segunda-feira, 13 de novembro de 2023

DEPETRIS - Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou - VIDA E MORTE - Capítulo IX


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DEPETRIS

Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou

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LEGADO - Capítulo IX

Conviver com os meus avós foi um presente que me marcou profundamente e fez de mim, em partes, quem eu sou. Minha filha Sofia e meu filho Igor puderam ao menos um pouco partilhar desta vivência e agradeço demais por isso pois sei o valor dos avós (ou bisavós) para uma criança.

Minha mãe que conviveu praticamente a vida inteira com eles talvez não tenha podido receber o carinho que eu recebi e mesmo assim endereça a seus netos todo o amor que a ela não lhe foi dado como ela gostaria quanto filha. E por isso a agradeço demais por não repetir o ciclo de frieza e conseguir romper essa barreira e abrir o coração para os netos e filho.

À minha mãe, ao meu avô Sebastião e à minha avó Ilda, aos meus filhos Sofia e Igor e à minha mulher Ellen dedico estas memórias para que se conserve o legado das histórias, os causos, os contos e os absurdos que a gente ria juntos e que agora causam sorrisos de saudade.

Ao resgatar a história da minha família – um exercício de escrita e entrevistas que comecei em 2003 e que agora vinte anos depois após a despedida de meu avô encerro – eu preservo a minha leitura de vida e história para que fique para a posteridade registrado não só os que vieram antes de mim, mas eu mesmo me capturo para os que vieram e vierem depois possam conhecer um pouco do passado e não esqueçam do menino que aprendeu a contar histórias com seu avô e do homem que amava sua família.

Finalizo este trabalho de décadas com um tesouro que descobrimos ao desbravarmos os pertences de meu avô. Além de fotos e outras bugigangas de um acumulador contumaz minha mãe encontrou uma página de caderno com um poema de meu avô datado de 2015.

Ali ele deixou aflorar seus pensamentos sobre a sua vida com uma lucidez surpreende. Esse poema é uma prova de que Sebastião tinha sentimentos como eu devo ter de alguma forma pela convivência me infectado com o germe da poesia que nele se escondia pois desde a adolescência a literatura me rende frutos em prosa e verso e até então eu não sabia de onde vinha esta inspiração.

Em 2008 fiz um pequeno poema citando meu avô e suas histórias revelando a sua influência em meu processo criativo e vida.

Seguem ambos os poemas.

 

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Já carpi roça na enxada

também já fui tropeiro

depois vim pra cidade

virei caminhoneiro

conheci mais da metade dos estados brasileiros

 

Já bebi água de poça

dormi em cima de urutu

pesquei no poço do inferno

já desci no brucutu

gosto de pescaria

mas não como peixe cru

 

Já fiz viagem longa

do Uruguai a Pernambuco

os limão que me atiraram

espremi, fiz virar suco

hoje vou até Santa Cruz

beber pinga e jogar truco

 

Nasci de família pobre

mas fui muito feliz

não casei com moça rica,

não casei porque não quis,

hoje vivo na sombra

na sombra que eu mesmo fiz

 

18/01/2015

 

Sebastião Depetris

(22/05/1934 - 13/07/2023)

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O PÁSSARO

 

Passarinho assustado, se aninha no meu peito

Não é armadilha, não é gaiola, é só o meu jeito

Deixa, esquece o barulho feio do trovão

 

Vem, repousa no refúgio, faz de mim o seu abrigo

Descansa a cabeça, alivia o peso, confia em seu amigo

E esquece a tormenta que atormenta o seu coração

 

Fica perto, pra eu te contar as histórias do meu avô

Pra eu te ninar, entre os meus pelos

Para eu te carregar em minhas mãos

 

Vem sonhar sonhos verdes

Quando tudo é escuridão

 

02/02/2008

 

JOSÉ RODOLFO KLIMEK DEPETRIS MACHADO

(03/10/1986)

domingo, 12 de novembro de 2023

DEPETRIS - Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou - VIDA E MORTE - Capítulo VIII

 

Foto de Dona Ilda

tirada por Andrew Gorrie


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DEPETRIS

Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou

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VIDA E MORTE - Capítulo VIII

 

Vivendo com minha mãe, Ilda e Sebastião viram seus netos e bisnetos surgirem. Ilda trabalhou a vida toda como costureira até o Alzheimer a tornar incapaz de sair de casa e ele como pedreiro, se aposentando bem mais cedo do que a esposa gozando de uma vida confortável onde ele jogava paciência diariamente, fumava, assistia TV e de vez em quando ia pescar com seu grande amigo Zé Carlinho.

A convivência não foi fácil entre eles porque os anos acumulados não trazem só experiência, mas igualmente pesam sobre as pessoas, principalmente para eles que vieram de um mundo e uma geração que ficou presa em si, engessada nos sentimentos tendo que viver sob regras e valores arcaicos. Mesmo com a família a relação sempre fora dura, somente com animais e crianças Sebastião conseguia se abrir e demonstrar sentimentos. Já minha avó embora complicada fazia o meu achocolatado e pão com margarina nas minhas tardes de criança e depois quando fiquei mais velho o café com que me acostumei a tomar em doses cavalares, principalmente quando escrevo.

Com a velhice a relação se tornou ainda pior pois quando Ilda começou a apresentar sinais de lapsos de memória a noção de que a partir daquele momento ela precisaria de um auxílio cada vez mais constante tornou a responsabilidade de seus cuidados algo que Sebastião simplesmente não soube lidar. Justo ela que sempre foi independente, que cozinhava para nós, tratava dos animais, que ajudou a me criar e que cuidava da casa agora não conseguia mais cuidar de si e não se lembrava do mundo que a rodeava.

Engraçado que mesmo assim ela nunca me esqueceu e sempre me reconhecera mesmo eu não sendo mais o menino que a chamava de “Nonona” e lhe fazia companhia na hora da janta enquanto ela assistia novela. Já com a minha mãe a minha avó se lembrava dela criança provando que o caminho para o coração daqueles que foram criados com tanto medo de demonstrar sentimentos e que desenvolveram ao longo do tempo uma armadura que servia como prisão fora e sempre seria a inocência das crianças.

Meu avô nem com as filhas conviveu o bastante para criar um laço paterno estável e quem diria entao que no crepúsculo de sua idade ele gozaria da paciência e resiliência para ser um cuidador da esposa. Ele carregava seus próprios problemas de saúde sendo um fumante contumaz e sua saúde foi se enfraquecendo. Sua criação machista aflorara nestes tempos em que ele tentava controlar a minha avó e ela já nos limites da sanidade o enfrentava nem sempre, acredito eu, o reconhecendo.

Por isso digo e repito que quando a saúde nos debilita ao ponto de precisarmos de atenção contínua não há como ignorarmos o fato de que ninguém está preparado e possui a obrigação de enfrentar este desafio sozinho. Itararé possui o Lar São Vicente que é uma ótima instituição que cuida dos idosos que carecem de cuidados médicos, com a melhor qualidade, carinho e profissionalismo, e esta opção nunca foi considerada por meu avô para tratar a minha avó ou para ele mesmo.

