sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Espanca, me fez repensar


SER POETA
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Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!
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É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
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É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhas de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
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E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dize-lo cantando a toda a gente!
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Florbela Espanca (1894-1930)
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Eu estudei na faculdade brevemente sobre a Florbela, como o romantismo nela era impossível, e eu não me encantei muito pelos versos dela. Embora o nome, seja o nome de uma grande poeta, Florbela Espanca. A revanche do Cravo e a Rosa. Mas, passando pelos espaços que eu visito todos os dias, no blog da Ana, me deparei com esse poema que eu simplesmente adorei. E repensei o pouco que sabia sobre Florbela, ela é muito mais do que eu posso imaginar. E a descoberta é algo que torna tudo tão interessante. De Florbela até as Flores do Mal de Baudelaire, a poesia sempre é surpreendente.
Postado por E Agora José?

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Lupercus e Aera

A imensa lua, esplendorosa, pairava no alto do véu de negror infinito ofuscando as pequenas e tristes estrelas. Ártemis parecia se contemplar diante do lago espelhado e derramava seu luar de prata na pele alva e suave da ninfa que se banhava à meia-noite. A água deslizava pela seda de sua pele, se escondendo pelas curvas perfumadas, na carne macia e rósea, pelos cachos, entre os seios, entre as coxas. Uma visão divina, capaz de despertar toda a fúria do demônio da libido no filho de Pã que observava, à distância, escondido nos ramos de espinhos na margem, a bela ninfa do canto, Aera. Acreditem quando digo que seus pensamentos eram os mais sórdidos possíveis; as mãos tremiam ao imaginar o toque de suas garras cravadas profundas no quadril da ninfa, puxando-a ferozmente contra si em uma curra alucinada. Ecoavam gemidos, gritos, uivos e balidos por toda a floresta noturna nas fantasias de Lupercus. A boca espumava de luxúria, os olhos ganhavam um brilho de extrema malícia, e o sexo latejava de desejo em rasgar a flor incólume de Aera.
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O fauno ouvira Aera pela primeira vez após se fartar de vinho em um bacanal de Dionísio, no coração de uma floresta desconhecida e, andando a esmo, exausto e satisfeito, deixou-se apanhar por Morfeu. Seus sonhos ébrios foram varridos de repente, e a voz, leve e angelical como o cristal que tilinta ao sabor da brisa primaveril, chegou-lhe à alma, fazendo o aço do seu coração se retorcer, abrindo feridas incuráveis em seu peito. Lupercus chorou ao ouvir tal voz repleta de candura e beleza; nem Orfeu ao descer nas profundezas de Hades seria capaz de fazer isso ao devasso sátiro. Desde então, ele persegue o hálito doce no vento, a voz que o despertou dos pesadelos. Lupercus tornou-se obcecado em encontrar a única ninfa imune ao encantamento de sua flauta, siringe. Por vales, montanhas, abismos e campos o fauno passou, até encontrar o santuário onde Aera vivia, nos domínios da deusa amazona. Sua presença no lago onde Narciso se apaixonou por seu reflexo, nesse templo natural sagrado, já era motivo suficiente para que as caçadoras arqueiras soltassem os mastins farejadores contra o intruso, e o fizessem em retalhos. Se alguma guerreira descobrisse as intenções do sátiro, elas o alvejariam com suas flechas envenenadas e o arrastariam por todo o caminho de volta para jogar seu corpo aos pés de seu senhor. Talvez esse pretexto pudesse ser o começo de uma guerra entre Ártemis e Pã. Lupercus arriscava a vida sem receio, sabia que valia a pena qualquer risco o tesouro que almejava. E não se preocupava com as conseqüências de sua escolha: ninguém era imune ao desejo, muito menos os sátiros.
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Nas sombras, furtivo, ele esperava próximo às vestes de Aera para apanhá-la distraída com uma rede trançada pelos fios do destino das Moiras. Para conseguir que as irmãs o ajudassem, ele abriu mão de sua longa existência encurtando sua própria vida para poder prender Aera e fazê-la submeter-se a sua volúpia. Do que lhe valeria uma vida longa se jamais pudesse ter o que mais queria? Depois de tê-la presa em sua rede, bastaria obrigá-la a beber do vinho ardente de Dionísio que Lupercus trazia em seu odre para morrer feliz, dentro do que mais amava. Finalmente, Aera parecia ter terminado seu banho de luar e prata; uma nuvem negra selou a visão de Ártemis. Então, a ninfa veio de encontro à margem buscar sua indumentária. Lupercus estava ansioso, não conseguia imaginar a felicidade perversa e pervertida de ter aquele sonho em seus braços.
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Surpresa, Aera nem tentou resistir, a rede caiu sobre ela, e logo os braços e mãos vieram arrebatá-la. O odre caiu por terra quando Lupercus percebeu que Aera estava disposta a se entregar; ela retribuiu seu raptor com beijos, e suas mãos e boca procuraram o sexo do sátiro para adorá-lo. De joelhos, ela arranhava as costas do fauno que ofegava e cambaleava de excitação ante ao inesperado milagre. Aera trouxera Lupercus ao único lugar onde Ártemis jamais desconfiaria que um fauno fosse procurá-la, em sua casa; por isso ela escolheu o mais corajoso e faminto de amor dos malditos filhos de Pã e esperou até que os ventos cegassem sua mãe para poder se entregar a ele. Famintos um do outro, ele a colocou de quatro e a cavalgou usando seus cachos como rédeas. O suor escorria e pingava nas costas da ninfa que fraquejava, tendo suas forças roubadas pelo fogo que queimava dentro do seu corpo, ardendo e aumentando mais e mais. De súbito, o gozo semeou paixão pela terra, e momentaneamente aniquilados, eles derrotados, deitaram no leito de folhas e juraram não se separar mais. Cada dia, cada noite, seria único, de canto, vinho, música, poesia, uivos, gemidos e prazer.

