quarta-feira, 17 de junho de 2015

Legião - Porque nós somos muitos


  Começou como uma brincadeira praticamente inocente. Uma piada boba de alguém que queria se aparecer e fazer a galera rir. Mas como o alvo da zombaria era o mais tímido menino da sala, o que menos falava e aquele que ninguém queria sentar perto, fazer prova em dupla ou escolher para formar o time na aula de Educação Física, claro que não parou por ali.
  Afinal acreditavam realmente que tirar sarro dele era uma forma de incluí-lo, só brincamos com quem consideramos amigos, certo? Então rapidamente aquela atitude foi se espalhando como um vírus, por todas as salas da escola, no recreio. Ele continuava calado, com medo, se alguém vinha falar com ele, ele reagia como um animal assustado, acuado, nervoso. Os professores notaram, mas havia muito pouco que pudessem fazer. A Diretoria não acreditava na seriedade das reclamações, chamou um ou dois mais bagunceiros que abusavam da paciência de todos para conversar e deu a situação como encerrada. 
  Até mesmo os outros alunos menos queridos das turmas se aproveitaram para se promover na humilhação alheia e conseguiram se tornar mais legais aos olhos do povo do fundo ao tirar uma onda com o rapaz. Logo ele começou a faltar na escola, mentia, dizia que estava doente para sua mãe e ela preocupada, não sabia o que fazer. Atolada em trabalho, responsabilidades, com um filho mais novo que precisava de atenção redobrada, separada, sua mãe era tão frágil quanto ele naquele mundo cruel.
  Mesmo assim ela o levou a vários médicos, tentou conversar, descobrir o que se passava, mas ele se mantinha calado. Não via como sua mãe poderia ajudá-lo, só queria se esconder, só queria que eles parassem. Mas não pararam, óbvio. O seu celular pipocava com mensagens infelizes, agressivas até. Chegaram a criar um fake para falar com ele e fingir que alguém se importava com ele, que poderia se apaixonar por ele. Alguém de longe, inalcançável, e ele, carente e desesperado acreditou naquela farsa teatral que rendera muitas risadas. Ele se abrira para aquela pessoa, aquele amigo virtual que parecia lhe entender, uma válvula de escape do pesadelo que se tornara sua vida.
  Alguns já achavam que aquilo tudo havia ido longe demais e começaram a pedir para que os outros parassem. A maioria se cansou, ficou com pena, perdeu o interesse. Contudo os mais cruéis, os mais sádicos não podiam simplesmente esquecer e deixar para lá. Se empenharam tanto, iludiram tanto que abusando da confiança estabelecida fizeram o pobre menino expor sua intimidade acreditando ter encontrado alguém que o amasse e sentisse o mesmo que ele. 
  Novamente pais foram chamados, conversas sérias foram ditas, entretanto pouco de efetivo foi feito. Os pais dos garotos mais problemáticos não tinham tempo para se preocupar com eles, tão pouco de fato se importavam com os próprios filhos preferindo suprir a sua falta de atenção com presentes que os  entretivessem a realmente dar-lhes atenção. E essa carência gerava uma raiva que era descontada nos demais. Um apelo, um grito por atenção, por preocupação que é uma forma de se mostrar que nos importamos, que amamos. 
  Assim sendo, vendo o quanto a mãe do rapaz havia se desesperado com o caso, ela tinha até ameaçado procurar um advogado para processar os pais dos meninos que tinham feito o que fizeram com seu filho, os filhos que só ganharam tapas e xingamentos dos pais se tornaram ainda mais perversos.
  A vítima não queria mais sair de casa, nem do quarto, não comia, só chorava, pensava que não havia mais saída. Na verdade só uma. E enquanto sua mãe trabalhava e sua vó que fora morar com eles por um tempo para ajudar a cuidar deles dormia, pegou vários remédios dela e tomou-os de uma vez.
  A notícia pegou todos de surpresa. Ninguém mais riu. Ninguém mais achou graça. Pois antes de partir ele escreveu o que sentia em seu diário e descreveu os seus agressores como demônios que lhe infernizavam como os demônios que Jesus exorcizou de um homem e os colocou em porcos, segundo a Bíblia, e eles se jogaram de um penhasco se matando. Ele era religioso porque sua mãe lhe ensinara ao contrário do que muitos diziam, que Deus nos amava como nós somos, independente do que possam dizer padres e pastores e assim como Deus ela o amava como ele era e para ela ele era perfeito. Terminou pedindo perdão a sua mãe pelo que estava prestes a fazer. 
   Todos da escola estavam em seu enterro e os responsáveis por aquela tragédia pareciam chocados, perdidos em seus pensamentos, assustados com o mal que habitava em si. Podiam ouvir o demônio rindo deles enquanto sua inocência era devorada pela culpa. E os pais sentiram a semente do mal que estavam cultivando em seus lares.