Imerso em preconceito que o fazia pensar que ali seria um lugar para descartar os velhos sem entender do risco que não ter o atendimento adequado colocava ambos em perigo ele condenou a minha avó a ter um fim de desconexão com a realidade e desamparo. Fizemos tudo que podíamos dentro da situação em que nos encontrávamos, porém claramente não tínhamos condição de arcar sozinhos com a vigilância que a situação médica da minha avó exigia.

Por fim em 2021 a Dona Ilda nos deixou e foi Sebastião que depois de ir preparar o café e ao retornar percebera que ela não mais respirava. Os olhos azuis finalmente haviam perdido seu brilho. Ele então se fechou em seus sentimentos se recusando a ir ao enterro da mulher. Ele jamais iria voltar a dormir em paz na cama que dividiu com a mulher por décadas. Desde a morte de Ilda ele manteve todas as noites a porta aberta e a luz do corredor acesa, logo ele, que reclamava tanto quando alguém esquecia uma luz acesa do lado de fora.

A depressão que assolara a companheira no fim da vida que repetia a frase: “_A minha vida acabou!” parecia agora ter passado para Sebastião. Não mais jogava paciência, nem assistia TV. Com a visão e a audição prejudicadas e com dificuldades para respirar e se locomover a atitude de reclamão foi a última característica que conseguiu preservar da personalidade brava e intrépida que construíra para si.

Seus dias eram resumidos em permanecer sentado por horas olhando para o nada, perdido dentro de seu mundo interior, seu esconderijo de memórias, arrependimentos e palavras não ditas que ele não compartilhava com ninguém. Respirando com ajuda de um cilindro de oxigênio e tendo no cuidador contratado que lhe dava banho sendo este o último resquício de conexão humana que ele se permitira manter e conversar; o único que lhe fazia sorrir nos seus últimos dias era o bisneto, Igor, meu filho, que ele carinhosamente chamava de “Machadinho” e que o fazia se alegrar quando lhe abraçava.

 Então em 2023, dois anos após a morte de Ilda, dias depois do aniversário de morte dela ele a encontrou.

Seus últimos momentos foram com a minha mãe que o visitou de manhã na cama onde ele estava enfraquecido e minguara durante a noite. Conversou com ele rapidamente e teve a permissão dele para chamar ajuda médica já que só se ele quisesse era possível tirá-lo de casa.

Antes de ir para o telefone ela viu que ele agitava as mãos como se algo lhe incomodasse. Achando que era a luz ela perguntou se ele queria que ela apagasse a lâmpada do quarto quando ele respondeu que o que estava lhe incomodando eram as “barras” que o prendiam. Essas foram suas últimas palavras em delírio, com a oxigenação baixa, meu avô se despediu do mundo e da filha partindo na mesma cama que sua esposa. Ao voltar para avisá-lo que a ambulância estava a caminho ela percebeu que seu pai não estava mais entre nós. Assim ele cumpriu sua vontade de só ir embora da casa quando partisse deste plano.

Seu enterro foi marcante pela presença de familiares de várias cidades.

Ambos se foram de forma rápida e sem dor.

Juntos passaram grande parte da vida, construíram sua história e gosto de pensar que se há algo além do que vivemos nesta existência eles devem estar juntos em outro plano se espezinhando como sempre fizeram

Mesmo não acreditando em nenhuma das promessas religiosas já criadas pelos homens não ouso dizer qual é o nosso destino depois de enfrentar a morte e me permito imaginar, como um escritor, que há espaço até para um agnóstico em pensar em um final feliz para os avós.

Um lugar onde eles não precisem mais esconder seus sentimentos e possam demonstrar de maneira franca o quanto se amam. Da mesma maneira franca e natural que as crianças que eles tanto gostavam o fazem.

E apesar de tudo sei que quem mais dos netos conviveu com eles fui eu e por isso, mesmo não necessariamente sendo o predileto, foi o que mais teve demonstrações de amor de ambos.



quinta-feira, 9 de novembro de 2023

DEPETRIS - Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou - SEBASTIÃO E ILDA - Capítulo VII

 





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DEPETRIS

Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou

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SEBASTIÃO E ILDA - Capítulo VII

A ligação com Ribeira era profunda com tios e rios onde o pescador Sebastião começava a consolidar seu passatempo preferido que até longe na velhice ele manteve.

Ribeira tem um rio chamado Catas Altas que batiza o bairro que os matutos como meu avô simplificaram como “Catasarta”. As pedras das margens são esculpidas pelas águas que sobem quando a chuva cai forte e se assemelham ao solo lunar. Os peixes aproveitam este leito diferenciado e se escondem nas reentrâncias das pedras, os famosos “cascudos”, muito apreciados pelo povo ribeirenese. Ali Sebastião pescou muito e onde mais lhe dissessem que havia um bom rio farto de peixes.

E nessas idas e vindas entre Itararé e Ribeira seu tio João de Ribeira pegou Sebastião pra Cristo. O homem o colocou no volante de um caminhão carregado de lenha e mandou subir uma estrada de terra íngreme até a rodovia. Olhando do lado de fora sem explicar muito e fazendo pressão ficou o João e sem acalento nenhum o até então caminhoneiro iniciante Sebastião teve que se virar para provar ao tio que poderia enfrentar qualquer desafio.

Só quando chegou ao fim da subida Sebastião conseguiu respirar normalmente. Depois dessa meu avô não estava nem um pouco disposto a guiar de novo outro caminhão, entretanto este não era o seu destino. Seu tio abriu a boca para o primo de Sebastião, o Negrinho, dizendo que o “Dico”, apelido que a família deu ao meu avô, já sabia dirigir. E assim ele começou sua trajetória na boleia que o levou a diversos lugares Brasil a fora. Mal sabia ele o que reservava o destino para o jovem Sebastião.

Mexendo na velha lata de ferro onde por décadas as fotos que digitalizei em 2003 estiveram guardadas  descobri ao entrevistar meu avô que ele também tirava e revelava fotos em Ribeira. Ele me contou com detalhes nestas conversas os cuidados que tal arte exigia. Tudo necessitava ficar imerso na escuridão somente tendo uma opaca luz vermelha como fonte de iluminação. O processo era complicado, difícil, e nem sempre garantia sucesso. Mesmo com tais desafios Sebastião além de tirar e revelar as fotos também copiava fotos fazendo com capricho molduras detalhadas. Tal talento seria decisivo para a conquista amorosa de sua vida que logo aconteceria. Ele chegou a colorir fotos preto e branco demonstrando o seu conhecimento e diversificando seu rol de profissões e habilidades que na época era incomparável.

Em Itararé antes da missa as moças da sociedade ficavam muitas vezes apreciando com seus familiares o movimento do centro, na praça São Pedro, coração pulsante do município, até que o padre iniciasse seus sermões. Este momento segundo meu avô era a oportunidade perfeita para os rapazes solteiros cravarem seus olhares nas beldades e depois de jogar muito charme, trocar olhares e conquistar sorrisos vergonhosos os casais ficavam conversando andando em círculos ao redor da praça; tudo sob a supervisão das famílias.

