sábado, 27 de setembro de 2008

Sozinho no Escuro


SOZINHO NO ESCURO
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Ele estava distraído, assistindo através da mortalha o agonizar dela. Mesmo à beira da passagem, ela era tão bela, ele, no entanto podia ver a marca da morte em seu rosto, o sinal inclemente maculando-a. Ela não resistiria, não havia nada que pudesse fazer. Contudo, o que o perturbava era a ausência de medo, sua paz, ela não possuía nada que a prendesse, como ele a possuía. Pois ele sabia, estava agrilhoado naquela existência negra por causa dela, era ela o que o mantinha longe da destruição. Ou de ser salvo. Se ela partisse, livre, fosse para ser engolida pelo vácuo, fosse para atravessá-lo e encontrar a verdade que ele temia, ele sabia que não sobreviveria sem seu grilhão para protegê-lo de si mesmo. Estava exausto, usara toda sua força para adentrar a carne de sua amada e espiar seus pensamentos, ver e sentir sua alma. Talvez tenha sido isso, seu cansaço, as grades que o protegiam de sua sombra, de seu semelhante das trevas estavam fragilizadas. Seu descuido custaria caro.

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Não percebeu as rachaduras se transformarem em veias negras, pulsando entropia, aumentando de ritmo e se tornando maiores, tomando as paredes. Um coração vazio seguia ao ritmo da rebentação do mar de atormentados. A sua sombra interior conjurou a nulidade para arrebatá-lo em seu momento de fraqueza. Ela aprendera que a sutilidade era melhor do que a luta, para vencê-lo deveria enganá-lo, aproveitar seus vícios e desespero. Ninguém conhece melhor do que a sombra de cada um o meio mais eficaz de se atingir as feridas mais profundas.

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Os cantos do quarto eram aberturas para o abismo que ecoava ainda distante o som do flagelo dos que orbitam o Limbo. Sua mente estava ocupada chorando pela perda que se seguiria e por seu destino incerto. Ver a aceitação e o cumprimento do destino de sua mulher o fazia refletir sobre sua própria negação e covardia. Estava envergonhado por sua miséria, era fácil descobrir o que estava além do mundo cinzento de pesadelo que ele habitava por escolha própria. Só precisava se jogar contra o núcleo negro da Tempestade. Submeter-se ao julgamento incompreensível da transcendência era um caminho sem volta, para qualquer lugar que seu tormento o levasse ele nunca mais poderia tê-la.

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Sempre acreditou que quando chegasse a hora dela, quando finalmente ela estivesse pronta, eles iriam se reencontrar e a ferida que o corroia desapareceria. A ilusão estava se desfazendo e com ela, ele próprio. Não havia mais razão para lutar, ele não a veria mais, e sem ela, não existia mais nenhum motivo para permanecer naquele reino intermediário de dor e anestesia auto-infligida. Tanto tempo perdido vigiando e planejando um futuro impossível, se enganando e mentindo. Repetindo até ficar surdo de que tudo acabaria bem. Das janelas, na distância, rostos e braços agitados se arrastavam esfomeados para despedaçá-lo, mais e mais se aproximavam sem que ele se desse conta. Trovões explodiam ao redor, se ele não gostasse tanto do som de sua voz e de sentir pena de si mesmo, ele poderia ouvir a marcha da maré crescendo para buscá-lo. E o riso maligno e sombrio da sua parte mais obscura, antecipando o fim que tanto almejava.

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Ela expiava depressa, o coração batia suave, a respiração era uma brisa praticamente imperceptível. Os olhos perdiam o brilho de vida e se tornavam vítreos e opacos. Seria a qualquer momento. Todo trabalho em vão, o arrependimento era tão insuportável que ele teve que se entreter com alguma outra coisa e foi então que ele percebeu a armadilha em que estava. As janelas mostravam as entranhas do Limbo, garras e dentes se esticavam dos cantos e buracos das paredes para agarrá-lo, uma legião de monstros que só os mais insanos podem vislumbrar estava pronta para fazer dele mais um dos que desistem. Eles o queriam para alimentar o nada.

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Investiu contra a onda de corpos que começava a ser vomitada pelas paredes para dentro do quarto, mas de nada adiantava. Eram muitos, machucá-los só os deixava mais irritados e ansiosos por devorá-lo. Olhou uma última vez para o rosto da única pessoa que ele teria vendido a alma para ter consigo, viu que ela não estava mais tão calma como antes, e percebeu que se ela viesse para o mundo dos mortos seria tragada assim como ele para a destruição. Ele não poderia permitir isso, ela precisava de uma chance, ela era mais forte do que ele. Quem sabe ela fosse capaz de desvendar seus mistérios interiores para alcançar as praias distantes de que todos somente ouviram falar. Aquele oceano de terror não iria embora sem arrastar algo junto, ele de braços abertos se entregou para o redemoinho sem enfrentá-lo. Era seu fim e ele o aceitava, toda dor e abandono estavam esquecidos e aceitos, já não importavam mais.

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Sua travessia para fora da estagnação se iniciou com o seu primeiro ato de coragem, ele precisou viver e morrer para poder tomar essa decisão. No momento em que os tentáculos o carregavam ela acordou sozinha no quarto cinzento. Sua jornada acabava de começar e ela teria que percorrê-la sozinha pelo vale das sombras. Todos nascem sozinhos, todos morrem sozinhos. Temos somente nossa sombra como companhia eterna.

Um comentário:

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Eu (re)li nesse texto a chegada de Nina ao inferno... Deu saudade daqueles textos...