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Postado por E Agora José?

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

BERÇO ESPLÊNDIDO

Decifra-me e me devora.
Olga Savary
CIQUIEÇÁUA (VIDA)
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Que não se pergunte nada.
Amor tem é de ser tomado,
esgotada a boca no beijo
até à exaustão, na boca
palavras salsugem-mel
obscenas e violentas.
Que se acariciem e se batam
os que se matam da vida
morrendo da mesma morte
(pequena morte, como é chamada).
Tenho mais o que fazer, diria.
Mas dito isto eu não pensava
que amor tivesse atingido tanto:
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enterrem meu coração na curva do cio.
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MULHER POSTA EM USO/PRONTA PARA A VIDA
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E como eu bebesse o sumo das uvaias*
eis que te arrastaria comigo para a cama
mas vai ver é que me botavas a perder.
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Meu homem, por mulher me tomarias
a romper-me os diques, trespassar-me o fosso,
a conquistar-me as torres e ameias,
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a tomar-me de assalto a foraleza.
E o frêmito no interior da vulva
era que nem sangue a pulsar nas veias.
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* fruto ácido, azedo
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Novamente, voltei a visitar a Maria Coquemala, e em um nova tarde de bate-papo agradabilíssima, conversa vai e conversa vem, esbarramos nos assuntos: poesia, livros e autores. Foi quando a Maria tocou no nome de Olga Savary, uma amiga que ela tinha feito nos últimos tempos e que ela tinha adorado o livro de poemas dessa amiga, intitulado Berço Esplêndido. Olga Savary é uma poeta conceituadíssima, ganhadora de diversos prêmios e considerada uma das maiores poetas do nosso continente, atualmente. Maria, além de me falar sobre sua amiga, me emprestou o livro dela, e eu, agora com ele em minhas mãos, começo a entender como Olga Savary escreve. É incrível a versatilidade, a fúria dessa poeta. Somente na Andressa eu tinha visto algo semelhante, a Nina que até pouco tempo só se aventura em prosa, eu conhecia tamanha força com as palavras. Imaginem do que ela é capaz nos versos...
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Depois de ler esse livro, e mesmo antes, não me sinto confortável em ser chamado de poeta, embora o faça de vez em quando. A poesia em mim, sai naturalmente, sem querer. E é ou delicada ou monstruosa, esse meio termo, essa harmonia, me fascinou. Sou o mais novo leitor de Olga Savary, e indico para quem gosta de poemas, que quando tiver um tempo, que vá dar uma procurada pra se aventurar. Tenho certeza que a leitura não será indiferente.
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POSTADO POR E AGORA JOSÉ?

sábado, 23 de fevereiro de 2008

transe...


"Todos os meus dias são transes,

E todas minhas noites, sonhos,
Por onde teus olhos cinzentos pousam
E por onde teus passos leves roçam...
Em danças etéreas,
Em fluxos eternos."

Edgar Allan Poe



quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Fotos da Família Depetris

Darcília Fisher Depetris “Nhá Tuca
Iguape 09/01/1950
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Da esquerda para a direita: O Velho Augusto, José Manuel Batista Dias (marido de Idália), José Depetris (acima dele está sua filha, Edith Depetris), João Depetris (irmão de José Depetris), Delfina de França Depetris (esposa de Augusto; acima dela está Joubert, filho de João Depetris), Pelegrina Taverna Depetris (esposa de João Depetris, conhecida na família como “Tia Pina”; acima dela está sua filha Ursula), Idália Depetris Batista Dias (irmã de José Depetris; em seu colo está seu filho, José Alcides Batista Dias), meu avô Sebastião Depetris e Dona Alcina, conhecida da família. Foto tirada na Vila Jurandir Pimentel (Vila “Jôra”) no início da década de 50.
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De pé, da esquerda para a direita: Rocco Ligório (marido de Nelsa), Margarida Depetris, Sebastião Depetris (meu avô), João Depetris (já falecido).
Segunda fileira, da esquerda para a direita: Antonio Depetris (de pé), José Depetris, Delfina Depetris, Nelsa Depetris Ligório, Hélio Depetris e Edith Depetris.
Crianças: Terezinha Depetris, Evandro Maximiniano Depetris, Rubina e Rosa (filhas de Nelsa).
Foto tirada por Jansson em seu estúdio.

