terça-feira, 27 de maio de 2008

O Diabo Visita o Bar do Santo


O DIABO VISITA O BAR DO SANTO
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A consciência tropeçava nos degraus da escada ascendente em espiral entre o sono profundo e o despertar, ao sabor dos sacolejos do ônibus que ganhava a rua principal de paralelepípedos. A claridade amarelada dos postes ia devagar, incômoda, jogando feixes de luz nos porões escuros de sua alma através dos olhos que reviravam. E pouco antes de vir à tona, ele viu de relance no calabouço da memória o segredo há muito esquecido, que ele esperava nunca mais ter que encarar. Olhou para o outro lado, instintivamente, tentando esconder o rosto nas sombras, e viu à esquerda, a Igreja de São Pedro, com suas torres azul-celeste e seu relógio parado, prédio típico dos templos provincianos de São Paulo. Aquele relógio, onde os ponteiros se amavam, um sobre o outro, denunciava que Deus há muito se esquecera daquela cidadezinha. Em Itararé sempre é meia-noite. Na praça, em frente à igreja, jovens tocavam violão e bebiam cachaça com refrigerante barato, cantando Legião Urbana e Raul Seixas. Enfim, o carro parou em frente a um bar, numa freada que fez o estômago do único passageiro dar voltas. Da janela via-se no letreiro o nome do estabelecimento: Bar Tropical. Uma súbita sede nervosa acompanhada de um pigarro enervante fez sua garganta arranhar; se não fosse isso, o nome nada condizente com o aspecto do ponto, decrépito, ao menos assim parecia aos olhos do recém-chegado, provavelmente desenharia um esboço de um sorriso malicioso no rosto transformado em carranca, disforme, daquele homem. Sua boca era uma caverna desértica onde um verme desidratado se debatia em meio a dentes afiados. Ressuscitar da letargia imposta pelos remédios se fazia necessário e praticamente impossível. Qualquer lugar serve para quem não sabe aonde ir, pensou. A passagem era para adiante, o mais longe possível, mas assim como não queria se lembrar de onde viera, tão pouco o destino lhe interessava. Tirando força das pernas dormentes, ergueu-se, apoiando-se nos bancos, caminhando cambaleante, exausto, para fora. Cada degrau para descer provocava vertigem, sentia que poderia desmaiar a qualquer momento. A dor é universal.
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Na esquina um grupo de rapazes bebia debaixo do luminoso de uma ótica, jogados pela calçada. Eles queriam esquecer o que viam, ou ver além da sarjeta através da revelação do álcool. A Praça São Pedro e os arredores formavam o coração pulsante e agonizante da cidade, onde bares amontoavam-se nas esquinas; pequenos refúgios para mascarar o tédio de se viver em meio ao nada.
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“Sorvetes, Massa, Picolé, Moreninha” - eis a recepção que o forasteiro teve, de uma placa simpático-patética, com letras coloridas quase circenses, que anunciavam as delícias geladas em frente a um freezer. A náusea repentina o obrigou a procurar sustento no poste, pintado de branco da base até a mais ou menos um terço de sua altura. O gosto azedo do vômito subiu para a boca, mas ele conseguiu engolir seu veneno a tempo.
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“_O que diabos seria Moreninha?” A curiosidade infantil revolveu as cinzas de seus sentimentos sem lhe pedir permissão.
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Sua aparência era horrível, seu rosto transparecia doença, descuido, desgraça. O ar noturno trazia em si o frio de uma garoa que aspergia sobre as ruas delicada umidade, perfeita para provocar os pulmões frágeis que quase imediatamente se fecharam, implorando à alma que levasse o corpo para algum abrigo do sereno. Se ao menos o toldo marrom-poeira estivesse aberto, ele não seria obrigado a entrar. Do lado do bar, uma retrosaria¹ com fachada de vidro e marquise que se transformava em varanda para o andar acima, refletia a calçada praticamente inteira ocupada por jovens, quase todos com um copo descartável na mão. Sem escolha, ele avançou bar adentro sob o olhar curioso dos senhores que se acomodavam em um pequeno banco de madeira ao lado da entrada, fingindo não se surpreenderem pela figura triste e maliciosa que cruzava por eles.
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No exato instante em que seus pés tocaram o piso escuro e sujo de bitucas de cigarro e outras raspas e restos dos freqüentadores, ele percebeu que havia alguma coisa diferente naquele lugar; por sorte, no canto esquerdo, logo após a entrada, um banco de ferro desocupado parecia esperar-lhe, como que reservado pela divina providência, em frente ao balcão de cor creme. Escondido e em paz, dali ele poderia observar sem dar na vista, o ambiente que o acaso havia preparado para ser o cenário de sua auto-piedade e flagelação mental. A sua última fuga antes do fim, quando sua alma estaria de vez além de qualquer intervenção.
