com entalhes estranhos semelhantes aos encontrados recentemente em pinturas rupestres na Argélia.



segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

"A HECATOMBE ESTELAR" Capítulo - II


A HECATOMBE ESTELAR
Capítulo – II

Debret enfrentando a árdua estrada, exposto aos dissabores das intempéries acompanhado por várias bestas de carga e peões com muito esforço alcançou o selvagem rio Itararé.

Ao se deparar com o desafio natural que os paredões de granito propunham, improvisaram uma ponte com tábuas para vencer o desfiladeiro. As bestas eram guiadas uma a uma e somente um homem e um animal podiam passar por vez até o outro lado. Nesse trabalho um meninote que servia como batedor da expedição errou o passo e de repente escorregou gritando sem que ninguém pudesse evitar sua queda desaparecendo nas águas famintas. Aquilo mexeu com o ânimo de todos, ele era muito querido pela companhia. Continuaram a travessia cabisbaixos, cautelosos e em silêncio, até os cães e os burros pareciam enlutados.

Os homens então ao cruzar o penhasco pediram para seu patrão uma parada, Debret assentiu em respeito à morte do moleque em montar acampamento. Apearam em uma planície próxima ao desfiladeiro, contudo, dormir propriamente dito poucos conseguiram e muito mal. Além de ter que aproveitar a longa parada para evitar outras no futuro da viagem, colhendo lenha, enchendo os cantis, os cães pareciam farejar algo de ruim e não se calavam nem por um segundo, logo que roíam os ossos chupados que os homens atiravam a eles voltavam a ladrar agitados, impossibilitando a qualquer um o descanso merecido.

O violeiro da companhia percebendo que não iria adiantar continuar a tentar pregar os olhos foi se inspirando para cantar e contar histórias. Estava sentado junto ao fogo e as mariposas que o rodeavam lembravam fadas sombrias a lhe sussurrar cantigas de magia e mistério ao pé do ouvido. Coincidentemente ou não essas suas canções ora e meia se remetiam ao mote da meninice perdida, falando nostalgicamente sobre os tempos de infância e começo da vida adulta que se escorrem por nossos dedos quando menos percebemos. Reanimados pela música os homens cantavam e batucavam. Debret também vendo o quão inútil seria desperdiçar seu tempo tentando dormir, quase tranquilo pela calmaria do local, decidiu aguçar o olhar e se munir da paleta e pincéis para registrar o momento. Ao preparar suas tintas lembrou-se das pinturas milenares que descobriu nos paredões do Jaguaricatu onde homens primatas reverenciavam um sol negro e inspirou-se para, como seus ancestrais, pintar os costumes de seus contemporâneos e pintou com detalhes um perseverante e exausto carregador, o único, babando debaixo do chapéu. Registrou também a maneira de prender as bagagens nos animais de carga e a vista bucólica, triste e perene sob o céu claro e onírico de Itararé.

Talvez fosse a estafa ou a energia estranha que pairava, impossível dizer por certo a origem da visão que acometeu Debret. A brisa sussurrante o incomodava, quase podia ouvir vozes nela. Das sombras e trevas sentia um calafrio como se algo o rodeasse espreitando em silêncio. Invejava a ignorância dos peões que celebravam o momento, solenes pela perda recente, mas encantados por terem a oportunidade de descansar e se lembrar do amigo. Ao observá-los viu uma pequena coruja cinzenta cruzar o acampamento e levado por seu trajeto fitou para dentro da mata adiante onde vaga-lumes fosforescentes iluminavam precariamente uma sombra. O vulto possuía uma aura verde-feérica. Foi tudo muito rápido, somente um breve e efêmero instante, contudo o suficiente para que o olhar recriminador de angústia e dor da figura perturbasse Debret ao ver novamente o rapaz morto afogado há pouco.

Tremia em espasmos involuntários, suas mãos não detinham mais a suavidade e a maestria adquirida por toda uma vida dedicada à arte de pintar. Suava frio, embora sua pele ardesse, o coração parecia querer romper seu peito. Sentiu dedos leves passeando por sua nuca e o hálito quente do rapaz a lhe acusar ao ouvido de tê-lo abandonado. Veio a dor, mais terrível que qualquer coisa que o francês já tivesse sentido antes. Podia ouvir a respiração ofegante do rapaz em desespero enquanto tentava em vão lutar contra a morte.

Em febre, não mais podendo sustentar o corpo caiu em convulsões ouvindo o lamento dos mortos. No chão, sentia a terra pulsar como se abaixo do acampamento, enterrado no inferno, um gigantesco coração estivesse batendo, lento, despertando enquanto o seu próprio diminuía o ritmo. Vozes e som de águas batendo contra galerias subterrâneas enchiam os ouvidos de Debret que estava no limite de sua sanidade. Rapidamente os homens vieram ajudar, mas não havia nada que pudessem fazer. Os homens se agruparam ao seu redor sem saber o que fazer para ajudar o patrão.

