sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O Sal da Terra


A minha cidade é um fracasso que vem sendo travestida de personagem. Mas querem que ela seja santa, musa, eu a quero como ela é: uma meretriz em um cabaré. Amaldiçoada como conta sua origem, inútil, indecisa, perdida, mata virgem e puta desgraçada. Violenta e vagabunda, cemitério de elefantes e maternidade de viciados, playground de exilados saudosos e felizes por não se misturar. Paraíso de férias, tédio diário, terra prometida. Sodoma, Babel e Gomorra em uma só. Aqui não existe gente, há platéia que assiste a própria vida desfilar, sem graça, se arrastando, sem saber o que fazer e sem coragem pra morrer. Ultrajante e que nos insulta com o seu coração pulsando e cheio de esperança. Sonho prostituído e ainda assim, belo e idiota como só as utopias mais doces e poéticas podem ser. Uma piada, rimos e mostramos as nossas bocas desdentadas, podres e fétidas para a vida. Muitos são pobres, os ignorantes são felizes, poucos fazem alguma coisa, e desses quase nenhum vale merda nenhuma.
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Toda segunda tem circo na câmara, uma vez por ano temos o nosso carnaval de caubóis, de quatro em quatro anos acreditamos em nós mesmos e somos os nossos piores inimigos há mais de cem anos. Coisa que não deveria ter sobrevivido, aborto falido, orfão de São Paulo, sentinela cega que logo não terá nada para guardar. Isso é onde eu moro, assim é minha cidade, Itararé. Bem-vindo aos olhos de um filho da terra.

sábado, 17 de outubro de 2009

HILDA HILST

DO DESEJO
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Quem és? Perguntei ao desejo.
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.
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I
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Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.
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II
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Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de máscaras.
Que desenhos e rictus na tua cara
Como os frisos veementes dos tapetes antigos.
Que sombrio te tornas se repito
O sinuoso caminho que persigo: um desejo
E que escura me faço se abocanhas de mim
Agonias de grandes espessuras, embaçadas luas
Facas, tempestade. Ver-te. Tocar-te.
Cordura.
Crueldade.
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III
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Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosses nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.
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IV
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Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer? E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vêm sofomanias, adornos
Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?
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V
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Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quanto tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Este da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Saber por quê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.
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VI
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Aquele Outro não via minha muita amplidão.
Nada LHE bastava. Nem ígneas cantigas.
E agora vã, te pareço soberba, magnífica
E fodes como quem morre a última conquista
E ardes como desejei arder de santidade.
(E há luz na tua carne e tu palpitas.)
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Ah, por que me vejo vasta e inflexível
Desejando um desejo vizinhante
De uma Fome irada e obsessiva?
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VII
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Lembra-te que há um querer doloroso
E de fastio a que chamam de amor.
E outro de tulipas e de espelhos
Licencioso, indigno, a que chamam desejo.
Não caminhar um descaminho, um arrastar-se
Em direção aos ventos, aos açoites
E um único extraordinário turbilhão.
Por que me queres sempre nos espelhos
Naquele descaminhar, no pó dos impossíveis
Se só me quero viva nas tuas veias?
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VIII
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Se te ausentas há paredes em mim.
Friez de ruas duras
E um desvanecimento trêmulo de avencas.
Então me amas? te pões a perguntar.
E eu repito que há paredes, friez
Há molimentos, e nem por isso há chama.
DESEJO é um Todo lustroso de carícias
Uma boca sem forma, um Caracol de Fogo.
DESEJO é uma palavra com a vivez do sangue
E outra com a ferocidade de Um só Amante.
DESEJO é Outro. Voragem que me habita.
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IX
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E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubilta-te da memória de coitos e de acerto.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
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X
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Pulsas como se fossem de carne as borboletas.
E o que vem a ser isso? perguntas.
Digo que assim há de começar o meu poema.
Então te queixas que nunca estou contigo
Que de improviso lanço versos no ar
Ou falo de pinheiros escoceses, aqueles
que apetecia a Talleyrand cuidar.
Ou ainda quando grito ou desfaleço
Adivinhas sorrisos, códigos, conluios
Dizes que os devo ter nos meus avessos.

Pois pode ser.
Para pensar o Outro, eu deliro ou versejo.
Pensá-LO é gozo. Então não sabes? INCORPÓREO É O DESEJO.
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Os dez primeiros poemas do livro que ganhei de presente de aniversário da minha mulher. Fiquei tão apaixonado que resolvi compartilhar aqui um pouco dessa leitura deliciosa. Hilda Hilst é a minha mais nova descoberta, o combustível novo que alimenta o meu desejo por ela - a fonte inesgotável do meu prazer. Você, a quem devoro como lava, e sopro, como o vento o pó. Você é o meu maior presente.