Foi assim que Sebastião conheceu Ilda. Uma descendente do Velho Mundo: da Polônia, dos russos, da Sibéria (nunca soubemos ao certo). Sua mãe Alexandrina teve seu nome aportuguesado quando veio com cerca de doze anos para o Brasil. Nunca soubemos seu nome original contudo, desconfiamos que fosse algo como “Alexia”. Seu passado se perdeu na medida que a família se dividiu ao enfrentar o trabalho árduo nesta nova pátria. Os que não resistiram aos trópicos retornaram aos cantos gélidos da Europa. E seria Sebastião que iria derreter o coração da filha de Alexandrina.

Depois de muitas voltas no carrossel de amor na praça antes da missa e de acompanhar a moça junto da mãe no caminho de volta para casa Sebastião encantado com os olhos azuis de Ilda conseguiu a permissão para cortejá-la e assim com ambos em seus vinte e poucos (considerados pela época já tardios para o matrimônio) decidem se casar. Sebastião demonstrava-se um romântico, tirando fotos de sua amada, as colorindo, a cobrindo de floreios e cortejos encontrando na timidez de Ilda um desafio a ser quebrado. Mal sabia ele que Ilda não era só tímida, mas desconhecia tudo sobre a vida a dois, sobre o amor e fora ensinada a reprimir emoções, não demonstrar afeto e a entender o mundo como cheio de pecado e malícia segundo os preceitos católicos que a ela foram ensinados.

Ilda, extremamente carola, após o casamento, foi levada por Sebastião até sua mãe para que ela explicasse à filha quais eram as obrigações da mulher no casamento já que a moça não cedia às investidas do marido e o repelia. Sexo, sexualidade e educação sexual eram tabus e Ilda jamais conversou tais coisas com a mãe e também não o fez com as filhas seguindo a tradição cega religiosa de considerar tais temas como pecaminosos e proibidos. Também não podemos ignorar a dificuldade que deve ter sido para Sebastião conversar sobre tais assuntos de maneira a ouvir e compreender a realidade da esposa dado à sua própria realidade e criação.

O casal decide por influência de Sebastião morar em Ribeira o que era o mais cômodo para meu avô, obviamente. Todavia longe da família e com o marido viajando constantemente como caminhoneiro Ilda criada com uma criação rígida e austera não conseguia se adaptar à vida de dona de casa, mãe e trabalhadora e sofreu muito sentindo-se sozinha.

Sem ser de se abrir enquanto o marido tecia histórias e singrava estradas ela costurava para fora e passou a vida trabalhando desta forma transmitindo um pouco deste ofício para as três filhas. Elas por sua vez relatam lembranças de ver a mãe chorando várias vezes sem saber como lidar com as dificuldades na casa que consideravam mal-assombrada (o sobrenatural sempre presente na vida de meu avô), com os enfrentamentos com os vizinhos e até com os problemas de saúde que as crianças passaram.

Uma irmã de Sebastião visitava Ilda sempre que podia ou levava as três meninas para passearem em sua casa fazendo o possível para atenuar a situação. Ilda chegou inclusive a perder um filho com sete meses devido à meningite, Gilberto, o único menino.

Todos estes traumas deixaram marcas indeléveis no perfil de Ilda que comemorou muito o retorno à Itararé décadas depois.


quarta-feira, 8 de novembro de 2023

DEPETRIS - Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou - ADOLESCÊNCIA - Capítulo VI

No meio se encontra Sebastião

Foto tirada no estúdio Jansson                             

A frente está o Sargento Silva - os três primeiros guarda-bandeiras

                    da esquerda para a direita: Sérgio Gianisella, Geraldo Morschel (porta-bandeira) e Luiz Negrão

 os três últimos da esquerda para a direita são Vilela, Zé Maria e meu avô Sebastião Depetris

Foto tirada na rua XV, corpo militar de 1953

 

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DEPETRIS

Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou


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ADOLESCÊNCIA - Capítulo VI


A sina do extraordinário não deixou meu avô livre nem mesmo na adolescência. Em uma viagem com toda a família para Iguape o grupo de aproximadamente dez componentes foi pernoitar na casa de uma irmã da avó paterna de meu avô, também chamada Delfina, em Cerro Azul. Meu avô devia contar uns doze, treze invernos e só depois de muito tempo descobriu que a família Fritz que os recebeu naquela grande casa sem repartições internas eram parentes dele.

Instalados naquele grande galpão a anfitriã contou sobre a construção daquela casa antiga. Ela disse que quando a terra foi cavada para construir as fundações os peões descobriam uma ossada e um crânio enterrados junto com um garrafão que se quebrou ao ser retirado da terra. Ela continuou contando que por algum tempo eles penduraram o crânio em um pilar dentro da casa até que alguém resolveu atirar para longe o adorno tétrico.

Sebastião já temeroso sobre a natureza do assunto se arrepiou inteiro ao tomar conhecimento que de madrugada, caso alguém ouvisse o tropel de cascos, não deveriam ficar assustados. O fantasma de um cavaleiro costumava passar por dentro da casa entrando por uma porta e saindo por outra, atravessando-as e seguindo seu rumo. Desde que ninguém atrapalhasse a passagem do cavaleiro não havia razão para se preocupar. Meu avô dormiu no meio do estranho aposento imaginando que segredos a terra abaixo guardava e se ele seria despertado no meio da noite pelo corcel e seu ginete imortal. Fora os pesadelos nada perturbou o sono de meu avô, felizmente.

Foi na adolescência que Sebastião aprendeu as artes da carpintaria com o Velho Augusto que lhe foram muito úteis. Quando a família Depetris veio para Itararé em mil novecentos e cinquenta meu avô então contava dezesseis anos e foi trabalhando como carpinteiro que se estabeleceu aqui. Depois disso o jovem Sebastião foi pra lavoura de café em Riversul, trabalhar sob o sol forte.

Quando completou dezoito anos em cinquenta e dois no ano seguinte Sebastião serviu o tiro de guerra em Itararé cumprindo seus deveres para com o Exército. Ele foi um dos seis guarda-bandeiras responsáveis por defender a qualquer custo a flâmula verde-amarela. Esse grupo era o único permitido ter seus rifles carregados e usar na ponta deles baionetas. O Sargento Silva, um baiano entroncado e xarope como meu avô mesmo o descreveu, havia dado ordem para os guarda-bandeiras de atirar para matar qualquer um que se aproximasse da bandeira.

Em uma viagem de acompanhamento para a cidade vizinha de Itararé, Itapeva, para escoltar a imagem da Nossa Senhora de Fátima os guarda-bandeiras foram separados em um jipe levando a bandeira e a santa enquanto o resto dos soldados foi levado em um caminhão. Acampados na praça guardando a bandeira enquanto a santa era levada para a igreja Sebastião e companheiros estavam tranquilamente bebendo vinho quando viram vindo na direção deles um sujeito mal-encarado.