Depetris - continuação

Delfina era bem quista onde morasse, madrinha de todas as crianças que sempre quando cruzavam por sua presença, pediam-lhe benção. Para os que expiravam, Delfina era também necessária, os defuntos eram lavados e perfumados por suas mãos e as mortalhas que os cobririam no seu leito final eram cozidas por essas mesmas delicadas mãos. A vida e a morte faziam parte do cotidiano de Delfina, de maneira pacífica e sem sobressaltos. Delfina nasceu em Mato Preto, município de Cerro Azul e cresceu junto à mãe, Emília, e foi testemunha dos fatos extraordinários que a perseguiam, se acostumando com a mediunidade inata em seu sangue. O sobrenome Depetris foi trazido a nossa família através do marido de Delfina, José Depetris Sobrinho, também de Mato Preto, que com Delfina viveu e teve com ela nove filhos, cinco homens e quatro mulheres, sendo o primeiro deles, meu avô, Sebastião Depetris. Os nomes dos outros filhos e filhas de José e Delfina são: Nelsa Depetris Ligório (chamada por todos por “Nega”), João Depetris (o único até então que já se foi, problemas do coração), Margarida Depetris Pellegrinetti, Hélio Depetris, Antonio Depetris, Edith Depetris Akim, Terezinha Depetris de Souza e Evandro Maximiniano Depetris. Eles se espalharam entre as cidades de Itararé, Apiaí, Adrianópolis e Curitiba e não mantêm um contato muito próximo, o que dificulta o levantamento de todas essas histórias. Paciência. Tenho, no entanto, que fazer justiça, mesmo não tendo os laços renovados com freqüência, a simpatia é inerente na família, os que eu consegui conhecer e fazer perguntas me ajudaram (quase) sem pestanejar, a tia Nega, por exemplo. Também a tia Terezinha me acolheu de braços abertos em sua casa no Natal que lá passei em 2006, mesmo sem me ver há anos, o desejo de imortalizar o legado dos Depetris era na época, uma semente recém plantada no solo fértil da minha imaginação. Com exceção de Evandro Depetris, o “Wando”, que nasceu em Riversul (na época, Ribeirão Vermelho do Sul), todos os outros filhos nasceram no idílico e bucólico Cadeado, bairro rural de Jaguariaíva, Distrito de Bertanholi, o que não quer dizer que os mesmos foram registrados no local. Pelo menos meu avô e a tia Nega são registrados em Cerro Azul, provavelmente os outros irmãos também foram registrados em outros lugares. Meu avô nasceu em vinte e dois de maio de mil novecentos e trinta e quatro. O terreno no Cadeado foi dado pelo pai de José, o “Velho” Augusto que em uma reconciliação com o filho depois de uma rusga, presenteou-o com uma fazenda de 500 alqueires e com ele morou por lá, até se mudarem para Ribeira, Itararé e voltarem para Ribeira. O Velho Augusto era subdelegado do Cadeado, bravo e valente, impunha respeito na região com seu revólver 38 e sua carabina 44. Sua casa era a única na região que possuía telhas de barro, todas as outras eram cobertas por simples tabuinhas de madeira, a maioria feitas por ele mesmo, carpinteiro excelente que extraía da natureza as toras e cortava a madeira para erguer as residências. Augusto era tão agreste, que tinha como hábito mascar folhas de pimenteira e de outras plantas insuportáveis para a maioria do paladar humano, como se fossem simples goma de mascar. Sua bravura desafiava até o temível, o Cadeado onde meu avô morou na infância, era conhecido por em seus cerros surgir bolas de fogo na noite, voando rápidas. As pessoas temiam o globo incandescente o chamando pelo nome de Boitatá, o Velho Augusto, não. Quando foi avistada a passagem do olho vermelho que deixava um rastro serpenteante de faíscas no ar ao longe, as pessoas tremeram murmurando baixo que aquele era o Boitatá. O subdelegado somente cortou o alumbramento dizendo que aquela luzinha não se tratava da nada mais do que um vaga-lume. Todos se calaram com a audácia do carpinteiro sem medo. Os Boitatás também brigavam entre si, a família Moreira do Cadeado contava uma história que meu avô escutou quando era criança de duas criaturas que lutavam no alto de um pinheiro próximo da casa dessa família, provocando uma chuva de fogos a cada golpe. O cachorrinho da casa, sem noção do perigo que representava aquilo, avançou latindo embaixo de onde as duas esferas combatiam e acabou recebendo toda a chama delas e feriu-se tanto que foi impossível salvá-lo com tantas queimaduras. Um rapaz enraivecido pelo o que aconteceu com o cachorro pegou uma espingarda e atirou nos dois Boitatás. Eles respingaram sangue ígneo e alçaram vôo para longe, cada um em uma direção. Por certo, o Velho Augusto se soubesse desse feito dos Moreiras, teria feito pilhéria do mesmo, como lhe