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As paredes eram de um tablado antigo envernizado, que davam um ar de taverna ao boteco, um charme singular, que mesmo aquele homem ressentido com a vida teve que reconhecer. Acima desse tablado, uma pintura descorada de um verde-claro, desbotado pelo tempo, manchado, recobria a argamassa até o teto alto, cinzento. O proprietário do bar quis tornar a bodega algo mais do que um santuário profano dos infelizes e dos ébrios, dar-lhe um clima familiar, com sorvetes e esperança. Tentativa obviamente frustrada, mas sem deixar de ser surpreendente e hilária. Essa conclusão inesperada ante a análise do interior do tal “Bar Tropical” fez o estranho sorrir, sua resistência ao humor adquirida pela mágoa reunida anos a fio não conseguiu impedir que esse sorriso se abrisse em seu rosto de barba por fazer. E ele saiu menos malicioso do que ele supôs anteriormente quando avistou a entrada ainda de dentro do ônibus. De fato, aquele não era um bar comum.
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A televisão fixada em um suporte exatamente sobre o canto em que o pobre sentara dizia: “Fala que eu te escuto”, em um tom de cumplicidade forçada. Com certeza, assistir àquela programação não era uma escolha da clientela, que ignorava por completo a pregação, e sim uma imposição do dono do estabelecimento, que tinha por religião crer em Cristo através do poder de Satanás. Deus e o diabo se confundiam; no fundo do poço pode haver salvação? A dúvida que destrói a fé do fanático também abala o frio ceticismo do ateu. Dúvida é o que nos une, a dor e a dúvida.
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A velha guarda boemia ficava na frente, sentados ou escorados, olhando o movimento da rua, os passantes, transeuntes e meninas novas. Velhos meninos que brincavam - engraçado como aquele bar misturava várias gerações que geralmente permanecem em extremos opostos e que se chocam uma contra a outra quando confrontadas - todos a procurar um vestígio de felicidade que não encontraram em nenhum outro lugar de suas vidas. O homem podia sentir que aquele bar era uma espécie de abrigo para todas aquelas pessoas.
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¹ - Loja de retroseiro; armarinho.
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Um senhor calvo com uma aparência que fez o homem sentir-se embaraçado, algo nele lembrava um monge franciscano, embora essa lembrança não justificasse seu embaraço; entrou da porta do fundo do bar e antes de atendê-lo, foi parado por dois rapazes que queriam comprar pinga e refrigerante. Um olhar penetrante analisou os dois rapidamente e então, o senhor que era chamado pelos dois, ora vejam, pela alcunha de “santo”, pediu para conferir a identidade deles. Tudo, de uma maneira bem-humorada e ao mesmo tempo inexpugnável, caricata e inquisitiva. Constrangidos, os meninos surpresos desistiram. Atravessando a rua, eles não encontrariam o mesmo embaraço para comprar bebida ilegalmente.
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Quem sabe o que é possível encontrar no fundo do poço? A luz, ao meio-dia, ou à meia-noite, é perfeita para alcançar as profundezas que ficam praticamente eternamente imersas nas trevas. Assim que os dois alcoólatras precoces saíram, Santo se aproximou do estranho observador para atendê-lo. Ele precisava pensar rápido, a sede ainda reclamava clemência, podia simplesmente despistar a atenção pedindo um copo d’água, estava na frente da pia, ou poderia também pedir uma dose de alguma coisa. Espiou de soslaio as estantes espelhadas abarrotadas de garrafas de bebida - dinheiro não era problema e ele não precisava se preocupar com sua saúde: o que não tem remédio remediado está. O que ele queria evitar era ver seu reflexo. Encarar-se era dar ao que ele dava por perdido, a si próprio, uma nova chance. Mas não, a proximidade com alguém, quando tudo o que ele desejava era solidão, o incitou a fugir. Perguntou bruscamente onde era o banheiro, e Santo indicou a porta ao fundo, à esquerda. O olhar do misteriosamente santificado dono do bar recaía sobre os ombros do homem que caminhava com dificuldade por entre os pequenos grupos que conversavam e bebiam cerveja. Encostadas na parede à direita, quatro mesas comportavam três casais distintos e amigos em comum. Um pequeno biombo separava as mesas de uma outra área onde ficava a mesa de sinuca com sua dupla de jogadores e respectivos espectadores que palpitavam animados as jogadas. Passar pelo espaço entre a mesa e as paredes sem se aproximar dos jogadores era difícil. O sujeito começava a entrar em pânico, a vergonha e o asco das pessoas fora o conhecimento irritante de que aquele senhor provavelmente estava a lhe fitar, com os mesmos olhos que ele dirigira aos meninos um pouco antes, tirava-lhe o controle.