É preciso explicar antes de continuar que naquela época, o povo de Itararé e Itapeva tinha uma rixa terrível entre si.

Itapeva não era tão grande quanto a sentinela da fronteira, situação revertida hoje. O povo de uma cidade que visitasse a outra corria sério perigo de ser atacado. Um bairrismo e rivalidade absurda e sem sentido que hoje não ocorre mais como outrora, ainda bem.

O tal sujeito malicioso passou o pé no sarilho de rifles derrubando as armas em desafio a autoridade dos soldados forasteiros e imediatamente o companheiro do meu avô, Luiz Negrão, empunhando o rifle ameaçou perfurar com a baioneta o coração do agressor desarmado. Todos se muniram de suas armas e por muito pouco, segundo meu avô, não houve derramamento de sangue. Os valentões da cidade estavam apenas esperando uma oportunidade para começar uma desavença, porém, ao perceberem que os soldados do tiro de guerra de Itararé estavam dispostos a matar, desistiram. O orgulho em contar este tipo de feito de machão patriota era claro na voz de meu avô.

Segundo ele mesmo meu avô era um atirador excepcional. Sua mira era acima da média e o sargento  Silva vendo uma carreira promissora para o jovem soldado Sebastião o convidou para se tornar atirador de elite e “caçar generais nas guerras”. Receoso por ter mesmo em um curto período conhecido o modo de tratamento do exército Sebastião que fora ensinado a não se rebaixar a ninguém não sabia se poderia aguentar o modo de vida de um cadete dos Agulhas Negras e por isso declinou ao convite.

Essa dúvida do que seria de meu avô caso ele tivesse seguido carreira militar ficou sendo remoída dentro dele por muito tempo se é que de fato é verdadeira. Não há como mensurar o quanto se aumenta ou cria lembranças ao romantizar o passado para o tornar mais confortável na medida que o futuro vai se encurtando e os dias vão triturando a esperança e os sonhos.


terça-feira, 7 de novembro de 2023

DEPETRIS - Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou - INFÂNCIA - Capítulo V

 


Foto de Darcília Fisher Depetris “Nhá Tuca”

Iguape 09/01/1950                    

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DEPETRIS

Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou

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INFÂNCIA - Capítulo V

Porém há mais o que contar sobre o casal Depetris. Histórias como quando o meu avô ainda era criança de colo e certa noite quando estavam em casa somente ele, Delfina e sua prima Darcília, chamada por toda a família de “Nhá Tuca”, eles escutaram na cozinha o barulho do cão “Gurí” que toda noite pulava a janela que não fechava direito para dormir dentro da casa. 

“_O Guri se enroscou!”

Darcília e Delfina não tiveram tempo de ajudar o cachorro desengonçado pois logo depois de ouvirem o barulho na janela ouviram o Gurí subir no teto da casa. As garras que estavam a pedir ajuda começaram a arranhar as telhas raivosamente perseguindo-as pelos aposentos. Ambas perceberam, portanto, que não poderia ser o cachorro que estava a lhes pregar uma peça e sim uma “visage” querendo roubar a criança dos braços da mãe. Delfina fez como sua mãe Emília: agarrou o filho varão e pôs-se a rezar fervorosamente (entre um xingamento e outro tal Emília e “as cadela”) acompanhada por Nhá Tuca até que o que estivesse atacando a casa fosse embora.

Este não foi o único caso bizarro que ocorreu quando meu avô ainda era pequenino. Desta vez Derfa ouviu no meio da noite um balido de um cabritinho recém-nascido ao longe. Havia na época uma cabrita que estava prestes a dar cria e mesmo sendo tarde José e Delfina resolveram sair e ver se encontravam o animal.

Quando se aproximavam de onde deveria estar o cabritinho ele berrava mais a frente. Cruzaram uma cerca e atravessaram um pasto. Nada. Cada vez mais e mais distante chorava o cabrito indefeso. José, agudo da idéia, percebeu que indefeso quem estava era o seu filho, Sebastião, dormindo sozinho em casa e voltou apressado com Delfina.

Por sorte nada de ruim acontecera. Quando amanheceu o casal voltou a procurar o cabritinho. O que encontraram os deixaram mais desconcertados ainda. A cabra nem cria tinha dado e não havia nenhum cabrito pequeno que pudesse fazer aquele barulho em toda fazenda.

Para a sorte de todos nós meu avô Sebastião sobreviveu a tudo isso. Não ileso. Ele cresceu em uma existência difícil cheia de provações e privações, aprendeu a ler e a escrever sozinho, trabalhou desde muito cedo na roça, com a enxada. Seu pai assim como o pai dele e assim em diante criou os filhos com a aspereza de quem arranca o respeito da família através da brutalidade.

Quando eram chamadas as crianças precisavam atender imediatamente estivessem na situação que fosse. Se por um acaso se atrasassem apanhavam para aprenderem a respeitar os mais velhos. Não eram filhos, mas soldados que deveriam estar sempre prontos para responder ao dever. Uma visão triste e cruel da época que ainda ecoa em muitos lares brasileiros.

A história que meu avô contava sobre a batida de açúcar e ovo também ilustra bem o Cadeado e sua cultura. Lá naquelas bandas açúcar era item raro e difícil de conseguir em abundância, porém, por outro lado, ovo havia de sobra.  Sua mãe Derfa fazia para meu avô clara em neve misturada com gemada e açúcar batido e de acordo com ele essa iguaria era uma delícia.

Certa vez Delfina precisou se ausentar e meu avô sabendo que eles tinham açúcar na despensa resolveu preparar sozinho a tal bebida, mas mal havia batido a clara, viu voltando sua mãe. Desesperado misturou a gema, colocou o açúcar e bebeu tudo daquele jeito mesmo. A cozinha era território dos adultos e as crianças não tinham permissão para preparar nada nela e a pena para tal invasão era uma surra. E assim meu avô recebeu resiliente sua sentença por ter invadido território proibido.

A primeira vez que meu avô Sebastião usou uma cueca contava já uns doze, quatorze anos. Até então salvo ocasiões extraordinárias sua roupa íntima se resumia a um saco de estopa adaptado para servir como um vestidão. Cueca era um luxo que só se constituía em direito quando o menino passava a ser considerado homem. O direito de usar cueca no Cadeado representava o rito de passagem dos meninos para a vida adulta. Após receber a cueca estava meu avô todo faceiro quando seu tio Antonio Depetris, o “Tonho”, ficou sabendo da cueca nova de meu avô e ralhou indignado:

“_Não aprendeu nem limpar a bunda e tá usando cueca é?”

Com os brios fáceis de enfurecer e o orgulho ultrajado meu avô retrucou de forma imatura:

“_A cueca é minha, eu uso o que eu quiser.”

Percebendo que o garoto aceitara seu desafio e considerando aquela resposta pretexto suficiente para surrá-lo, Tonho arremeteu já arrancando a cinta:

“_Seu filho-da-puta! Te surro seu cachorro maroto!”