era de costume quando ouvia qualquer coisa a respeito de seres feéricos. Um conhecido de Derfa também passou um apuro com um Boitatá certa vez, ele estava a cavalgar e precisava passar por um morro quando avistou no alto de um pinheiro uma pequena luz. Furtivamente apeou e trazendo o cavalo pelas rédeas, se aproximou tentando passar despercebido o máximo que pudesse. Não deu mais que alguns passos, a luz, pequena, começou a crescer em uma fogueira e também ia de encontro a ele quando ele tentava passar por debaixo do pinheiro. Sem outra opção, este tal conhecido teve que mudar sua rota para não ter que enfrentar o fogo dos céus. O Velho Augusto cultivava a erva-mate e bebia o chimarrão dos gaúchos, imigrante de italianos, veio com seu pai, André Depetris para o Brasil em um barco a vela, quando avistaram o porto de Paranaguá, se alegraram tanto que fizeram uma festa em alto-mar, beberam e cantaram e quando se deram conta, o vento mudara e haviam perdido de vista a terra, o deslize lhes tomou oito dias para corrigir a rota. Augusto se identificou com os hábitos do sul do Brasil. Sua mulher, Delfina de França Depetris, com quem teve oito filhos, faleceu em setembro de sessenta e um, a família para diferenciar a sogra da nora, ambas Delfinas, se acostumaram a chamar a mulher de José Depetris e mãe de meu avô de “Derfa”. Psicólogos seguidores da linha freudiana poderiam ao ler sobre essa coincidência traçar alguma pista do Complexo de Édipo em José Depetris por ter se casado com uma mulher com o mesmo nome de sua mãe, com certeza, todavia, estariam se baseando apenas em especulação antiética.
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Quando se casou, Delfina vivia com o pai, Antonio Diogo e então se separou dele para ir morar no Cadeado com a família do marido. Derfa e José repartiam muitas coincidências, além da origem, fumavam, mas José se limitava a muito de vez em quando queimar um cigarro de palha, enquanto Delfina fumava cigarros comerciais, e bastante. José gostava de bebericar uma pinga, de tempos em tempos, todavia o que lhe causou o fim foi o mesmo destino de sua mulher, o pulmão de ambos era fraco (como os meus) e a fumaça dos cigarros apenas ajudou a fazer-lhes perder a vida mais rapidamente. Porém, vamos devagar, ainda há mais que contar antes de chegarmos até o falecimento do casal Depetris, histórias como a quando o meu avô ainda era criança de colo e certa noite, quando estavam em casa somente ele, Delfina e sua prima Darcília, chamada por toda a família de “Nhá Tuca”, criada pelo Velho Augusto, elas escutaram na cozinha o barulho do cão “Guri”, que toda noite pulava a janela que não fechava direito para dormir dentro da casa.
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“_O Guri se enroscou!”
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Darcília e Delfina não tiveram tempo de ir ajudar o cachorro, de repente ouviram o Gurí subir no teto da casa, as garras que estavam a pedir ajuda na janela então começaram a arranhar as telhas raivosamente perseguindo-as pelos aposentos. Perceberam, portanto, que não podia ser o cão desengonçado que estava a lhes pregar uma peça e sim uma visagem querendo roubar a criança dos braços da mãe. Delfina, como sua mãe Emília e as vozes que sobrevoavam o sítio onde morou na infância, agarrou o filho varão e pôs-se a rezar fervorosamente acompanhada por Nhá Tuca até o que quer que fosse que estivesse atacando a cobertura da casa fosse embora. Um outro mistério ocorreu ainda quando o meu avô era pequenino, essa e outras histórias lhe foram transmitidas por sua mãe, que dessa vez ouviu o balido de um cabritinho recém-nascido, havia na época uma cabrita que estava prestes a dar cria e mesmo sendo tarde da noite, José e Delfina resolveram sair e ver se encontravam o animal. Quando se aproximavam de onde deveria estar o cabritinho, ele berrava mais longe, cruzaram uma cerca e atravessaram o pasto, nada, cada vez mais e mais distante chorava o cabrito indefeso. José, agudo da idéia, percebeu que indefeso quem estava era o seu filho, Sebastião, deixado dormindo sozinho em casa e voltou apressado com Delfina antes que fosse tarde demais. Por sorte, o responsável por criar o sortilégio não havia chegado primeiro até o berço do meu avô. Quando amanheceu, o casal voltou a procurar alguma explicação para o acontecido da noite anterior. O que encontraram os deixaram mais desconcertados e perplexos; a cabra nem havia dado cria e não havia nenhum cabrito pequeno que pudesse fazer aquele barulho em toda fazenda.
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continua...