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Esbarrou em sua fuga em um rapaz baixo, de cabelos encaracolados e olhar ferino que estava concentrado mirando sua tacada, quando cruzou a porta pesada de madeira que dava para fora. A garoa e a noite o cumprimentaram como se ele fosse o filho pródigo a retornar. Deixou que as lágrimas rompessem e para sufocar os soluços, mordeu raivosamente o lábio inferior. Olhou para a direita e viu um tanque de lavar roupa, abriu a torneira, molhou o rosto, a nuca. A água gelada acalmava, não obstante ela não era capaz de lavar toda a sujeira de suas mãos, de limpar-lhe a lama da alma, de salvá-lo. Somente ele poderia fazer isso por si. Recuperado, ele entrou no banheiro, e a aproximação de passos preocupados do outro lado da porta, vindos do bar, o alertaram a tempo de se esconder. Uma parada hesitante e a abertura da porta que se comunicava com uma segunda porta em frente, que pelos sons de gavetas de talheres e o forte cheiro de fritura deveria ser a cozinha, provaram que quem havia vindo atrás dele era mesmo o Santo, e ele não tinha certeza se o turco monge franciscano estava o perseguindo ou apenas querendo algo na despensa.
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O banheiro tinha um azul da cor dos quartos de bebê, e era tão negligenciado que uma infiltração no teto fez com que uma goteira que ficava perto do encanamento da descarga se tornasse uma pequenina estalactite. Obviamente, não é necessário dizer que papel higiênico não havia, assim como que a sensação da relação do ambiente de trabalho do seu dono e de sua sovinaria também mostravam que nunca houve e que nunca haveria uma preocupação acerca do mínimo bem-estar dos clientes. A serpente que estava enfraquecendo o aperto no coração do mortal, enrolada, asfixiando-o, recuperou suas forças, como um predador excitado que se depara com a presa indefesa e saboreia o momento. A esperança se desfez tal sorvete que derrete quando é abandonado. Ser santo não significa não sucumbir ao pecado, provavelmente esse estado de graça está mais relacionado com o êxtase da aceitação de seus limites. Como um banqueiro judeu.
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Ali, escondido no banheiro, um animal acuado e desesperado, pronto para atacar seu inimigo e morrer na tentativa de sobrevivência, ele se entregou ao vício que corrompera o seu corpo e destruíra a força de vontade de sua alma. Ele era escravo de sua covardia e medo. Essa situação, no íntimo, lhe causava certo prazer. Poder lentamente se matar e alimentar a piedade e o ódio contra seu estado lhe agradava. O sangue queimava nas veias azuis da pele pálida e ao se espalhar; uma risada insana galgou sua garganta e cresceu em volume e descontrole até o obrigar a sair do seu esconderijo e encarar o céu acima do pequeno espaço onde se encontravam as portas para a cozinha e para o bar. As nuvens negras que derrubavam garoa se abriram como as asas de um arcanjo noturno dando passagem para a lua brilhar, revelando uma sombra que a tomava internamente e a consumia. Olhando para o céu, de joelhos, o luar libertou da memória o segredo desgastado e as sombras do eclipse na prata o fizeram ver-se em seu fim. Destruído, eclipsado. A culpa daquela morte o perseguiria até que ele morresse. E ele soube naquele instante, antes do Santo abrir a porta da cozinha assustado pelos risos enlouquecidos; que não veria novamente a luz do dia. Nunca mais.
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Ele se levantou e sorrindo olhou para os olhos caramelados do Santo, se um homem pode se tornar santo sem deixar de ser homem, um diabo pode retroceder e voltar a ser homem. O abraçou, comovido, por ter lhe proporcionado com seu esforço silencioso, de transformar seu bar em um lugar além do que sua função exigia, a luz que ele precisava para se rever e reconhecer pacificamente sua fraqueza, derrota, pecados e covardia. Fez-se visível seu calabouço secreto graças ao Bar Tropical. Caminhou sem pressa, cumprimentando todos pelo caminho de volta. Chegou à rua e foi até os portões da igreja. Sentou-se nos degraus feito um anjo caído que volta a sentir-se querubim. A garoa se transformou em tempestade até restar somente um corpo para alimentar as notas da imprensa local de Itararé. O homem que se tornara diabo e retornara, em sua hora final, a ser homem foi enterrado sem nome, como nascem todos. Esquecido por seus inimigos. De seus amigos ele se afastara há muito tempo, por seus próprios motivos. Deus perdoa os homens, santos e demônios, ninguém sabe, inclusive Ele, o que faz.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Marina Colasanti, again