 Ensinado a não se dobrar a ninguém, a não deixar passar nenhuma provocação em branco, rapidamente Sebastião agarrou um facão que estava ali perto e chamou o tio para briga. Ofendido e humilhado o covarde Tonho foi procurar Derfa para que ela desse uma sova no piá. Tonho agia e raciocinava como um animal que precisava afirmar a sua masculinidade frágil sobre o adolescente demonstrando que mesmo o rapaz já vestindo cuecas ele continuava sendo superior. Via no meu avô um concorrente ao cargo de macho alfa do clã. Uma conduta bestial de homens se portando como verdadeiros animais.

Delfina que de forma alguma compactuava com o intelecto simplório de Tonho apenas disse que nada disso teria ocorrido se o homem não tivesse provocado o menino. Tonho engoliu a derrota e foi-se embora com o orgulho ferido. Meu avô considerava um feito e tanto sua bravura ao enfrentar o tio sem nunca ter refletido sobre a irracionalidade dos comportamentos dos adultos de sua infância.

Meu avô frequentou a escola somente quatro anos. Ele tinha que percorrer cinco quilômetros que separavam sua casa da escola aos oito, dez anos. O ano letivo se adequava para não interferir com as colheitas quando as crianças eram necessárias para o trabalho. Tempos que a noção de trabalho infantil simplesmente não existia e a força dos braços das crianças era o que definia se a família iria passar fome ou não.

Fora a penosa caminhada diária a instrução das próprias professoras, Dirce e Beta, era duvidosa; ao menos de acordo com a percepção de meu avô. Provavelmente nenhuma de fato tivesse um diploma de licenciatura posto que na época e região seria difícil qualquer um ter a oportunidade de se formar, ainda mais as mulheres que sofriam com os grilhões do patriarcado que as proibiam de trabalhar fora ou estudar.

O mais provável é que as professoras do meu avô fossem apenas mulheres que se preocupavam com a educação das crianças e se propunham a compartilhar com as novas gerações o máximo de conhecimento que fossem capazes. No entanto meu avô ensinado a competir achava mais intrigante pôr em xeque a qualificação do ensino que recebia do que o esforço no gesto altruísta das mulheres de ensinar apesar dos desafios impostos pela sociedade machista.

Digo isso porque o meu avô mesmo ria com o “Ipsilonê” e com o “DâbliuVê” que aprendeu na escola.  Estas letras do alfabeto inglês que correspondem ao Y e ao W e que só depois da reforma da Língua Portuguesa de 2008 passaram a fazer parte do alfabeto do português brasileiro e que meu avô já naquela época reconhecia e sabia que a pronúncia que aprendera estava incorreta.

Este é um detalhe que me confidenciou com um ar especial já que eu me tornei professor de Língua Portuguesa e Inglesa. A oportunidade de mostrar sabedoria mesmo não tendo um ensino formal a alguém que se formara na faculdade era única. O que se lia nas entrelinhas é que ninguém, com diploma ou não, poderia rivalizar com os feitos e conquistas do meu avô. Era uma forma de se autoafirmar tão sem sentido quanto a que ele passou com o tio no episódio da cueca.

Se possível fosse eu adoraria explicar a meu avô sobre o pensamento colonialista que fomos sujeitados por séculos de exploração portuguesa e como ele moldou estes discursos de preconceito linguístico que ele sustentava na ocasião sobre as professoras. Mas para isso ele teria que me ver como um igual e não um neto jovem que precisava aprender com ele. O seu orgulho jamais admitiria o inverso.

As matérias da época de escola se resumiam segundo ele à Aritmética, exercícios de Caligrafia, Cópia de texto e Ditado. Mesmo sendo um estudo breve e deficiente é com base nele que meu avô depois que se aposentou como caminhoneiro ergueu inúmeras casas na profissão de pedreiro, profissão em que ele se tornou mestre. É bom deixar registrado também que meu avô aprendeu a ler e a escrever sozinho, sem um ensino tradicional.

sábado, 4 de novembro de 2023

DEPETRIS - Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou - VELHO AUGUSTO - Capítulo IV

 


Da esquerda para a direita: O Velho Augusto, José Manuel Batista Dias (marido de Idália), José Depetris (acima dele está sua filha, Edite Depetris), João Depetris (irmão de José Depetris), Delfina de França Depetris (esposa de Augusto; acima dela está Joubert, filho de João Depetris), Pelegrina Taverna Depetris (esposa de João Depetris, conhecida na família como “Tia Pina”; acima dela está sua filha Ursula), Idália Depetris Batista Dias (irmã de José Depetris; em seu colo está seu filho, José Alcides Batista Dias), meu avô Sebastião Depetris e Dona Alcina, conhecida da família

Foto tirada na Vila Jurandir Pimentel (Vila “Jôra”) no início da década de 50 

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DEPETRIS

Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou

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VELHO AUGUSTO - Capítulo IV


Com exceção de Evandro Depetris, o “Wando”, que nasceu em Riversul (na época Ribeirão Vermelho do Sul) todos os outros filhos nasceram no idílico e bucólico Cadeado, bairro rural de Jaguariaíva, distrito de Bertanholi; o que não significa que eles foram registrados no local. Na época era comum registrar os filhos tempos depois do nascimento e geralmente em outro local, mais próximo da civilização. Pelo menos meu avô e a sua irmã, a “Negra”, foram registrados em Cerro Azul.

Meu avô nasceu em vinte e dois de maio de mil novecentos e trinta e quatro, dois anos depois da Revolução Constitucionalista. O terreno no Cadeado foi dado pelo pai de José Depetris Sobrinho, o “Velho” Augusto, que em uma reconciliação com o filho depois de uma rusga presenteou-o com uma fazenda de quinhentos alqueires. Pai e filho moraram por lá até se mudarem para Ribeira, Itararé e voltarem para Ribeira.

O Velho Augusto era subdelegado do Cadeado, bravo e valente de acordo com as memórias de meu avô, impunha respeito na região com seu revólver 38 e sua carabina 44. Sua casa era a única na região que possuía telhas de barro, todas as outras eram cobertas por simples tabuinhas de madeira feitas por ele mesmo.

Carpinteiro excelente o Velho Augusto extraía da natureza as toras cujas quais cortava as tábuas de madeira para erguer as residências. Contava meu avô que seu avô era tão agreste que tinha como hábito mascar folhas de pimenteira e de outras plantas insuportáveis para a maioria do paladar humano como se fossem simples goma de mascar. Sua bravura desafiava até o temível.

O Cadeado onde meu avô morou na infância era conhecido por em seus cerros surgirem bolas de fogo voando rápidas na escuridão. As pessoas temiam o Boitatá, mas o Velho Augusto não. Quando foi avistada a passagem do olho vermelho que deixava um rastro serpenteante de faíscas no ar ao longe todos tremeram murmurando baixo que aquele era o Boitatá. O subdelegado cortou o alumbramento dizendo que aquela luzinha não se tratava de nada mais do que um vaga-lume. O tal valente Augusto não se dignou em ir enfrentar a criatura, porém era bom em gargantear, isso com certeza. E meu avô claramente o admirava e seguiu seu exemplo.

