terça-feira, 7 de novembro de 2023

DEPETRIS - Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou - INFÂNCIA - Capítulo V

 


Foto de Darcília Fisher Depetris “Nhá Tuca”

Iguape 09/01/1950                    

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DEPETRIS

Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou

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INFÂNCIA - Capítulo V

Porém há mais o que contar sobre o casal Depetris. Histórias como quando o meu avô ainda era criança de colo e certa noite quando estavam em casa somente ele, Delfina e sua prima Darcília, chamada por toda a família de “Nhá Tuca”, eles escutaram na cozinha o barulho do cão “Gurí” que toda noite pulava a janela que não fechava direito para dormir dentro da casa. 

“_O Guri se enroscou!”

Darcília e Delfina não tiveram tempo de ajudar o cachorro desengonçado pois logo depois de ouvirem o barulho na janela ouviram o Gurí subir no teto da casa. As garras que estavam a pedir ajuda começaram a arranhar as telhas raivosamente perseguindo-as pelos aposentos. Ambas perceberam, portanto, que não poderia ser o cachorro que estava a lhes pregar uma peça e sim uma “visage” querendo roubar a criança dos braços da mãe. Delfina fez como sua mãe Emília: agarrou o filho varão e pôs-se a rezar fervorosamente (entre um xingamento e outro tal Emília e “as cadela”) acompanhada por Nhá Tuca até que o que estivesse atacando a casa fosse embora.

Este não foi o único caso bizarro que ocorreu quando meu avô ainda era pequenino. Desta vez Derfa ouviu no meio da noite um balido de um cabritinho recém-nascido ao longe. Havia na época uma cabrita que estava prestes a dar cria e mesmo sendo tarde José e Delfina resolveram sair e ver se encontravam o animal.

Quando se aproximavam de onde deveria estar o cabritinho ele berrava mais a frente. Cruzaram uma cerca e atravessaram um pasto. Nada. Cada vez mais e mais distante chorava o cabrito indefeso. José, agudo da idéia, percebeu que indefeso quem estava era o seu filho, Sebastião, dormindo sozinho em casa e voltou apressado com Delfina.

Por sorte nada de ruim acontecera. Quando amanheceu o casal voltou a procurar o cabritinho. O que encontraram os deixaram mais desconcertados ainda. A cabra nem cria tinha dado e não havia nenhum cabrito pequeno que pudesse fazer aquele barulho em toda fazenda.

Para a sorte de todos nós meu avô Sebastião sobreviveu a tudo isso. Não ileso. Ele cresceu em uma existência difícil cheia de provações e privações, aprendeu a ler e a escrever sozinho, trabalhou desde muito cedo na roça, com a enxada. Seu pai assim como o pai dele e assim em diante criou os filhos com a aspereza de quem arranca o respeito da família através da brutalidade.

Quando eram chamadas as crianças precisavam atender imediatamente estivessem na situação que fosse. Se por um acaso se atrasassem apanhavam para aprenderem a respeitar os mais velhos. Não eram filhos, mas soldados que deveriam estar sempre prontos para responder ao dever. Uma visão triste e cruel da época que ainda ecoa em muitos lares brasileiros.

A história que meu avô contava sobre a batida de açúcar e ovo também ilustra bem o Cadeado e sua cultura. Lá naquelas bandas açúcar era item raro e difícil de conseguir em abundância, porém, por outro lado, ovo havia de sobra.  Sua mãe Derfa fazia para meu avô clara em neve misturada com gemada e açúcar batido e de acordo com ele essa iguaria era uma delícia.

Certa vez Delfina precisou se ausentar e meu avô sabendo que eles tinham açúcar na despensa resolveu preparar sozinho a tal bebida, mas mal havia batido a clara, viu voltando sua mãe. Desesperado misturou a gema, colocou o açúcar e bebeu tudo daquele jeito mesmo. A cozinha era território dos adultos e as crianças não tinham permissão para preparar nada nela e a pena para tal invasão era uma surra. E assim meu avô recebeu resiliente sua sentença por ter invadido território proibido.

A primeira vez que meu avô Sebastião usou uma cueca contava já uns doze, quatorze anos. Até então salvo ocasiões extraordinárias sua roupa íntima se resumia a um saco de estopa adaptado para servir como um vestidão. Cueca era um luxo que só se constituía em direito quando o menino passava a ser considerado homem. O direito de usar cueca no Cadeado representava o rito de passagem dos meninos para a vida adulta. Após receber a cueca estava meu avô todo faceiro quando seu tio Antonio Depetris, o “Tonho”, ficou sabendo da cueca nova de meu avô e ralhou indignado:

“_Não aprendeu nem limpar a bunda e tá usando cueca é?”

