A ligação com Ribeira era profunda com tios e rios onde o pescador Sebastião começava a consolidar seu passatempo preferido que até longe na velhice ele manteve.
Ribeira tem um rio chamado Catas Altas que batiza o bairro que os matutos como meu avô simplificaram como “Catasarta”. As pedras das margens são esculpidas pelas águas que sobem quando a chuva cai forte e se assemelham ao solo lunar. Os peixes aproveitam este leito diferenciado e se escondem nas reentrâncias das pedras, os famosos “cascudos”, muito apreciados pelo povo ribeirenese. Ali Sebastião pescou muito e onde mais lhe dissessem que havia um bom rio farto de peixes.
E nessas idas e vindas entre Itararé e Ribeira seu tio João de Ribeira pegou Sebastião pra Cristo. O homem o colocou no volante de um caminhão carregado de lenha e mandou subir uma estrada de terra íngreme até a rodovia. Olhando do lado de fora sem explicar muito e fazendo pressão ficou o João e sem acalento nenhum o até então caminhoneiro iniciante Sebastião teve que se virar para provar ao tio que poderia enfrentar qualquer desafio.
Só quando chegou ao fim da subida Sebastião conseguiu respirar normalmente. Depois dessa meu avô não estava nem um pouco disposto a guiar de novo outro caminhão, entretanto este não era o seu destino. Seu tio abriu a boca para o primo de Sebastião, o Negrinho, dizendo que o “Dico”, apelido que a família deu ao meu avô, já sabia dirigir. E assim ele começou sua trajetória na boleia que o levou a diversos lugares Brasil a fora. Mal sabia ele o que reservava o destino para o jovem Sebastião.
Mexendo na velha lata de ferro onde por décadas as fotos que digitalizei em 2003 estiveram guardadas descobri ao entrevistar meu avô que ele também tirava e revelava fotos em Ribeira. Ele me contou com detalhes nestas conversas os cuidados que tal arte exigia. Tudo necessitava ficar imerso na escuridão somente tendo uma opaca luz vermelha como fonte de iluminação. O processo era complicado, difícil, e nem sempre garantia sucesso. Mesmo com tais desafios Sebastião além de tirar e revelar as fotos também copiava fotos fazendo com capricho molduras detalhadas. Tal talento seria decisivo para a conquista amorosa de sua vida que logo aconteceria. Ele chegou a colorir fotos preto e branco demonstrando o seu conhecimento e diversificando seu rol de profissões e habilidades que na época era incomparável.
Em Itararé antes da missa as moças da sociedade ficavam muitas vezes apreciando com seus familiares o movimento do centro, na praça São Pedro, coração pulsante do município, até que o padre iniciasse seus sermões. Este momento segundo meu avô era a oportunidade perfeita para os rapazes solteiros cravarem seus olhares nas beldades e depois de jogar muito charme, trocar olhares e conquistar sorrisos vergonhosos os casais ficavam conversando andando em círculos ao redor da praça; tudo sob a supervisão das famílias.
Foi assim que Sebastião conheceu Ilda. Uma descendente do Velho Mundo: da Polônia, dos russos, da Sibéria (nunca soubemos ao certo). Sua mãe Alexandrina teve seu nome aportuguesado quando veio com cerca de doze anos para o Brasil. Nunca soubemos seu nome original contudo, desconfiamos que fosse algo como “Alexia”. Seu passado se perdeu na medida que a família se dividiu ao enfrentar o trabalho árduo nesta nova pátria. Os que não resistiram aos trópicos retornaram aos cantos gélidos da Europa. E seria Sebastião que iria derreter o coração da filha de Alexandrina.
Depois de
muitas voltas no carrossel de amor na praça antes da missa e de acompanhar a
moça junto da mãe no caminho de volta para casa Sebastião encantado com os
olhos azuis de Ilda conseguiu a permissão para cortejá-la e assim com ambos em
seus vinte e poucos (considerados pela época já tardios para o matrimônio)
decidem se casar. Sebastião demonstrava-se um romântico, tirando fotos de sua
amada, as colorindo, a cobrindo de floreios e cortejos encontrando na timidez
de Ilda um desafio a ser quebrado. Mal sabia ele que Ilda não era só tímida,
mas desconhecia tudo sobre a vida a dois, sobre o amor e fora ensinada a
reprimir emoções, não demonstrar afeto e a entender o mundo como cheio de
pecado e malícia segundo os preceitos católicos que a ela foram ensinados.
Ilda, extremamente carola, após o casamento, foi levada por Sebastião até sua mãe para que ela explicasse à filha quais eram as obrigações da mulher no casamento já que a moça não cedia às investidas do marido e o repelia. Sexo, sexualidade e educação sexual eram tabus e Ilda jamais conversou tais coisas com a mãe e também não o fez com as filhas seguindo a tradição cega religiosa de considerar tais temas como pecaminosos e proibidos. Também não podemos ignorar a dificuldade que deve ter sido para Sebastião conversar sobre tais assuntos de maneira a ouvir e compreender a realidade da esposa dado à sua própria realidade e criação.
O casal decide por influência de Sebastião morar em Ribeira o que era o mais cômodo para meu avô, obviamente. Todavia longe da família e com o marido viajando constantemente como caminhoneiro Ilda criada com uma criação rígida e austera não conseguia se adaptar à vida de dona de casa, mãe e trabalhadora e sofreu muito sentindo-se sozinha.
Sem ser de se abrir enquanto o marido tecia histórias e singrava estradas ela costurava para fora e passou a vida trabalhando desta forma transmitindo um pouco deste ofício para as três filhas. Elas por sua vez relatam lembranças de ver a mãe chorando várias vezes sem saber como lidar com as dificuldades na casa que consideravam mal-assombrada (o sobrenatural sempre presente na vida de meu avô), com os enfrentamentos com os vizinhos e até com os problemas de saúde que as crianças passaram.
Uma irmã de Sebastião visitava Ilda sempre que podia ou levava as três meninas para passearem em sua casa fazendo o possível para atenuar a situação. Ilda chegou inclusive a perder um filho com sete meses devido à meningite, Gilberto, o único menino.
Todos estes traumas deixaram marcas
indeléveis no perfil de Ilda que comemorou muito o retorno à Itararé décadas
depois.
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