Para sentir seu leve peso

Guardava o rouxinol numa caixinha. Tudo o que queria era andar com o rouxinol empoleirado no dedo. Mas, se abrisse a caixinha, ah! certamente fugiria.

Então amorosamente cortou o dedo. E, através de uma mínima fresta, o enfiou na caixinha.

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O passarinho

Começou dizendo que tinha um passarinho na cabeça. Queixava-se.

O passarinho batia as asas, a cabeça doía. Ninguém lhe deu atenção.

Parou até de se queixar. Gemia, conversava com o passarinho que a habitava. Morreu sufocada, o nariz entupido de alpiste.

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A busca da razão

Sofreu muito com a adolescência.

Jovem, ainda se queixava.

Depois, todos os dias, subia numa cadeira, agarrava uma argola presa no teto e, pendurado, deixava-se ficar.

Até a tarde em que se desprendeu esborrachando-se no chão; estava maduro.

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Na estréia

I

Na noite de estréia o leão tremia tanto de emoção que, num bater de dentes, acabou decepando a cabeça do domador.

II

Na noite de estréia, ao serrar sua mulher em duas, o mágico percebeu que só gostava da parte de cima.

III

Na noite de estréia, depois que todos se foram e as luzes se apagaram, a bailarina deitou-se no fio e adormeceu.

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A paixão da sua vida

Amava a morte. Mas não era correspondido.

Tomou venveno. Atirou-se de pontes. Aspirou gás. Sempre ela o rejeitava, recusando-lhe o abraço.

Quando finalmente desistiu da paixão entregando-se à vida, a morte, enciumada, estourou-lhe o coração.

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Semelhança

I

Vivia dizendo que eu parecia uma pantera. Que o andar, que os olhos. Eu deitava a cabeça no ombro dele e miava baixinho.

II

Vivia dizendo que eu parecia uma pantera. Que o andar, que os olhos. E eu me apanterava toda para agradá-lo.

III

Vivia dizendo. Mas só acreditei no dia em que, saltando do ármario, cravei-lhe os dentes na carne e o devorei.

