quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

FORÇA DO HÁBITO

Força do Hábito

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Finalmente ele recebeu permissão para entrar na casa. A casa não era nada mais do que um prédio abandonado, mas para os inquietos que existem na sombra arruinada do mundo da carne aquele era um santuário. Para os vivos, esses lugares que as almas apreciam tanto são os imóveis abandonados, as ruínas, os pontos esquecidos dos bairros obscuros. Todos os lugares que uma pessoa sensata evita e que a escória procura para usar de esconderijo. E o mercador de escravos agradeceu a sorte por ser assim.
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Ele em vida fora um traficante de drogas e mulheres e usuário de ambos os produtos que comerciava. Óbvio que nenhum negócio vai longe com o dono consumindo mais do que seus clientes e sua incapacidade de se controlar lhe custou um tiro pelas costas de seu melhor amigo e sócio que julgou ser o momento para assumir a responsabilidade da chefia. Seu corpus conservou o buraco da bala que atingiu em cheio seu coração para que todos no outro mundo pudessem ver que ele fora morto por um traidor covarde. A raiva e o desejo de vingança bem como a necessidade de sentir novamente os prazeres que ele se acostumara trouxeram o traficante para o mundo inferior aonde vão todos os que sucumbem deixando para trás assuntos inacabados e que não estão preparados para seguir adiante com os seus destinos.
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O som da chuva e da rua chegava até ele longínquo, contudo, só o escutar desses barulhos tão familiares e agora tão distantes o emocionava antecipando o que ele estava prestes a experimentar. Ali estava o casal das outras vezes, escondidos como ratos dos olhos alheios. Esperou ele cheirar o pó branco e despertar ainda mais os sentidos para então ir para um canto com a viciada que tinha feridas nos braços de tanto injetar droga nas veias. Nesse instante o mercador atravessou a mortalha e adentrou o corpo do jovem para cavalgar sua carne. Ele sentiu o coração acelerado do rapaz e sua excitação, o sangue correndo rápido pelas veias e as mãos nervosas e trêmulas para se livrar das calças e arrancar a calcinha dela que não parecia estar tão animada quanto ele para o que iria acontecer.
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Mesmo sabendo que ela só fazia aquilo para alimentar o vício, ele se sentiu compelido a deixá-la excitada o mínimo que fosse, sua frieza em se entregar era ultrajante. Como era doce para o mercador de escravos sentir todas aquelas sensações no ritmo acelerado quimicamente. Desejo, ansiedade, raiva, frustração. Ele exigiu que ela gemesse e que ao menos fingisse estar afim de se deitar com ele. Ele para se livrar da incompetência de não conseguir excitá-la a humilhava chamando-a de vadia preguiçosa e percebendo que isso o deixava mais autoconfiante, ele colocou a pistola contra a cabeça dela, fazendo-a logo depois lamber o cano frio da arma para mostrar que estava fazendo aquilo por vontade própria. E no canto escuro e sujo fedendo a urina ele aceitou a mentira dela.
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Ele estava tão entretido em ameaçá-la e penetrá-la que não percebeu os amigos dela que se aproximaram escondidos para roubarem o controle do lugar para eles. Com uma faca, pelas costas um deles cravou até o cabo a lâmina que entrou na carne macia acertando o osso. Com a surpresa do golpe, quase que imediatamente o rapaz apertou o gatilho e o sangue quente da viciada espirrou em seu rosto. Gritos de dor e fúria se seguiram e o resultado foi o rapaz caído ao lado da mulher enquanto dois dos intrusos jaziam também no chão, mortos à bala. O mercador queria fugir do corpo que agonizava, mas não conseguia. Aquela dor e impotência o fizeram se lembrar das suas próprias cicatrizes íntimas e ao retornar para o outro lado da mortalha, seu lado negro o havia tomado. Todo espírito carrega essa mácula, esse irmão sombrio que espera a fraqueza da consciência para tentá-la, subjugá-la ou envenená-la para se entregar e aceitar a destruição.
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Assim que ele recuperou suas forças, ele fugiu da casa, tudo o que ele queria era mergulhar no vórtice e se perder por completo. Porém seus escravos não permitiriam que ele escapasse para a destruição imediata da Tempestade. Uma horda de condenados o cercou com olhos sedentos por vingança e enquanto eles o faziam em pedaços, ele gargalhava enlouquecido por poder sentir novamente a dor com que estava tão acostumado e era tão recente em sua lembrança.
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Não há segundas chances na morte, ela por si só já é a última chance. Mas velhos hábitos são realmente difíceis de se perder...