Outro ponto interessante sobre os Boitatás segundo as lendas do Cadeado é que eles também brigavam entre si. A família Moreira do Cadeado contava uma história que meu avô escutou quando era criança de duas criaturas que lutavam no alto de um pinheiro próximo da casa dessa família provocando uma chuva de fogos a cada golpe. O cachorrinho da casa, sem noção do perigo que representava aquilo, avançou latindo embaixo de onde as duas esferas combatiam e acabou recebendo toda a chama delas. Os ferimentos foram tão graves que não havia nada que se pudesse fazer para salvar o animal. Um rapaz tomado de raiva pegou a espingarda e atirou nos Boitatás. Eles respingaram brasa e alçaram vôo para longe cada um em uma direção. Por certo o Velho Augusto se soubesse desse feito dos Moreira teria feito pilhéria do caso como lhe era de costume quando ouvia qualquer coisa a respeito de seres feéricos e de atitudes de bravura de outros homens.

Um conhecido de Delfina também passou um apuro com um Boitatá certa vez. Contava Delfina que um homem estava a cavalgar e precisava passar por um morro quando avistou no alto de um pinheiro uma pequena luz. Furtivamente apeou e trazendo o cavalo pelas rédeas se aproximou tentando passar despercebido o máximo que pudesse. Ele só foi capaz de dar alguns passos até a luz se transformar em uma fogueira e ir de encontro a ele. Sem outra opção o homem assustado teve que mudar sua rota para fugir do Boitatá.

O Velho Augusto cultivava a erva-mate e bebia o chimarrão dos gaúchos mesmo sendo imigrante de italianos que vieram como seu pai, André Depetris, para o Brasil em um barco a vela.  Dizia ele que quando sua família avistou o porto de Paranaguá o povo se alegrou tanto que fizeram uma festa em alto-mar. Beberam e cantaram festejando o fim da jornada e quando se deram conta o vento mudara e a terra havia sumido de vista. Esse deslize de André e seus compatriotas lhes tomou oito dias para corrigir a rota e finalmente alcançar o porto.

Augusto se identificou com os hábitos do sul do Brasil e mantinha uma pose de valente tal qual os rio-grandenses-do-sul. Sua mulher, Delfina de França Depetris, com quem teve oito filhos, faleceu em setembro de sessenta e um. A família para diferenciar a sogra da nora, ambas Delfinas, se acostumaram a chamar a mulher de José Depetris e mãe de meu avô de “Derfa”. Curioso salientar que o nome Delfina que deriva do grego Delfim que por sua vez significa golfinho era um nome assaz ordinário no começo do século passado.

Quando se casou Derfa vivia com o pai, Antonio Diogo, e então se separou dele para ir morar no Cadeado com a família do marido. Derfa e José repartiam muitas coincidências. Além da origem imigrante apreciavam bastante o tabaco. José se limitava a muito de vez em quando queimar um cigarro de palha enquanto Delfina fumava cigarros comerciais e com bastante frequência. José gostava de bebericar uma pinga de tempos em tempos, todavia o que lhe causou o fim foi o mesmo destino de sua mulher: o pulmão de ambos se fragilizou com o abuso constante o que os levou à morte.

O mesmo ocorreu de certa forma com o próprio Sebastião que teve sua saúde muito debilitada no fim da vida devido a um enfisema pulmonar conquistado por décadas de fumaça tragada de cigarros de palha e comerciais lhe obrigando a utilizar um tubo de oxigênio para respirar.

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

DEPETRIS - Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou - DELFINA - Capítulo III


De pé, da esquerda para a direita: Rocco Ligório (marido de Nelsa), Margarida Depetris, Sebastião Depetris (meu avô), João Depetris (já falecido)

Segunda fileira, da esquerda para a direita: Antonio Depetris (de pé), José Depetris, Delfina Depetris, Nelsa Depetris Ligório, Hélio Depetris e Edite Depetris

Crianças: Terezinha Depetris, Evandro Maximiniano Depetris, Rubina e Rosa (filhas de Nelsa)

Foto tirada por Jansson em seu estúdio

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DEPETRIS

Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou

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DELFINA - Capítulo III

Todavia o gênio forte de Emília marcou sua filha Delfina que carregava em si traços de ambos os pais. De tez bem morena ao contrário da mãe, mas alta qual a alemã, magra, voz rouca devido ao fumo, intrépida: esta era Delfina. A menina Delfina convivendo com os acontecimentos estranhos que rodeavam a mãe e ouvindo as histórias da família Altimiha - da esposa de Antonio Diogo que aparentemente além de se envolver com Emília e talvez com Paulina chegou a se casar em outro momento com uma terceira mulher - contou anos mais tarde para meu avô sobre o caso do pai da esposa de Antonio Diogo.

Quando o sogro de Antonio Digo era criança, contava Delfina, que o menino queria descobrir o que perturbava as galinhas durante a semana santa. Montou tocaia perto do galinheiro ele e seus amigos e conseguiram prender o ladrão de galinhas com vários laços. Tratava-se de um cachorrão nunca visto por ali, de porte maior que qualquer outro. O arrastaram para perto do fogo para vê-lo melhor e perceberam então que não se tratava de um animal e sim de um preto velho nu. Completamente surpresos e amedrontados pela descoberta inusitada e desconcertante entregaram uma muda de roupa para o senhor que partiu sem dizer uma palavra. Algum tempo depois a roupa fora devolvida, deixada pendurada na cerca.

Meu avô questionava a veracidade desta história por se tratar de crianças que poderiam estar mentindo, contudo, jamais do lobisomem em si. Para meu avô estes seres eram reais e muitas outras coisas coexistiam conosco que não conhecemos ou podemos explicar. Ele se gabava de não temer homem algum, mas quando o assunto eram as “visages” aí a conversa mudava. Este paradoxo de contradições definiam tanto o meu avô Sebastião quanto Delfina sua mãe.