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Uma engrenagem

Desmontou a cabeça, peça por peça. Azeitou, poliu, limpou com flanelas. Depois começou a montar. Pronta, viu que uma engrenagem tinha ficado na mesa. Pensou em recomeçar. Tentou. Não conseguiu. Faltava, para saber desmontar, aquela engrenagem principal.

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Mais da Marina Colasanti pra vocês.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Luxúria - Isabelli Taviani

E eu não conhecia essa música e nem essa cantora. Que voz deliciosa, música e letra muito boas. Ainda mais conhecer essa música através da Andressa, a Luxúria despertou em mim.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Manifesto dos Escritores Subversivos

A minha literatura não é sadia, na verdade, ela é mais como uma vadia. Uma saída, uma bebida. Você toma, você lê e encontra o paraíso por meia hora e uma ressaca interminável. Não é catarse, não é quimioterapia para os tumores que você cria. Eu não escrevo auto-ajuda, se tiver que escolher, prefiro te ajudar a se auto-destruir. É mais divertido. Diversão, eu me divirto escrevendo, o leitor, que me procure quando estiver com desespero e tédio. Eu não prometo mudar a vida, a verdade, o destino. Eu não ensino. Destruir muros, eu grito e urro silenciosamente através das palavras, um zoológico de monstros pessoais que eu entrego para você adotar. Procriar. Não quero permissão, atenção, submissão, adoração. Só o coração. Quem conseguir viver sem ele, não merece tê-lo. Não vou dar respostas, não vou perguntar nada que você não possa duvidar sozinho, sou seu vizinho que incomoda, quando você não tem mais com o que se importar.
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Por isso, se você é completamente feliz, satisfeito e orgulhoso de si mesmo e da vida que leva, se não se arrepende, não tem mágoa nem ressentimento, raiva ou pena, dúvida e medo, me esqueça. Quero pessoas de verdade. Ninguém nasce ser humano, poucos morrem como tais. Quem acha que não tem nada para mudar, no mundo e em si, que não acredita que possa mudar, que prefere não pensar, se afaste. Faça um favor a nós dois. Se você tem vergonha da liberdade, corra. Se quiser explicar o amor então, fuja, antes que eu te pegue. A literatura é inútil, quem lhe quiser tirar isso, que vá à merda.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Miniconto - A Queda


A QUEDA
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A primeira coisa que senti, foi o gosto de sangue na boca. Só quando me levantei é que percebi que a queda havia sido tão forte, que as pedras do asfalto estavam grudadas no meu lábio. A areia da rua entre os dentes. Ele disse que iria empinar, mas não empinou, só queria me assustar, era brincadeira. Era brincadeira, até, após a ladeira, ele alcançar o cruzamento. Na bicicletinha da minha prima, rosa desbotada com cestinha branca na frente, a bicicleta que eu aprendi a pedalar. Eu ralei o joelho no primeiro tombo que levei quando estava aprendendo a andar de bicicleta, mesmo assim não chorei. Era criança, podia chorar, ninguém me censuraria. Mas não chorei. Era tarde, cinza, nunca vou esquecer. Como nunca vou esquecer de como se pedala. Teria tanta raiva dele por me humilhar, se...
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Tardes em que fomos pedalar e certa vez eu caí, ele sempre me deixava para trás. Nem me viu, só que me sujei todo, não tinha como disfarçar. Aquele shorts preto, nunca mais ficou da mesma cor depois que a minha avó usou água sanitária para limpar a lama. Todos tiravam sarro. Será que a mancha vermelha sairia com o tempo? Quanto tempo levaria? Quando ele namorava, na cama, dormia e eu ali, do lado, olhando eles dormirem, imaginando se eu passasse a mão nela, bem devagar, ela acordaria? Não encostei nele, não chorei, ele não dormia. Não iria mais acordar.
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Nunca mais, é muito tempo. Pra sempre, também. Só que no fundo, eu me senti feliz. Apesar de tudo, eu não queria, não podia, não deveria, mas me senti feliz. E tirei sarro dele, pela primeira e última vez. Os bons morrem cedo, otário. Adeus.