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Confessionário - Poeta Maldito


CONFESSIONÁRIO
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Queridos, sejamos francos, estamos entre amigos
Isso tudo, absolutamente, não faz sentido
Poetas de absinto, não sabem como eu me sinto
Eu não quero ter mais que bancar esse papel, eu também penso com o pinto
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Há mais entre vocês, eu, e a realidade do que desconfia a nossa vã decência
Eu estou em decadência aos vinte anos, eu estou sofrendo quando deveria gozar
E tudo o que quero, é o seu olhar, saber que alguém me vê através das moscas
Dessas rimas, sonhos e amarguras toscas
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E tudo que eu posso te dar, são castelos de areia com vista pro mar
E tudo que eu quero, é alguém para me matar
E tudo que eu quero é descansar
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Mesmo agora, com toda essa confusão idiota
Há coisas que me fazem sorrir
Na hora da minha derrota

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

ALEXIA


ALEXIA
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A inocente menina Alexia veio dos limites do mundo, das estepes esquecidas para onde se baniam os imperdoáveis e indesejáveis da Rússia, exílio de vastidão dos inimigos políticos dos czares como Lenin e Trotsky, limbo branco, para ganhar o mar dentro de um leviatã de ferro e vapor. A casa, onde vivera seus quase oito anos, em que no inverno sua família compartilhava os aposentos com os animais e bestas para se aquecerem, jamais outra vez veria. O lar primordial se tornara um sonho etílico, uma lembrança vaga, uma ressaca de vodka. Seus pais, a avó materna e os avós e tios paternos sonhavam com uma terra menos árdua, menos gélida, selvagem, eles sentiam a onda de transformação que os bolcheviques traziam consigo e munidos de um sonho, embarcaram na promessa tupiniquim de esperança verde-amarela antes que a revolução estourasse. O navio era enorme, e se avolumava ainda mais diante dos olhos azuis de criança, para esses olhos que registraram na memória, ainda que com a licença poética da infância, a viagem transcontinental ocorrera durante meses. Apenas com o firmamento cinzento e com as águas negras para se apreciar, o tédio pode ter influenciado a lembrança. Os dias se passavam lentos, carregados pela estafa, a natureza parecia querer uma prova de que todas aquelas famílias mereciam evitar o destino sangrento da Europa que iniciava a engendrar um dos séculos mais atrozes da humanidade, para os amarelados registros oficiais históricos, esses imigrantes, tais quais os siberianos como Alexia, eram apenas eslavos. Um nome que resumia tudo o que o Brasil não conhecia, e tão pouco fazia questão, o importante era o uso que se faria deles, mão-de-obra barata para ser usada no desenvolvimento do país. Escravos modernos.
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Devagar, algo começou a perturbar a frágil calmaria da viagem, muitos começaram a passar mal, ter febre alta, tossir tanto ao ponto de sangrar, deixavam de comer, algo estava tirando o apego à vida dos imigrantes, mais do que isso, estava roubando-lhes a própria vida. A primeira morte chegou em uma semana, feridas vermelhas que descamavam anunciaram o nome da praga divina rogada por Posêidon aos mortais que singravam seus domínios tão petulantemente. Os velhos, fracos, e as crianças foram os primeiros atingidos pela epidemia, os marinheiros, sem saber o que fazer, encontraram somente uma solução, deixar todos os expostos e doentes em quarentena, nenhum porto os aceitaria se soubessem que as pessoas a bordo traziam consigo o signo da morte. Alexia não entendeu a razão de sua mãe, pai, irmãos, avós e tios terem que ficar no frio, escuro e feio porão do navio, trancafiados. Sua mãe lhe deu um terço para que rezasse enquanto estivesse sozinha, Alexia por toda a vida cumpriu essa promessa à mãe, Edwiga. Contou diariamente, ao menos uma vez o terço, aprendeu a ler e a escrever em português, sozinha, e aprendeu as orações em nosso idioma para manter o ritual. Também encaminhou os onze filhos no catolicismo, o único abrigo que encontrou nos árduos e cruéis anos em que viveu. Imersa no mais terrível tédio, as fadas da imaginação e do faz-de-conta começaram a maquinar brincadeiras para que a única imigrante poupada pela quarentena e isenta da ameaça da epidemia de sarampo, inexplicavelmente saudável e imune como Rasputin, pudesse se distrair. Alexia estava só com os marinheiros. Ela se divertia como podia, com os rolos de corda pelo convés, os transformando em castelos sitiados, lar de princesas, serpentes hipnotizantes e muito mais coisas que a minha imaginação, ou mesmo os relatos dos Irmãos Grimm, possam competir. A imaginação a salvou.