Delfina nasceu em Mato Preto no município de Cerro Azul e cresceu junto à mãe Emília. O sobrenome Depetris foi trazido a nossa família através do marido de Delfina, José Depetris Sobrinho, também de Mato Preto. José Depetris e Delfina tiveram nove filhos, cinco homens e quatro mulheres, sendo o primeiro deles, meu avô, Sebastião Depetris. Os nomes dos irmãos e irmãos de meu avõ são: Nelsa Depetris Ligório (conhecida por “Negra”), João Depetris, Margarida Depetris Pellegrinetti, Hélio Depetris, Antonio Depetris, Edite Depetris Akim, Terezinha Depetris de Souza e Evandro Maximiniano Depetris. Os filhos e filhas de Delfina se espalharam entre as cidades de Itararé, Apiaí, Adrianópolis e Curitiba.


quinta-feira, 2 de novembro de 2023

DEPETRIS - Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou - Emília e Diogo - Capítulo II

Foto de José Fisher

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DEPETRIS

Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou
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EMÍLIA E DIOGO - Capítulo II

A tradição de contar histórias dos Depetris e de conviver com as manifestações de coisas além da compreensão tem origem com a matriarca do clã, a avó de meu avô, Emília. Ela era imigrante ou descendente do povo germânico, não se sabe ao certo, que acabou por se embrenhar nos remotos recantos do interior do estado do Paraná no bairro de São Francisco, município do Rocha perto de Adrianópolis. Certa vez contava Emília quando sua filha Delfina, mãe de meu avô Sebastião, ainda era menina estava ela em casa com suas filhas e cansada de ter de aturar um estranho fenômeno que insistia em ocorrer cada vez mais frequentemente nas noites escuras de três vozes femininas conversando e rindo em língua desconhecida que passavam por cima do seu sítio gritou enfezada bem quando as vozes sobrevoavam suas terras:

“_Já vão indo as cadela!”

Mal terminou de falar um grito terrível rasgou os céus e o som de alguma coisa caindo contra o chão ecoou na noite. Não muito longe do casebre de chão de terra batida e paredes de madeirame tão finos que mal barravam o vento alguma coisa se debatia raivosamente no matagal. Com medo pela segurança das filhas, afinal acreditava-se que essas megeras raptavam bebês no berço e crianças descuidadas, Emília alcançou uma foice e manteve vigília por toda a noite com sua cria grudada na barra de seu vestido, próximas do fogo, ouvindo o rugir da fera que se contorcia em seu quintal.

Enfim quando o dia amanheceu Emília ousou sair de casa. Não viu nem encontrou nada de estranho, apenas um mato remexido perto do paiol como se algum animal tivesse dormido e rolado por cima dele. Desde então nunca mais as tais vozes foram ouvidas e quanto ao local da queda da bruxa jamais novamente cresceu ali mais nenhuma planta ou erva e os animais se recusavam a se aproximar do lugar como se pudessem sentir o mal que nele estivera. Este pequeno conto nos demonstra como o folclore europeu foi trazido e se adaptou à vida dura do interior e realidade dos trópicos. O isolamento era solo fértil para a imaginação estrangeira em terra estranha.

Mais do que seres mágicos voadores atormentavam a vida difícil de Emília no sertão. Em outra ocasião um suposto cachorro estava perturbando os porcos do rancho e Emília acreditando se tratar de algum animal vadio, munida de um pedaço de pau, afugentou abaixo de gritos e pauladas o oportunista. No dia seguinte quando o dono do porco que pagava Emília para engordá-lo foi buscar o suíno capado ela contou o que havia sucedido. Ele ao examinar os grandes retalhos no toucinho esbravejou abismado:

“_Esse não é serviço de cachorro nenhum, mas de onça!”

Este episódio foi a gota d’água que fez Emília se mudar para o outro lado da ponte que divide São Paulo e Paraná indo se ajeitar em Ribeira. Trata-se de uma cidadezinha que dá nome ao rio largo e caudaloso que serve como fronteira natural dos Estados. Ribeira é cercada por gigantescos montes cobertos por mata atlântica e tem um clima quente qual praia. A região é rica em cursos de águas sendo o mais perigoso deles o próprio rio Ribeira.

Emília conseguiu enfim prosperar, porém jamais se acostumou com os confortos modernos. Sua origem humilde a levava a praticar atos memoráveis como por exemplo quando dormiu na casa do meu avô, Sebastião seu neto, e ao invés de se instalar em um quarto preferiu estender um pano no chão da cozinha e dormir por ali mesmo. Seu quarto de acordo com minha mãe, Rosangela, que a visitou tempos depois, continha uma singela cama de palha barulhenta, mas aparentemente confortável.

Junto com Emília vieram sua irmã Paulina e sobrinho José Fisher. Os outros irmãos partiram para Santa Catarina. A polaca Paulina que trazia na pele a neve européia nunca se casou, limitou-se a um relacionamento informal com Antonio Ursolino Dias, vulgarmente chamado de “Diogo” devido ao nome do pai. Antonio Diogo era um representante da negritude genuinamente brasileira. O bem afeiçoado sedutor residia no Ribeirão do Canhã, em Cerro Azul, perto das bandas de Ribeira. Tão carismático era o homem que há quem suspeite que o filho de Paulina que era solteira, o jeitoso José Fischer, fosse dele. Se for verdade Diogo encantou as duas germânicas já que ele também era pai de Delfina, mãe de meu avô, com a Emília e José Fischer seria filho da irmã de Emília, Paulina.

Antonio Diogo também tinha lá os seus mistérios. Embora nessa sua pequena fazenda tivesse uma bela casa de peroba ele insistia em viver em um paiol nos arredores com a família oficial e usava a casa para estocar milho. Nunca se soube, ou melhor, nunca alguém teve a coragem de lhe indagar o porquê disso. Meu avô imaginava que a casa fosse mal-assombrada.

O mesmo Antonio Diogo guardava uma considerável quantia fétida pelo tempo de mil réis em um caixote de querosene contava meu avô. Soma que perdeu todo o valor por não ser trocada na época por cruzeiro em 1942 por pura teimosia de Antonio Diogo em não acreditar que seu dinheiro algum dia poderia perder o valor. Mas através do trabalho duro o rapaz conseguiu refazer o pé-de-meia sendo um comerciante sagaz de porcos, incansável na labuta, dizia meu avô sobre o avô dele.

Emília não teve um final feliz. Após sofrer uma queda na qual bateu a cabeça e lesionou seu braço a deixando por um longo período na cama, enfraquecendo irremediavelmente sua coluna, sua condição só piorou. Esse acidente a prendeu a cadeira de rodas até a morte. O cabelos de Emília eram brancos, prateados, e seus pés inutilizados por anos lhe doíam muito. As unhas nos dedos do pé machucavam a carne encravando-se e abrindo feridas pelo caminho. A dor era tanta que Emília preferia conviver com ela a permitir que alguém tocasse seus pés. De Antonio Diogo não se sabe que fim levou, provavelmente faleceu mais ou menos no mesmo período que Emília.

DEPETRIS - Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou - VISAGES - Capítulo I

Sebastião e seu companheiro de estrada, Loir “Cruche” Santos, posando com caminhão Ford, na R. São Pedro em Itararé em frente ao estúdio de fotografia de Gustavo Jansson na década de 50.

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Começo agora a compartilhar os textos que resumem as entrevistas que fiz com o meu avô Sebastião há vinte anos para tentar registrar minimamente a sua biografia.
Como este ano infelizmente ele faleceu em julho, volto a estes textos de décadas para finalizá-los e oferecê-los como homenagem.
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DEPETRIS
Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou
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VISAGES - Capítulo I

Lembro-me bem desses momentos com meu avô: da magia de criança se misturando com o encantamento da noite, da chuva, das histórias. Nas noites tempestuosas do meu mundo distante de criança quando a natureza unia o que a rotina havia separado nos libertando da hipnose da TV – cresci acostumado com cada um da família ficando em seu quarto isolado sem interagir uns com os outros, exceto nas refeições – devido às quedas de energia comuns com as chuvas torrenciais de repente a casa virava numa correria para encontrar uma vela e espantar a escuridão.

