domingo, 23 de junho de 2024

ALEXANDRINA - A Grande - Parte II

 


A viagem transcontinental ocorrera durante meses. Os dias se passavam lentos, minutos se transformavam em horas e dias em séculos. Logo a sensação da jovem era estar vivendo uma eternidade presa em uma dimensão paralela feita de ar e água e esta impressão se estabeleceu em seu estado de espírito. Sentia-se como na Arca de Noé imaginando que o mundo todo havia sido engolido pelas águas e que talvez, desta vez, não tivesse sobrado mais nenhuma terra e eles ficariam ali presos até morrer. Apenas com o céu cinzento sobre sua cabeça e o mar escuro ao seu redor a imaginação da menina influenciada pela criação profundamente cristã voava solta e alcançava lugares sombrios. E provou-se de certo modo assustadoramente profética; um dom tão inexplicável quanto o que sua mãe também manifestaria logo mais.

Embora não houvesse de fato um dilúvio este seria o século mais atroz da humanidade e ninguém poderia prever ou sonhar com os horrores que ele geraria. As guerras em proporções globais, o holocausto em escala industrial, as armas de destruição em massa que ameaçam a vida como conhecemos são alguns dos maiores exemplos dos pesadelos hediondos que estes últimos cem anos trouxeram. Somente o ideal de lutar pelo bem comum do ser humano garantiu que no momento mais sombrio não sucumbíssemos ao ódio e assim graças à luta em comum dos trabalhadores o nazismo foi derrotado tornando a menina e o seu povo heróis não reconhecidos da humanidade. Ironicamente seria com este epíteto - heroína da humanidade - que ela seria batizada ao chegar ao Brasil. Mesmo considerada uma traidora da nação por sua pátria-mãe por fugir e vista apenas como mais uma imigrante desesperada que seria explorada à exaustão por aqueles que a aguardavam ao desembarcar, ela venceria tudo e cravaria suas raízes fundo na nossa terra até enfim nela ser enterrada.

Nos registros brasileiros todos esses imigrantes do leste europeu foram catalogados apenas como “eslavos”. Um nome que resumia tudo o que o Brasil não conhecia e tão pouco fazia questão. Apagar as nacionalidades dos imigrantes ao rotulá-los da mesma forma facilitava segundo a lógica irracional da época o processo de imigração ao forçar os imigrantes a abandonarem seu passado para abraçarem a sua nova vida, como se fosse preciso forçar alguém que renunciou a tudo para se integrar a um novo lugar.

Então não apenas destituímos os imigrantes de suas identidades como também os recriamos à nossa imagem e semelhança ao reescrevermos seus nomes e sobrenomes com a justificativa que seria mais fácil para os brasileiros pronunciarem os termos estrangeiros. A recém república que nunca superou a colonização realizava o sonho doentio de deixar de ser oprimido para se tornar o opressor alimentando o ciclo vicioso de violência.

Por isso a nossa protagonista recebeu o nome de “Alexandrina” (nome de origem grega que significa “defensora da humanidade”). Nunca saberemos seu nome verdadeiro. Só podemos cogitar qual seria, pois, ao rebatizá-la lhe comunicaram que o novo nome se parecia o suficiente com o original e seria melhor para ela agora que era brasileira.

Apesar de todas as tentativas de apagar um povo a coragem prevalece. Alexandrina escondeu dentro de si seus tesouros de além-mar onde ninguém poderia saquear seu legado. E é graças à sua força de vontade e tenacidade de espírito que estou aqui para registrar esta história singularmente épica.


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