Foto de Dona Ilda
tirada por Andrew Gorrie
DEPETRIS
Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou
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VIDA E MORTE - Capítulo VIII
Vivendo com minha
mãe, Ilda e Sebastião viram seus netos e bisnetos surgirem. Ilda trabalhou a
vida toda como costureira até o Alzheimer a tornar incapaz de sair de casa e
ele como pedreiro, se aposentando bem mais cedo do que a esposa gozando de uma
vida confortável onde ele jogava paciência diariamente, fumava, assistia TV e
de vez em quando ia pescar com seu grande amigo Zé Carlinho.
A convivência não foi fácil entre eles porque os anos acumulados não trazem só experiência, mas igualmente pesam sobre as pessoas, principalmente para eles que vieram de um mundo e uma geração que ficou presa em si, engessada nos sentimentos tendo que viver sob regras e valores arcaicos. Mesmo com a família a relação sempre fora dura, somente com animais e crianças Sebastião conseguia se abrir e demonstrar sentimentos. Já minha avó embora complicada fazia o meu achocolatado e pão com margarina nas minhas tardes de criança e depois quando fiquei mais velho o café com que me acostumei a tomar em doses cavalares, principalmente quando escrevo.
Com a velhice a relação se tornou ainda pior pois quando Ilda começou a apresentar sinais de lapsos de memória a noção de que a partir daquele momento ela precisaria de um auxílio cada vez mais constante tornou a responsabilidade de seus cuidados algo que Sebastião simplesmente não soube lidar. Justo ela que sempre foi independente, que cozinhava para nós, tratava dos animais, que ajudou a me criar e que cuidava da casa agora não conseguia mais cuidar de si e não se lembrava do mundo que a rodeava.
Engraçado que mesmo assim ela nunca me esqueceu e sempre me reconhecera mesmo eu não sendo mais o menino que a chamava de “Nonona” e lhe fazia companhia na hora da janta enquanto ela assistia novela. Já com a minha mãe a minha avó se lembrava dela criança provando que o caminho para o coração daqueles que foram criados com tanto medo de demonstrar sentimentos e que desenvolveram ao longo do tempo uma armadura que servia como prisão fora e sempre seria a inocência das crianças.
Meu avô nem com as filhas conviveu o bastante para criar um laço paterno estável e quem diria entao que no crepúsculo de sua idade ele gozaria da paciência e resiliência para ser um cuidador da esposa. Ele carregava seus próprios problemas de saúde sendo um fumante contumaz e sua saúde foi se enfraquecendo. Sua criação machista aflorara nestes tempos em que ele tentava controlar a minha avó e ela já nos limites da sanidade o enfrentava nem sempre, acredito eu, o reconhecendo.
Por isso digo e repito que quando a saúde nos debilita ao ponto de precisarmos de atenção contínua não há como ignorarmos o fato de que ninguém está preparado e possui a obrigação de enfrentar este desafio sozinho. Itararé possui o Lar São Vicente que é uma ótima instituição que cuida dos idosos que carecem de cuidados médicos, com a melhor qualidade, carinho e profissionalismo, e esta opção nunca foi considerada por meu avô para tratar a minha avó ou para ele mesmo.
Imerso em preconceito que o fazia pensar que ali seria um lugar para descartar os velhos sem entender do risco que não ter o atendimento adequado colocava ambos em perigo ele condenou a minha avó a ter um fim de desconexão com a realidade e desamparo. Fizemos tudo que podíamos dentro da situação em que nos encontrávamos, porém claramente não tínhamos condição de arcar sozinhos com a vigilância que a situação médica da minha avó exigia.
Por fim em 2021 a Dona Ilda nos deixou e foi Sebastião que depois de ir preparar o café e ao retornar percebera que ela não mais respirava. Os olhos azuis finalmente haviam perdido seu brilho. Ele então se fechou em seus sentimentos se recusando a ir ao enterro da mulher. Ele jamais iria voltar a dormir em paz na cama que dividiu com a mulher por décadas. Desde a morte de Ilda ele manteve todas as noites a porta aberta e a luz do corredor acesa, logo ele, que reclamava tanto quando alguém esquecia uma luz acesa do lado de fora.
A depressão que assolara a companheira no fim da vida que repetia a frase: “_A minha vida acabou!” parecia agora ter passado para Sebastião. Não mais jogava paciência, nem assistia TV. Com a visão e a audição prejudicadas e com dificuldades para respirar e se locomover a atitude de reclamão foi a última característica que conseguiu preservar da personalidade brava e intrépida que construíra para si.
Seus dias eram resumidos em permanecer sentado por horas olhando para o nada, perdido dentro de seu mundo interior, seu esconderijo de memórias, arrependimentos e palavras não ditas que ele não compartilhava com ninguém. Respirando com ajuda de um cilindro de oxigênio e tendo no cuidador contratado que lhe dava banho sendo este o último resquício de conexão humana que ele se permitira manter e conversar; o único que lhe fazia sorrir nos seus últimos dias era o bisneto, Igor, meu filho, que ele carinhosamente chamava de “Machadinho” e que o fazia se alegrar quando lhe abraçava.
Então em 2023, dois anos após a morte de Ilda, dias depois do aniversário de morte dela ele a encontrou.
Seus últimos momentos foram com a minha mãe que o visitou de manhã na cama onde ele estava enfraquecido e minguara durante a noite. Conversou com ele rapidamente e teve a permissão dele para chamar ajuda médica já que só se ele quisesse era possível tirá-lo de casa.
Antes de ir para o telefone ela viu que ele agitava as mãos como se algo lhe incomodasse. Achando que era a luz ela perguntou se ele queria que ela apagasse a lâmpada do quarto quando ele respondeu que o que estava lhe incomodando eram as “barras” que o prendiam. Essas foram suas últimas palavras em delírio, com a oxigenação baixa, meu avô se despediu do mundo e da filha partindo na mesma cama que sua esposa. Ao voltar para avisá-lo que a ambulância estava a caminho ela percebeu que seu pai não estava mais entre nós. Assim ele cumpriu sua vontade de só ir embora da casa quando partisse deste plano.
Seu enterro foi marcante pela presença de familiares de várias cidades.
Ambos se foram de forma rápida e sem dor.
Juntos passaram grande parte da vida, construíram sua história e gosto de pensar que se há algo além do que vivemos nesta existência eles devem estar juntos em outro plano se espezinhando como sempre fizeram
Mesmo não acreditando em nenhuma das promessas religiosas já criadas pelos homens não ouso dizer qual é o nosso destino depois de enfrentar a morte e me permito imaginar, como um escritor, que há espaço até para um agnóstico em pensar em um final feliz para os avós.
Um lugar onde eles não precisem mais esconder seus sentimentos e possam demonstrar de maneira franca o quanto se amam. Da mesma maneira franca e natural que as crianças que eles tanto gostavam o fazem.
E apesar de tudo sei que quem mais dos netos conviveu com eles fui eu e por isso, mesmo não necessariamente sendo o predileto, foi o que mais teve demonstrações de amor de ambos.
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