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

DALILA

DALILA
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A você entreguei-me qual oferenda
Deitei minha cabeça em seu colo
De olhos fechados não me preocupei
Com a tesoura que você empunhava
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Sorrindo vi caírem as ondas cacheadas
Que cuidei por longos anos
Não sou mais quem fui
As raízes são outras
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Desfiz-me dos cabelos
Abri mão dos meus segredos
Folhas ao vento de um passado
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Minha força não reside
No que cobre minha cabeça
Mas no que está dentro dela
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E no meu coração

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Crônica: A SOLENIDADE DO CORPO



A SOLENIDADE DO CORPO
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Não há como saber qual será o fim, mas no início, todos começam do mesmo modo. Através dos olhos, um olhar. Atrás de uma máscara de indiferença, de um fitar perdido, de inocência, há o interesse, quem sabe até um sorriso, um rubor na face. O convite para o flerte começa na visão, é com a íris que primeiramente desejamos. Então se encontramos o jogador certo, o jogo começa. A conversa, dança de palavras carregadas de segundas intenções. O corpo fala também revelando a verdade óbvia e oculta: leves roçares inconscientes, sorrisos maliciosos e provocações. Talvez a noite acabe mais cedo, mas aqueles que se arriscam esperam encontrar a umidade de uma boca prestativa, com uma língua sedenta para acariciar trocando gemidos, hálito, saliva, mordidas e prazer. Cada pessoa beija ao seu modo, cada boca é única e cada beijo demonstra o sentimento do outro. Inflamado de paixão, devagar e guloso, lento e tímido com olhares e unhas cravadas nos braços, carinhoso acompanhado com cafuné, beijo que escapa da boca e passeia pelo rosto chegando até o ouvido causando arrepios...
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As crianças experimentam o mundo pelo paladar, os adultos, experimentam-se do mesmo jeito. Porque é com um beijo que descobrimos se a outra alma cabe na nossa, se ela sabe a nossa melodia, não importando quando tempo esperemos que dure a valsa, uma noite ou a vida inteira, sem um beijo que abale as fundações e excite, nada pode acontecer. Depois do beijo, há mil e uma maneiras de se caminhar até o fim que todos no fundo querem ter. Alguns precisam ter a paciência e desenvoltura da Sherazade para conseguir o que querem, outros acabam sendo levados direto ao final adiantando os passos. Seja como for, onde for, com cada pessoa vai ser diferente. Os que procuram curar uma obsessão apaixonada por outra, uma decepção por uma ilusão, que querem aplacar a necessidade do corpo, o vício, todos sabem que é impossível reproduzir uma foda. É isso que torna o sexo sacro, um instante que jamais volta e que marca até a morte. Se eu não morrer na cama, tenho certeza que os meus últimos pensamentos serão relembrando os meus orgasmos. Lembrar e reviver. Mesmo se alguém transar com o Diabo corre o risco de encontrar com Deus.
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Enfim, a explosão. Pode ser um tiro de escopeta, uma flechada ou um show de fogos de artifício, ela sempre traz a aniquilação. Uma vez, várias vezes; após o frenesi vem o arrebatamento. E quando a volúpia é saciada, a libido se cala, o sexo dorme, o sangue flui novamente, a respiração descansa, o corpo deita-se exausto, o suor lava a alma, é que se pode perceber quem está ao seu lado. Nem sempre a surpresa é agradável, e nas vezes que for, pode não ser mais do que aquela única vez. É naquele momento, quando estamos mais fracos e expostos, que o Eu Te Amo faz a diferença, que o amor mostra o seu poder de transcendência. Entretanto, para ter uma boa noite de prazer não é necessário amar, todavia, é preciso ainda reconhecer na pessoa escolhida o mínimo de cumplicidade. Não importa como se faz sexo, não existe sexo sujo ou errado, o importante é se depois do sexo a satisfação da escolha de quem foi eleito para dividir a experiência mais íntima que se é possível ter perdura. Promiscuidade não é medida com quantos parceiros se deita, e sim através do discernimento de escolher alguém que saiba respeitar a solenidade do nosso corpo.
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