A gente se reunia na copa, ao redor da grande mesa de jantar, para conversarmos como os contadores de histórias ancestrais ao redor do fogo noite adentro. Eu criança imaginava tudo que me era contado com o melhor que o palco da minha mente conseguia produzir. Éramos então novamente uma família.

Assim, com as sombras bruxuleantes dançando pelas paredes, o tempo e o espaço ganhavam novos significados. E cedo ou tarde por insistência minha e de minha mãe as conversas acabavam por se transformar em pedidos para que meu avô visitasse suas memórias e as compartilhasse conosco uma vez mais. Meu avô se fazendo de constrangido como se lhe incomodasse rememorar tais episódios supostamente traumáticos, mas com claro contentamento de ter suas histórias de velho sábio valorizadas, depois de teatralmente hesitar um pouco, enfim começava a dramaticamente nos contar suas histórias de “visages”. Contos e causos que em sua maioria já conhecíamos, mas sempre nos surpreendiam cada vez que eram repetidos por seu caráter insólito e narrativa envolvente.

O talento em tecer histórias teria sido herdado segundo contam de sua mãe Delfina que era boa de prosa e foi quem contou a meu avô muitas das histórias que ele reproduzia. O medo do sobrenatural que meu avô ostentava, logo ele um homem que se dizia corajoso forjado pelo suor do trabalho e da vida na boleia, teria sido despertado em sua infância repleta de casos assombrosos. Sua mãe e sua avó e alguns de seus irmãos e irmãs colecionavam histórias de como coisas inexplicáveis costumavam ocorrer na presença deles. O desconhecido corria em suas veias.
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segunda-feira, 10 de julho de 2023

HOMO HOMINI LUPUS


O Lobo é o símbolo da natureza selvagem, inescrupulosa, sem qualquer conexão com a ideia de criação onde o mundo é concebido para servir o Homem.

O Lobo é o amálgama do terror que inspirado pelas feras oprime o coração e mente humanas. É o perigo sempre rondando à espreita, furtivo e malicioso, com olhos amarelados refletindo o opaco luar, o predador feroz que nunca se sacia e que ao provar carne humana vicia-se nela e passa a salivar e rosnar faminto e insano caçando sua presa para provar uma vez mais o seu sabor profano.

O raptor de bebês, o carrasco dos idosos, sempre preseguindo os mais fracos, oportunista maligno esperando qualquer brecha ou distração para atacar. Basta um erro e terá que se carregar para sempre a consequência de ter baixado a guarda.

Uma chance é tudo o que o Lobo precisa para dilacerar famílias, destruir casais, acabar com linhagens e eliminar a sabedoria ancestral.

Uma ameaça constante à tribo e ao rebanho, o lado indomável do melhor companheiro do Homem, o cão. Ele é um saqueador que tem prazer em tirar a vida do seu primo traidor que guarda a morada dos seus senhores humanos rasgando-lhes a garganta e banhando-se no sangue do mastim ou pastor. Não há misericórdia para os que aceitam a submissão e subserviência. Se os cães auxiliam os homens na caça, o Lobo mata os cachorros por esporte.

Fiel somente à sua matilha e aos seus instintos de caçador, senhor das florestas e inimigo declarado da humanidade e tudo que ela representao Lobo é a personificação do mal, o demônio encarnado que deseja a aniquilação da humanidade para tomar a Terra para si. A barbárie contra a civilização. A negação da ordem, o caos absoluto.

Suscetível às fases da lua, amante das trevas que em coro aterroriza a noite e conclama a seus irmãos para celebrar a magia primordial dos recantos perdidos dos ermos. Sua irmandade os torna guerreiros implacáveis que reinam sobre as demais criaturas. Seu reino é o mundo.

Mesmo os predadores maiores temem confrontar a matilha, sua tática em grupo, feroz e irascível os torna inimigos imparáveis que contrapõem em números mesmo os maiores e mais fortes opositores. Até um leão contra os Lobos sorridentes da África não tem chance. Um urso pode derrubar vários Lobos, mas não consegue salvar seu filhote das garras e presas da matilha.

Os Lobos são pais protetores, nenhum filhote fica para trás. O ataque à cria é um ataque a toda a matilha e demanda retribuição em forma de vingança. Não há crime maior para um Lobo do que derramar o sangue e abater um filhote seu.

Cada filhote é a promessa da continuidade do Lobo no mundo. Do frio congelante ao bosque úmido às planícies escaldantes o Lobo é o herdeiro direto do mundo e o maior ressentido dos homens, suas tribos, clãs e cidades. Um Lobo pode abater um cordeiro aqui e ali de vez em quando, mas os homens os chacinam às centenas.

Esquece-se que o Lobo mata por fome, o Homem cria uma nova geração para garantir a aniquilação perpétua da espécie.

Não há muros para o Lobo, não há fronteiras para seus domínios. E ao conviver com o Homem o Homem acabou por algum momento, ao deixar carcaças para trás, chamando a anteção do Lobo que o seguiu até o momento que uma parcela destes animais acabaram por serem convencidos da comida fácil e deixou-se domesticar.

Por outro lado o Lobo enfureceu o Homem. Nós ensinamos obediência, disciplina e submissão ao animal e aprendemos com ele descontrole, loucura e crueldade. Assim nos tornamos o nosso próprio Lobo. Civilizamos o animal e perdemos a nossa humanidade no processo. Nos tornamos animalescos.

O Homem é o Lobo do Homem.

O Homem é o Lobo do Lobo. 

O Homem é o Lobo de tudo que vive.

E de tanto lutar e derramar o sangue um do outro acabamos nos fundindo em uma maldição de ódio mútuo. Ao sabor do luar somos convidados a dançar e cantar na madrugada nas clareiras como os nossos inimigos jurados. Porém somos mais sórdidos que os selvagens predadores pois destruímos a natureza, o Lobo e a nós mesmos. Matamos nossos filhotes, nossas fêmeas, nossos anciões. 

A loucura nos envenenou e não sabemos mais quando parar. 

Ao provar a nossa própria carne e sangue nos viciamos tal qual as feras que tememos.

Aprendemos a domesticar o semblante em sorrisos, entretanto rosnamos e mostramos os dentes por dentro, ensandecidos, na alma. 

Sonhamos em aniquilar os que nos oprimem e oprimimos os demais para nos sentirmos mais fortes.

Nos traímos. 

A corrupção nos fez perder a essência natural e nos tornamos ferais.

Famintos insaciáveis.

Se os animais tivessem religião o Homem seria o Diabo.

Porque se Jesus é o Cordeiro de Deus...

...o Homem é o Lobo de Deus.