Ao abrir os olhos lá estavam as constelações no céu escuro, porém o que Debret percebia era a imensidão das trevas entre os pontos brilhantes e não mais a beleza das estrelas. Com dificuldade levantou-se e descobriu-se sozinho, não havia sinal do acampamento ou de sua companhia. Um vento frio soprava e nele ele ouviu vozes, ao longe. Cânticos e gritos, encantamentos, reza, não sabia ao certo como chamar aquilo, só sabia que aquilo lhe perturbava.

Sem escolha resolveu seguir as vozes que o atraíram para a margem do rio que anteriormente cruzara. Porém o terreno estava diferente, as águas não corriam entre os paredões de pedra e sim sobre a planície brilhando como se fossem feitas de escamas reluzentes. E próximo ao rio fogueiras ardiam, enormes e em seu redor sombras dançavam em transe, enlouquecidas entoando palavras que Debret não compreendia, mas temia. Ele se esgueirou entre as pedras até mais perto e avistou uma linda mulher nativa que chorava e gritava raivosamente com o corpo de um guerreiro nos braços. Ela o cobria de beijos como uma amante e cuspia em direção ao rio.

Ouviu então o berro de animais, eram cabras selvagens que os homens daquela tribo bizarra sacrificavam sem escrúpulos. Eles se banhavam com o sangue dos animais e vestiam a carcaça deles e assim começavam a agir como bestas, urrando e se debatendo como feras raivosas. Debret não entendia o que via, sabia contudo que corria perigo e que deveria partir, mas não conseguia sair do lugar.

O chão estremeceu com um abalo sísmico como se algo tivesse implodido sob a terra. Então a poeira se ergueu e a terra começou a se rasgar no meio abrindo-se em um abismo. O rio despencara para dentro daquela escuridão jorrando água para o alto. Os índios gritavam e se jogavam contra o chão, corriam alucinados e rogavam aos céus gritando: Itararé, Itararé!

Debret com muito esforço conseguiu se afastar daquilo que ele descreveu para Saint-Hilaire como uma cena dantesca - os índios em desespero pararam de dançar e começaram um suicídio coletivo. Eles cortavam as próprias gargantas como haviam feito com os animais e manchavam o solo de vermelho tombando às centenas.

Quando chegou a uma distância que considerou segura olhou para trás e viu algo ainda mais aterrador. Os céus se abriam e tentáculos colossais se agitavam daquela ferida, ele não podia acreditar no que via. Choviam brasas incandescentes carbonizando tudo que estava por perto, incendiando a mata e toda a tribo. Ventos tão fortes quanto os de um furacão espalhavam a fumaça e as cinzas. Debret só conseguia ouvir os gritos de dor e as palavras sendo repetidas incessantemente: “Itararé, Itararé” quando o som de algo caindo e explodindo no chão o acordou.

Quando Debret despertou sua companhia desacreditou ao vê-lo vivo e bem. Ele estava desnorteado e não sabia explicar o que tinha se passado, os homens diziam sentir a presença do mal com as garras fincadas em Debret.

Seguiram depois para a aldeia de Itararé e lá Debret aprendeu que não fora o primeiro francês a visitar aquelas paragens e que assim como ele, o botânico Saint-Hilaire também havia contraído uma curiosidade inconveniente sobre o rio. Debret desistira das incursões pelo interior do Brasil logo depois, cada vez que fechava os olhos via a imagem da destruição da tribo e rememorava o terror que ainda carregava consigo na memória.

Ao retornar à França enviou cartas para Saint-Hilaire perguntando o que ele descobrira no Brasil, na pequena aldeia próxima ao rio Itararé. Debret precisava de um cúmplice para poder dividir suas experiências e entender melhor o que havia se passado e o que Saint-Hilaire lhe revelou foi a história por trás da visão – a lenda do rio Itararé.

Os dois acabaram por se tornar amigos e trocaram várias cartas em segredo, até a morte de Saint-Hilaire. Debret sentiu muito a perda do amigo, principalmente porque Hilaire confessou-lhe que via além do véu que cobria seus olhos ao se aproximar da morte e sabia que o demônio que descansava abaixo do rio maldito o esperava e que Debret seria o próximo.


“_O Caos Rastejante nos aguarda” - escreveu em sua última carta. Debret pouco antes de falecer pediu que queimassem todas as cartas, queria esquecer aquela história e partir em paz, mas seu criado não o obedeceu e guardou para si as correspondências visando vendê-las e obter algum lucro em um futuro incerto sem seu senhor.