sexta-feira, 3 de julho de 2015

Herança


 É estranho reconhecer que com o tempo, o porto de onde você partiu e de onde você encarava o mar de possibilidades do futuro acaba se tornando apenas um farol distante que te atrai te fazendo olhar para trás. Fitar para aquele brilho eterno longínquo na escuridão como uma estrela morta que ainda tem sua luz visível.
  O futuro se torna cada vez mais um terreno estéril enquanto o passado guarda a memória das sementes não plantadas que continham o potencial de germinar todos os sonhos. E começamos a regar mais as memórias do que a nossa esperança. A receita do cinismo cria um gosto amargo na boca, impossível de se evitar, como o gosto de bílis da primeira ressaca. Como o queimar dos pulmões do primeiro trago.
  Entretanto agora nada mais parece novidade, você criou resistência ao álcool, seus dentes amarelaram e o paladar se foi. Você vai se tornando mais insensível, mais previsível, mais fraco e suscetível a se perder completamente. Vagando como um nômade, como um rato de laboratório em uma roda, preso nos cacos dos vitrais quebrados das memórias. Vivendo nas ruínas de seu castelo mágico, como um fantasma, habitando uma casca que lentamente se deteriora. Você não mais vive, apenas assiste e sobrevive os dias, as horas, se passarem arrastando em sua frente até o momento de finalmente ir embora.
  Queria que as coisas tivessem sido diferentes. A culpa é tóxica, inútil, um veneno que mata. Não há mais como voltar atrás, desfazer, refazer, refletir. Queria te dizer que mesmo assim, apesar de compreender hoje os seus erros e jamais ser capaz de aceitá-los, sei que você merecia mais do que teve, mais do que tem. Se eu pudesse, também teria me esforçado mais, mas dói ainda e talvez para sempre pensar em tudo que passou e por isso tenho que me afastar e desejar o melhor enquanto você toma chuva e passa frio.
  Eu, mesmo abrigado me sinto perdido, nenhum filho deveria viver assim com seu pai, nenhum pai deveria viver assim com seu filho. Por isso tento me lembrar das minhas melhores lembranças da triste época de infância e é inevitável: toda vez que olho para uma foto do Chico, vejo um pouco do sonho do homem perdido. E lágrimas me vêm aos olhos com um sorriso.