terça-feira, 31 de março de 2009

A Esfinge Devorada

Ela acostumara-se tanto àquela figura entre os móveis, dançando mansamente entre a tapeçaria, que quase não se lembrava mais de sua natureza. Sua língua áspera e quente a lambia carinhosamente de uma maneira tão calma e doce que era impossível lembrar-se dos dentes afiados que a bocarra guardava. O odor dos pêlos ao serem acariciados a inebriava, roçando contra a sua pele o animal mostrava-se dócil, meigo. Segurava-a levemente com as presas, não como um predador destrinchando a presa abatida e sim como uma fêmea carregando seu filhote, ou melhor ainda: como um macho segurando a fêmea pelos dentes enquanto a cobre. Essa intimidade e carinho começaram lentamente a cegá-la, transformando a fera amada em um amante ferido por seus caprichos.
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Ela então começou a duvidar da violência de que ele era capaz, de sua alma predatória, de sua necessidade de sangue. Seus olhos apaixonados eram tão belos que não deixavam que ela vislumbrasse a chama ardente por trás deles. Não o considerava passível de machucá-la, já que ele não se atrevia, a menos que ela permitisse e desejasse. Sentia-se senhora da fera e mestre selvagem, roubando-lhe o que lhe era nato. Chegara a se imaginar como uma pequena Esfinge, mais misteriosa do que o felino e do que o homem.
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Até que em uma certa noite, ela resolveu desafiá-lo. Provocou-o tanto que o fez temer a si próprio, e ele em um gesto de medo do que poderia acontecer, a fitou de longe, rosnando. Riu-se dele, de sua hesitação, zombando e o considerando um covarde. Ele se foi, não sem antes avançar sobre ela em um salto, mas tão próximo, de uma maneira tão bestial que ela se cobriu temendo que ele realmente fosse desfazê-la em sua boca.
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O tempo correu rápido, dias o suficiente para ela começar a se preocupar. Porque ele já não caçava mais, não porque não tinha fome, mas porque queria estar faminto. E ela sabia que ele espreitava, esperando. Ele queria que ela reconhecesse seu erro antes que fosse tarde demais. Ela ao tempo em que temia o que estava para acontecer, excitava-se com a possibilidade de ser violentada. E dormia sem trancar as portas, facilitando o ataque.
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Até que sentiu a proximidade de alguém, um vulto, grande, forte, que se mexia rápido. Antes que pudesse fugir ele a capturou, agora ela gritava de temor e ele já não podia mais parar. Suas garras encravavam-se na sua pele, as garras afiadas que por tanto tempo ela se perguntava se realmente existiam agora mostravam a ela sua função. As patadas feriam seu rosto, ela sentia o gosto do próprio sangue nos lábios e então, quando o tigre a dominou subindo por cima de sua oponente, novamente se fitaram. Ela não o reconheceu, nem poderia. E em um bote ele a devorou como quis, sem se importar com seus gritos.

domingo, 29 de março de 2009

Viviane Mosé

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quem tem olhos pra ver o tempo soprando sulcos na pele soprando sulcos na pele soprando sulcos?
o tempo andou riscando meu rosto
com uma navalha fina
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sem raiva nem rancor
o tempo riscou meu rosto
com calma
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(eu parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instantes
acho que ganhei presença)
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acho que a vida anda passando a mão em mim.
a vida anda passando a mão em mim.
acho que a vida anda passando.
a vida anda passando.
acho que a vida anda.
a vida anda em mim.
acho que há vida em mim.
a vida em mim anda passando.
acho que a vida anda passando a mão em mim
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e por falar em sexo quem anda me comendo
é o tempo
na verdade faz tempo mas eu escondia
porque ele me pegava à força e por trás
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um dia resolvi encará-lo de frente e disse: tempo
se você tem que me comer
que seja com o meu consentimento
e me olhando nos olhos
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acho que ganhei o tempo
de lá pra cá ele tem sido bom comigo
dizem que ando até remoçando

sábado, 7 de março de 2009

LÁBIA

Lábia
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Deus mora em seus pequenos Grandes lábios
O Diabo se esconde em seus pequenos Grandes lábios
A Cura se encontra em seus pequenos Grandes lábios
O Veneno escorre dos seus pequenos Grandes lábios
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Meu vício se satisfaz com os seus pequenos Grandes lábios
Minha língua abre os seus pequenos Grandes lábios
Minha barba fere os pequenos Grandes lábios
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Néctar, seiva, chuva, mar, sangue, sal, vinho, água-viva
Beijo molhado, macio, quente, suplicante, provocante, delicioso
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Que dá a vida, que mata, ferida que fere com prazer
Se Pandora abriu a caixa, eu abro suas pernas
Se Eva provou do fruto proibido
Eu aplico o seu castigo
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O segredo do sorriso de Monalisa está em seus pequenos Grandes lábios
A razão dos meus esforços são os seus pequenos Grandes lábios
Seu coração fala através dos seus pequenos Grandes lábios
Beijo Afrodite através dos seus pequenos Grandes lábios
E assim cumpro a minha promessa
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Seja como for, hei de te beijar sempre