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Os dias eram feitos de fantasia e ilusão, e as noites, de solidão, imensa e profunda quais o firmamento e o mar. Foi pelas mãos calejadas dos homens-do-mar, que Alexia conheceu o vermelho sangue do fruto proibido que trouxe a perdição para a humanidade segundo os cristãos, a maçã. E como Eva, Alexia se encantou pelo fruto, por sua cor vibrante, de uma maneira inédita para ela até então. Doce. O som de algo sendo lançado contra as águas a tirou da admiração pelo novo tom que banqueteava seus olhos, eram volumes enrolados em lençóis, semelhantes a embrulhos. Alguns, também continham manchas rubras, fediam a comida estragada. Cordas prendiam e fechavam os panos, e pedras garantiam o sepultamento, provavelmente, o primeiro enterro que Alexia contemplou. O primeiro de muitos, na longa viagem. Alexia lembrou-se da maçã e todos os pensamentos que ameaçavam sua inocência se dissiparam, como uma tempestade que se desfaz contra um vento poderoso, a inquietude das crianças, que passam de uma idéia a outra, sem pestanejar, fez com que aquela pequena menina descobrisse o vermelho de Stálin, da União Soviética, dos mortos nas grandes guerras, da maneira mais singela. Bíblica. E foi com essa leveza angelical, de querubim, que Alexia correu as grades para mostrar à mãe, sua descoberta. Edwiga ninava sua irmã no colo, ela estava tão pálida, dormia profundamente a ponto de não se mexer. A mulher sorriu para a filha a salvo, todavia os olhos marejados não esconderam dela que alguma coisa estava acontecendo. Algo brutal e triste. Por todo o resto do interminável e monótono dia e a noite, Alexia passou chateada, chorosa, aborrecida. Corvos voavam em volta de sua cabecinha, torturando sua mente com coisas que não deveriam lhe dizer respeito. E na escuridão plena em alto-mar, quando a névoa surge e os ventos morrem, um choro familiar acordou Alexia. Era sua irmã, chorando, como se um lobo ou tigre branco estivesse pronto para atacar seu berço, ela, desesperada seguiu esse choro e esbarrou no capitão que movido por pesadelos tinha desistido de dormir. Ele não ouvira nada, não havia nada para ouvir. Alexia tentou esconder o que acontecera, mas foi impossível. Os olhos do capitão indagavam-na, determinados, e Alexia acabou por confessar que perseguia o choro da irmã. O capitão sabia que uma das imigrantes estava escondendo o corpo da filha, evitando que jogassem a morta ao mar. Porém, não sabia que a menina que observava seus marinheiros trabalhando era irmã da falecida e filha da mãe desesperada. Motivado por seus sonhos, e pela história de Alexia sobre o choro da irmã morta, o capitão finge não saber sobre o ocultamento. Alexia lembra-se de ver um barco a remo, levando sua irmã para ser enterrada em terra firme. Sua inocência não estava completamente arruinada ainda, ela disse para as filhas e netos que sua irmã teria sido enterrada em uma ilha deserta no mar. Quem sabe uma Ilha Pirata? Mal sabia ela, que aquilo na verdade, era o Brasil. Os navios de grande porte não podiam aportar no cais, e por essa razão desembarcavam os passageiros por meio de barcos.
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Alexia, no Brasil, se tornou Alexandrina. Edwiga, Elvira. Edwiga morreu depois de um parto, feito no meio do mato, seu marido abria estradas de ferro e levava junto sua família para os confins do interior do país. A criança morreu uma semana depois, de fome. Seu pai morreu no dia treze de março, como sua mãe profetizara. A cada ano que ele passava por essa data, o velho Luís Poss sabia que tinha mais um ano de vida. Luís prometeu a Edwiga que não se casaria novamente e manteve sua palavra, morreu viúvo. Alexandrina casou-se com João Klimek, abridor de rodovias e estradas, que fez nela onze filhos, cinco homens e seis mulheres. Um menino morreu um tempo depois de nascer, outro, aos sete anos. Alexandrina faleceu em mil novecentos e noventa e oito.
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Uma das filhas de Alexandrina se chama Ilda Klimeck Depetris, que se casou com Sebastião Depetris e teve quatro filhos, um menino que faleceu cedo, e três filhas: Marilda, Rosangela e Roseli. Rosangela, depois que se casou com Carlos César Machado, adotou um menino, sobrinho de César. Este sou eu, José Rodolfo Klimek Depetris Machado. Quando meus pais se separaram, escolhi agregar os sobrenomes da minha mãe. E agora, conto a história deles, do Klimek siberiano e dos Depetris, italiano.

