quinta-feira, 2 de novembro de 2023

DEPETRIS - Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou - Emília e Diogo - Capítulo II

Foto de José Fisher

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DEPETRIS

Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou
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EMÍLIA E DIOGO - Capítulo II

A tradição de contar histórias dos Depetris e de conviver com as manifestações de coisas além da compreensão tem origem com a matriarca do clã, a avó de meu avô, Emília. Ela era imigrante ou descendente do povo germânico, não se sabe ao certo, que acabou por se embrenhar nos remotos recantos do interior do estado do Paraná no bairro de São Francisco, município do Rocha perto de Adrianópolis. Certa vez contava Emília quando sua filha Delfina, mãe de meu avô Sebastião, ainda era menina estava ela em casa com suas filhas e cansada de ter de aturar um estranho fenômeno que insistia em ocorrer cada vez mais frequentemente nas noites escuras de três vozes femininas conversando e rindo em língua desconhecida que passavam por cima do seu sítio gritou enfezada bem quando as vozes sobrevoavam suas terras:

“_Já vão indo as cadela!”

Mal terminou de falar um grito terrível rasgou os céus e o som de alguma coisa caindo contra o chão ecoou na noite. Não muito longe do casebre de chão de terra batida e paredes de madeirame tão finos que mal barravam o vento alguma coisa se debatia raivosamente no matagal. Com medo pela segurança das filhas, afinal acreditava-se que essas megeras raptavam bebês no berço e crianças descuidadas, Emília alcançou uma foice e manteve vigília por toda a noite com sua cria grudada na barra de seu vestido, próximas do fogo, ouvindo o rugir da fera que se contorcia em seu quintal.

Enfim quando o dia amanheceu Emília ousou sair de casa. Não viu nem encontrou nada de estranho, apenas um mato remexido perto do paiol como se algum animal tivesse dormido e rolado por cima dele. Desde então nunca mais as tais vozes foram ouvidas e quanto ao local da queda da bruxa jamais novamente cresceu ali mais nenhuma planta ou erva e os animais se recusavam a se aproximar do lugar como se pudessem sentir o mal que nele estivera. Este pequeno conto nos demonstra como o folclore europeu foi trazido e se adaptou à vida dura do interior e realidade dos trópicos. O isolamento era solo fértil para a imaginação estrangeira em terra estranha.

Mais do que seres mágicos voadores atormentavam a vida difícil de Emília no sertão. Em outra ocasião um suposto cachorro estava perturbando os porcos do rancho e Emília acreditando se tratar de algum animal vadio, munida de um pedaço de pau, afugentou abaixo de gritos e pauladas o oportunista. No dia seguinte quando o dono do porco que pagava Emília para engordá-lo foi buscar o suíno capado ela contou o que havia sucedido. Ele ao examinar os grandes retalhos no toucinho esbravejou abismado:

“_Esse não é serviço de cachorro nenhum, mas de onça!”

Este episódio foi a gota d’água que fez Emília se mudar para o outro lado da ponte que divide São Paulo e Paraná indo se ajeitar em Ribeira. Trata-se de uma cidadezinha que dá nome ao rio largo e caudaloso que serve como fronteira natural dos Estados. Ribeira é cercada por gigantescos montes cobertos por mata atlântica e tem um clima quente qual praia. A região é rica em cursos de águas sendo o mais perigoso deles o próprio rio Ribeira.

Emília conseguiu enfim prosperar, porém jamais se acostumou com os confortos modernos. Sua origem humilde a levava a praticar atos memoráveis como por exemplo quando dormiu na casa do meu avô, Sebastião seu neto, e ao invés de se instalar em um quarto preferiu estender um pano no chão da cozinha e dormir por ali mesmo. Seu quarto de acordo com minha mãe, Rosangela, que a visitou tempos depois, continha uma singela cama de palha barulhenta, mas aparentemente confortável.

Junto com Emília vieram sua irmã Paulina e sobrinho José Fisher. Os outros irmãos partiram para Santa Catarina. A polaca Paulina que trazia na pele a neve européia nunca se casou, limitou-se a um relacionamento informal com Antonio Ursolino Dias, vulgarmente chamado de “Diogo” devido ao nome do pai. Antonio Diogo era um representante da negritude genuinamente brasileira. O bem afeiçoado sedutor residia no Ribeirão do Canhã, em Cerro Azul, perto das bandas de Ribeira. Tão carismático era o homem que há quem suspeite que o filho de Paulina que era solteira, o jeitoso José Fischer, fosse dele. Se for verdade Diogo encantou as duas germânicas já que ele também era pai de Delfina, mãe de meu avô, com a Emília e José Fischer seria filho da irmã de Emília, Paulina.

Antonio Diogo também tinha lá os seus mistérios. Embora nessa sua pequena fazenda tivesse uma bela casa de peroba ele insistia em viver em um paiol nos arredores com a família oficial e usava a casa para estocar milho. Nunca se soube, ou melhor, nunca alguém teve a coragem de lhe indagar o porquê disso. Meu avô imaginava que a casa fosse mal-assombrada.

O mesmo Antonio Diogo guardava uma considerável quantia fétida pelo tempo de mil réis em um caixote de querosene contava meu avô. Soma que perdeu todo o valor por não ser trocada na época por cruzeiro em 1942 por pura teimosia de Antonio Diogo em não acreditar que seu dinheiro algum dia poderia perder o valor. Mas através do trabalho duro o rapaz conseguiu refazer o pé-de-meia sendo um comerciante sagaz de porcos, incansável na labuta, dizia meu avô sobre o avô dele.

Emília não teve um final feliz. Após sofrer uma queda na qual bateu a cabeça e lesionou seu braço a deixando por um longo período na cama, enfraquecendo irremediavelmente sua coluna, sua condição só piorou. Esse acidente a prendeu a cadeira de rodas até a morte. O cabelos de Emília eram brancos, prateados, e seus pés inutilizados por anos lhe doíam muito. As unhas nos dedos do pé machucavam a carne encravando-se e abrindo feridas pelo caminho. A dor era tanta que Emília preferia conviver com ela a permitir que alguém tocasse seus pés. De Antonio Diogo não se sabe que fim levou, provavelmente faleceu mais ou menos no mesmo período que Emília.

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