Com os brios fáceis de enfurecer e o orgulho ultrajado meu avô retrucou de forma imatura:

“_A cueca é minha, eu uso o que eu quiser.”

Percebendo que o garoto aceitara seu desafio e considerando aquela resposta pretexto suficiente para surrá-lo, Tonho arremeteu já arrancando a cinta:

“_Seu filho-da-puta! Te surro seu cachorro maroto!”

 Ensinado a não se dobrar a ninguém, a não deixar passar nenhuma provocação em branco, rapidamente Sebastião agarrou um facão que estava ali perto e chamou o tio para briga. Ofendido e humilhado o covarde Tonho foi procurar Derfa para que ela desse uma sova no piá. Tonho agia e raciocinava como um animal que precisava afirmar a sua masculinidade frágil sobre o adolescente demonstrando que mesmo o rapaz já vestindo cuecas ele continuava sendo superior. Via no meu avô um concorrente ao cargo de macho alfa do clã. Uma conduta bestial de homens se portando como verdadeiros animais.

Delfina que de forma alguma compactuava com o intelecto simplório de Tonho apenas disse que nada disso teria ocorrido se o homem não tivesse provocado o menino. Tonho engoliu a derrota e foi-se embora com o orgulho ferido. Meu avô considerava um feito e tanto sua bravura ao enfrentar o tio sem nunca ter refletido sobre a irracionalidade dos comportamentos dos adultos de sua infância.

Meu avô frequentou a escola somente quatro anos. Ele tinha que percorrer cinco quilômetros que separavam sua casa da escola aos oito, dez anos. O ano letivo se adequava para não interferir com as colheitas quando as crianças eram necessárias para o trabalho. Tempos que a noção de trabalho infantil simplesmente não existia e a força dos braços das crianças era o que definia se a família iria passar fome ou não.

Fora a penosa caminhada diária a instrução das próprias professoras, Dirce e Beta, era duvidosa; ao menos de acordo com a percepção de meu avô. Provavelmente nenhuma de fato tivesse um diploma de licenciatura posto que na época e região seria difícil qualquer um ter a oportunidade de se formar, ainda mais as mulheres que sofriam com os grilhões do patriarcado que as proibiam de trabalhar fora ou estudar.

O mais provável é que as professoras do meu avô fossem apenas mulheres que se preocupavam com a educação das crianças e se propunham a compartilhar com as novas gerações o máximo de conhecimento que fossem capazes. No entanto meu avô ensinado a competir achava mais intrigante pôr em xeque a qualificação do ensino que recebia do que o esforço no gesto altruísta das mulheres de ensinar apesar dos desafios impostos pela sociedade machista.

Digo isso porque o meu avô mesmo ria com o “Ipsilonê” e com o “DâbliuVê” que aprendeu na escola.  Estas letras do alfabeto inglês que correspondem ao Y e ao W e que só depois da reforma da Língua Portuguesa de 2008 passaram a fazer parte do alfabeto do português brasileiro e que meu avô já naquela época reconhecia e sabia que a pronúncia que aprendera estava incorreta.

Este é um detalhe que me confidenciou com um ar especial já que eu me tornei professor de Língua Portuguesa e Inglesa. A oportunidade de mostrar sabedoria mesmo não tendo um ensino formal a alguém que se formara na faculdade era única. O que se lia nas entrelinhas é que ninguém, com diploma ou não, poderia rivalizar com os feitos e conquistas do meu avô. Era uma forma de se autoafirmar tão sem sentido quanto a que ele passou com o tio no episódio da cueca.

Se possível fosse eu adoraria explicar a meu avô sobre o pensamento colonialista que fomos sujeitados por séculos de exploração portuguesa e como ele moldou estes discursos de preconceito linguístico que ele sustentava na ocasião sobre as professoras. Mas para isso ele teria que me ver como um igual e não um neto jovem que precisava aprender com ele. O seu orgulho jamais admitiria o inverso.

As matérias da época de escola se resumiam segundo ele à Aritmética, exercícios de Caligrafia, Cópia de texto e Ditado. Mesmo sendo um estudo breve e deficiente é com base nele que meu avô depois que se aposentou como caminhoneiro ergueu inúmeras casas na profissão de pedreiro, profissão em que ele se tornou mestre. É bom deixar registrado também que meu avô aprendeu a ler e a escrever sozinho, sem um ensino tradicional.

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