Você ainda não mudou?

Há vários caminhos para se chegar a Deus.
O orgasmo é um deles...
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No orgasmo o corpo vira alma.
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http://www.mude.blogspot.com/

anApintura


Canetas de feltro sobre papel - Fevereiro 2008
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A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade.
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Carlos Drummond de Andrade
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sábado, 2 de fevereiro de 2008

Poemeto para um dia de chuva


O PASSÁRO

Passarinho assustado, se aninha no meu peito
Não é armadilha, não é gaiola, é só o meu jeito
Deixa, esquece o barulho feio do trovão

Vem, repousa no refúgio, faz de mim o seu abrigo
Descansa a cabeça, alivia o peso, confia em seu amigo
E esquece a tormenta que atormenta o seu coração

Fica perto, pra eu te contar as histórias do meu avô
Pra eu te ninar, entre os meus pêlos
Para eu te carregar em minhas mãos

Vem sonhar sonhos verdes
Quando tudo é escuridão

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

DEPETRIS Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou


Meu avô Sebastião e seu companheiro de estrada, Loir,
posando com caminhão Ford, na R. São Pedro em frente
ao estúdio de fotografia de Gustavo Jansson na década de 50
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DEPETRIS
Das Pedras à Pedra que o Rio Cavou
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Lembro-me bem disso, embora eu possua poucas lembranças da minha infância, daquelas que não foram varridas para os porões mais secretos e profundos da minh’alma, lembro-me tão vivamente como se nunca tivesse me despedido de vez desse passado. Alguma coisa em mim, alheia a minha vontade, me preservou das passagens negras da minha infância junto com o alcoolismo do meu pai e cuidou para que os raros momentos felizes dessa época não se empoeirassem jamais. Pensando melhor, acredito que essas pérolas tenham ressurgido recentemente como bálsamos para aliviar os novos passeios por entre a dor e o sofrimento inevitáveis da jornada de se viver. O tempo, claro, também pode enganar e a imaginação sempre trata de preencher as lacunas que a memória deixa abertas, o real e a ilusão se confundem e se entrelaçam.
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Nas noites tempestuosas do meu mundo perdido de criança, quando a natureza unia o que a rotina havia separado, quando a energia cessava e nos libertava da hipnose da TV que nos isolava em nossos quartos, feitos prisioneiros em celas, nos reuníamos a luz de velas, na sala onde a grande janela com grades parecia naquelas ocasiões, um quadro ameaçador de escuridão infinita, ou na copa, em volta da pesada mesa de madeira que nas sombras bruxuleantes, continha um ar estranho, como se estivéssemos em alguma casa desconhecida e antiga, para conversarmos, nos distrairmos, como os contadores de histórias ancestrais, éramos novamente uma família. Assim, quando o tempo e o espaço ganhavam novos significados, imersos nas trevas, cedo ou tarde, por insistência minha e de minha mãe, as conversas se transformavam em pedidos e então, meu avô, ao mesmo tempo interpretando o constrangimento e o contentamento de velho sábio, depois de hesitar um pouco alegando que aquela não era hora de falar sobre o assunto, nos contava suas histórias de “visagens”. Histórias que em sua maioria já conhecíamos, mas sempre nos surpreendiam cada vez que eram repetidas, graças à soberba habilidade narrativa de meu avô, que provavelmente herdou esse dom de prender a atenção enquanto fala de sua mãe, Delfina, que dizem ter sido uma mulher boa de prosa e personagem de muitas das histórias que meu avô aprendeu. De fato, esse medo do sobrenatural que meu avô, homem corajoso forjado pelo suor do esforço e da vida na boléia, ostenta, se origina de sua infância que foi repleta de casos assombrosos, sua mãe e sua avó e alguns de seus irmãos e irmãs contavam e contam com o mistério de onde estiverem, facilitarem a manifestação do inexplicável.
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A tradição oral de contar histórias começou com a avó de meu avô, Emília, imigrante ou descendente do povo germânico, não se sabe ao certo, que acabou por se embrenhar nos remotos recantos do interior do estado do Paraná, no bairro de São Francisco, município do Rocha, perto de Adrianópolis. Certa vez, quando sua filha Delfina, mãe de meu avô, Sebastião, ainda era menina, Emília cansada de ter de aturar um estranho fenômeno que insistia em ocorrer cada vez mais frequentemente nas noites escuras, de três vozes femininas conversando e rindo em língua desconhecida que passavam por cima do seu sítio, gritou enfezada bem na hora em que as vozes sobrevoavam suas terras:
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“_Já vão indo as cadela!”
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Mal terminou de falar, um grito terrível rasgou os céus e o som de alguma coisa caindo contra o chão ecoou na noite. Não muito longe do casebre simples, de chão de terra batida e paredes de madeirame tão finos que mal barravam o vento, alguma coisa se debatia raivosamente no matagal. Com medo pela segurança das filhas, afinal acreditava-se que essas megeras raptavam bebês no berço e crianças descuidadas, Emília alcançou uma foice e manteve vigília por toda a noite com sua cria grudada na barra de seu vestido, próximos do fogo, ouvindo o rugir da fera que se contorcia em seu quintal. Enfim, quando o dia amanheceu trazendo consigo a segurança da proteção do sol, Emília ousou sair de casa para investigar o que diabos teria havido. Não viu nem encontrou nada de estranho, apenas um mato remexido perto do seu paiol como se algum animal tivesse dormido e rolado por cima dele. Desde então, nunca mais as tais vozes foram ouvidas, e quanto ao local da queda da bruxa, jamais novamente medrou ali mais nenhuma planta ou erva e os animais se recusavam a se aproximar do lugar, como se sentissem que alguma coisa havia conspurcado eternamente aquele ponto. Mais do que seres mágicos atormentavam a vida difícil de Emília no sertão, em outra ocasião, um suposto cachorro estava perturbando os porcos do rancho, Emília, acreditando que se tratava de algum animal vadio, munida de um pedaço de pau afugentou a baixo de gritos e pauladas o oportunista. No dia seguinte, quando o dono do porco que pagava a Emília que o engordasse foi buscar o suíno capado, ela contou para o senhor o que havia se sucedido, ele ao examinar os grandes retalhos no toucinho, esbravejou abismado:
