quarta-feira, 18 de abril de 2012

Satisfação


Primeiro foram os mosquitos. Seres abjetos que infestavam sua casa a cada refeição e a cada fornada de bolo. Descobriu então um veneno maravilhoso que misturado ao açúcar acabava com a praga. Eles eram atraídos pelo açúcar e tinham uma doce morte. Ela assistia pelas tardes os vôos rasantes e os espasmos das perninhas intoxicadas agonizando lentamente.
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Depois vieram as formigas, ligeiras operárias do asco que percorriam em silêncio, furtando e saqueando as migalhas do chão. Para elas a mesma solução. Doce morte. Porém não havia o prazer de ver seu sofrimento, elas levavam o açúcar até o recôndito de seu império e envenenavam sua rainha.
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Vencidos os inimigos que aplacavam seu tédio, a viúva começou a procurar outros até que encontrou um bom desafio. A árvore do vizinho ao lado. Ela jamais gostara daquela árvore que atrapalhava a passagem e tinha um galho baixo que acertava a cabeça dos desavisados. Fora suas folhas que caíam o ano inteiro se amontoando em sua calçada.
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Pensou cuidadosamente e decidiu como um relógio, todos os dias, de manhã e de tarde, regar a bela árvore. Era bonito de ver, todos acham que ela estava a cuidar da última árvore da rua. Entretanto ela estava mesmo era a regar uma morte líquida nas raízes da planta. Inclusive, quando ninguém a via, ela fazia cortes no tronco para a madeira absorver através das feridas o veneno em seu interior.
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Demorou meses, quase um ano. Mas ao fim, em uma chuva forte, a árvore foi derrubada destruindo o carro do vizinho no processo. Sua alegria fora imensa e ela já não sabia como parar. Sua necessidade aumentava. Ninguém jamais desconfiou ou descobriu seus atos.
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Pôs a mesma água da árvore para os passarinhos beberem e os assistia como as moscas de antes, eles se debaterem em seu quintal e ria como uma criança queimando insetos com uma lupa. Tudo isso contudo, não a satisfazia de todo, faltava algo mais.
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Em uma bela tarde de domingo no parque ela estava a jogar pipoca com a morte doce para os pombos, observando como os jovens se assemelhavam às pestes que ela exterminava. Como a vida deixara através dos anos de fazer sentido e como o mundo havia se tornado alienígena e imbecil.
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Perdida em seus próprios pensamentos não notou umas criancinhas vindo ao seu encontro, atraídas pela pipoca tão displicentemente doada aos pássaros. Eles, com o brilho nos olhos que só os inocentes possuem, claro, pediram um pouco.
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Com um sorriso diabólico a senhora entregou para cada um, um bocado de pipoca. Eles festejaram e engoliram rapidamente aquele primeiro bocado, a velha bruxa, ardilosa, cedeu mais e eles saíram de perto.
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De longe ela assistiu os meninos comerem e brincarem. Aos poucos eles foram parando, cansados, com dificuldade para respirar. Depois, desesperados pela asfixia, tremiam. As pessoas começaram a se aproximar para ver o que acontecia enquanto os meninos espumavam pela boca.
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Todavia o melhor foram os gritos de terror dos curiosos ao ver que eles haviam parado de respirar. Nunca a viúva tinha se sentido tão feliz em sua vida, nem mesmo nos braços do seu saudoso amor.
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Pela primeira vez em anos ela voltou para casa cantarolando como fazia quando moça. Passou o resto da noite ouvindo os velhos discos de bolero dos bailes de antigamente. Feliz, satisfeita.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Sudário


Sinto- me como um médium
A dor, o sangue derramado
Choro por feridas em mim jamais provocadas
Um mártir coberto de estigmas
No deserto em meio ao nada

Vejo cego a morte
Sinto com uma sensibilidade dolorosa
A paixão rasgar o peito e odiosa
Instalar, incubar ovos e larvas
Na alma que se acostumava
A ser mal-tratada

Escravo assisto a chibata
Lamber a pele, beijar a carne
E sem querer sorrio ao sentir apenas
Porque parece-me que em um mundo
De estátuas, no jardim do Éden
Fui escolhido para saborear a última lágrima

E eis que a dor se torna uma benção
E me encho de raiva

Um cínico modesto


Sou escuridão e mágoa, medo, fraqueza, desespero e lástima
Me envolvo na lama e me cubro de sujeira, me escondo na última trincheira
Do abismo, eu vi no olho do obelisco o meu signo
De má sorte, de azar, de dor
Porque tudo vira poeira, tudo vira pó
Minhas mãos tocam as ruínas e estou sempre só
Abraço minha sombra, estou contra
A vida, a vida, a vida que não me traz
Nada de bom, nenhuma paz
Me contorço e me deixo levar
Pela esperança de me entregar
Em me tornar aquilo que detesto
Um cínico modesto.