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"_Esse não é serviço de cachorro nenhum, mas de onça!”
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Foi a gota d’água que a fez se mudar para mais próximo da civilização, desse modo, veio Emília para a região de Ribeira, no interior do estado de São Paulo, divisa com o Paraná, aldeiazinha cercada por gigantescos montes cobertos por mata atlântica, quente qual praia e rica em cursos de águas em que o mais caudaloso e perigoso deles é o próprio ribeirão que lhe batiza, o rio Ribeira. Emília, no entanto, jamais se acostumou com os confortos da modernidade, sua origem humilde a levava a praticar atos memoráveis que marcaram a minha tia Marilda, como quando Emília dormiu na casa do meu avô, Sebastião, seu bisneto, em Ribeira e ao invés de se instalar em um quarto, preferiu estender um pano no chão da cozinha e dormir por ali mesmo. Seu quarto, quando a minha mãe Rosangela a visitou tempos depois, continha uma singela cama de palha, que ao se deitar emitia um som incômodo, mas era confortável. Junto com ela também vieram sua irmã Paulina e filho José Fisher enquanto outros irmãos se foram para Santa Catarina para nunca mais se verem. A polaca que trazia na pele a neve européia nunca se casou, limitou-se a um relacionamento informal com Antonio Ursolino Diaz, vulgarmente chamado de “Diogo” devido ao nome do pai. Antonio Diogo era um representante da negritude genuinamente brasileira, conquistador simpático que morava no Ribeirão do Canhã, Cerro Azul, perto das bandas de Ribeira. Tão carismático era o crioulo, que há quem suspeite que o filho de Paulina que era solteira, o jeitoso José Fischer, fosse dele. Antonio Diogo também tinha lá as suas extravagâncias misteriosas, embora nessa sua pequena fazenda, tivesse uma bela casa de peroba, morava em um paiol nos arredores com a família oficial e usava a bonita casa para estocar milho. Nunca se soube, ou melhor dizendo, nunca alguém teve a coragem de lhe indagar o porquê disso, infere-se que a casa não possuísse “bons ares”, por assim dizer. Ele guardava uma considerável quantia fétida pelo tempo, de mil réis em um caixote de querosene, soma que perdeu todo o valor por não ser trocada na época pelo cruzeiro por pura teimosia de Antonio Diogo em acreditar que um dia o seu dinheiro poderia perder o valor. Mas através do trabalho duro o mouro conseguiu refazer o pé-de-meia, comerciante sagaz de porcos, incansável. Emília não teve um final feliz, após sofrer um acidente em que bateu a cabeça em uma queda que lesionou seu braço prendendo-a por um longo período a cama enfraquecendo irremediavelmente sua coluna, um “derrame”, como diagnosticaram, esse acidente a prendeu a cadeira de rodas até a sua morte. A Aline, minha prima, que colheu os dados com os quais agora eu consulto para complementar esse registro literário, que sem suas preciosas anotações seria impossível levantar todas essas informações que transformo em crônicas, escreveu em seu livro de pesquisa que ela mesma conheceu a Emília quando esta estava no fim da vida; conta Aline que os cabelos de Emília haviam adquirido a coloração prateada da sabedoria dos anciões, seus pés, inutilizados por anos lhe doíam muito, as unhas machucavam a carne encravando-se nos dedos abrindo feridas pelo caminho. A dor era tanta que Emília preferia conviver com ela a permitir que alguém tocasse nos seus pés. De Antonio Diogo, não se sabe que fim levou, provavelmente faleceu mais ou menos no mesmo período. Todavia o gênio forte de Emília marcou sua filha, Delfina, de tez bem morena, alta, magra, voz rouca devido ao fumo, intrépida. A menina Delfina convivendo com os acontecimentos estranhos que rodeavam a mãe, e ouvindo as histórias da família Altimiha, da esposa de Antonio Diogo, ou como diz meu avô, o “Velho Diogo”, contou anos mais tarde para o filho, meu avô, sobre o caso do pai da esposa de Antonio Diogo, quando eles eram crianças, curiosas, que queriam porque queriam descobrir o que perturbava as galinhas do lugar onde moravam durante a semana santa. Montaram tocaia e conseguiram prender o ladrão de galinhas, um cachorrão, com vários laços, trouxeram-no perto do fogo e averiguam que se tratava não de um animal, e sim de um preto velho, nu. Completamente amedrontados, entregaram uma muda de roupa para o senhor que partiu sem dizer uma palavra. Algum tempo depois, a roupa estava de volta, pendurada na cerca. O meu avô duvida da veracidade dessa história, por se tratar de crianças, no entanto, há sempre o benefício da dúvida nesses casos.
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Quando me dispus a resgatar o passado desse lado de minha família, que sobreviveu através do meu avô e suas histórias insólitas, em novas conversas que não necessitavam mais da intervenção da chuva e da incompetência da agência de energia elétrica para acontecerem, minha avó Ilda, esposa de Sebastião, minha mãe Rosangela e minhas tias, Marilda e Roseli regozijavam-se pela oportunidade de alimentar a nostalgia, igualmente como eu o faço ao me lembrar das primeiras vezes que ouvi essas histórias. Todos, em maior ou em menor grau, sejam ajudando a me fazer compreender uma era cuja qual eu não pertenci, ou passando o café que me dá a força que necessito para escrever, merecem ser agradecidos. Desculpem-me se não citar o nome de todos vocês.
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Continua...
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Essa é a primeira parte de uma coleção de histórias que estou fazendo sobre o meu avô materno, Sebastião, aqui se encerra a primeira parte, que fala sobre Emília, a avó de meu avô. A minha intenção não é provar a autenticidade das histórias, mas registrá-las, tentando ao máximo fazer justiça a como o meu avô me conta tudo isso. Ouví-lo contar todos esses causos é muito melhor do que ler, porém, para quem não pode ter essa oportunidade, essa é a minha forma de eternizar a história da minha família, e a minha. Espero que gostem.