quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O JARDINEIRO (Capítulo Um)

O JARDINEIRO


(Capítulo Um)


Caim


Me lembro aos dez anos, mais ou menos, de ver meu pai sair de casa bem cedo. Sempre que o via pegar o rifle e o facão, mesmo correndo risco de apanhar, pedia para ir junto. Não era sua companhia que desejava, as armas era o que me atraía. (...) Minha vida se resumia em passar os dias ajudando minha mãe com os afazeres e a leitura dos livros mofados do nosso porão, minha única distração. (...) Foi com ela que aprendi a cuidar do jardim, a quebrar o pescoço das galinhas e a furar os porcos para fazê-los sangrar rapidamente. Nessa última lição, demorei a me aprimorar, por alguma razão me divertia errar e vê-los se debatendo e gritando esvaindo-se em sangue. (...) Um pouco depois, não me lembro bem, meu pai farto dos meus pedidos e mais bêbado do que o de costume me deu um canivete e um vira-lata pra que cuidasse. Somente eu seria o responsável pelo cachorro, sua vida estava em minhas mãos. Quando o cachorro estivesse grande e forte, eu poderia acompanhá-lo.

Cuidei do cachorro o melhor que pude. Minha mãe não gostava de tê-lo por perto e meu pai sempre o chutava quando passava por ele. Em pouco tempo o cachorro estava enorme, forte. Sempre tentava me defender quando meu pai avançava sobre mim, o que o deixava furioso. Esse cão foi o mais próximo de um amigo que tive e eu sabia que logo meu pai teria de cumprir sua promessa. Algo, no entanto, estava errado. Seu olhar malicioso deixava transparecer seus pensamentos obscuros. E em uma manhã, com poucas palavras ele me chamou. Fomos os três, ele eu e o cão. Deixou claro pra não esquecer o canivete. Ameaçador resmungou que era bom que eu tivesse tomado conta tão bem do canivete como tinha tomado do cachorro, pro meu próprio bem, finalizou.

Caminhamos por um bom tempo até um lugar longe o suficiente para ninguém nos ouvir. Era uma clareira grande com um tronco no meio. Meu pai então me pediu com uma voz perversa, de quem aguardava há muito tempo por aquele momento, que eu amarrasse o cachorro ao tronco. Enquanto eu fazia isso ele começou a explicar que para aprender a caçar era preciso antes aprender a ser forte. Entender o que significava tirar uma vida. Ele havia preparado um ritual para matar o pouco da inocência que sobrevivera em mim, queria que eu me tornasse como ele. (...) Passei a tarde inteira enfrentando aquele que foi o único que me fizera sentir amado. A cada mordida e a cada golpe de canivete, gemidos e ganidos desesperados escapavam de nós. Só com o canivete eu o enfrentei, ele me amava, mas sabia que tinha que se defender porque eu iria matá-lo. E eu sabia que se não conseguisse vencer, meu pai não iria me salvar dos dentes que procuravam rasgar minha garganta. (...) Não sei quantas horas ficamos ali, eu, todo machucado, o cortava cada vez que ele se aproximava. Tentei fugir, mas meu pai me puxou de volta, gritando que se não matasse o cachorro, ele me mataria.

Finalmente tudo terminou quando enterrei o canivete em sua garganta. O abracei forte para não deixá-lo fugir e em silêncio, enquanto ele se debatia e seu coração pulsava cada vez mais fraco, me despedi. Meu pai orgulhoso das minhas feridas me obrigou a cavar com as mãos, no escuro, uma cova para minha primeira presa. Para dificultar ainda mais, uma chuva desabou sobre nós misturando o sangue à sujeira. A tempestade disfarçou minhas lágrimas. (...) Voltamos tarde da noite, minha mãe se assustou ao me ver todo ferido, sujo e tremendo de frio, porém não questionou meu pai. Estava exausto, ferido, triste, mas era enfim um homem. Sabia o que significava tirar uma vida e estava pronto para caçar.


***

Chegou ao quarto primeiro e certificou-se que o paisagista havia caprichado na decoração. A despedida tinha de ser especial, como nos filmes: vinho, música e pétalas vermelhas – e assim seria. Tomou seu banho, avisou que esperava companhia e aguardou ouvindo Every Time We Say Goodbye por John Coltrane. Uns vinte minutos depois o aviso que a acompanhante subia. Abriu a porta, colocou-a contra a parede e arrancou a toalha. Ela estava linda, vestia um casaco sobre um vestido curto e uma peruca para completar o disfarce, estava sem calcinha.

Berenice adorava provocar, ainda mais quando Allan lhe perguntava se ela gemia com Edgar como fazia com ele. Ela respondia sorrindo que Edgar não sabia tocá-la e que desde o princípio fantasiava em ser currada pelo irmão do seu namorado que diziam levar as mulheres à loucura.

Allan insultava o irmão e Berenice o noivo, excitava-lhes a sensação de sentirem-se perversos e devassos. Gozaram gritando e se mordendo como animais.

Saciados os corpos, a inadiável conversa sobre o casamento iminente começou regada a vinho tinto. Berenice iria se casar com Edgar, irmão de Allan. Ela cogitou por um segundo contar a Allan sobre o exame, mas a sua calma em se despedir a fez hesitar. Ela seria só de seu marido depois do casamento e Allan queria mesmo que Edgar fosse feliz, fora bom enquanto durou, porém havia outras mulheres no mundo esperando por ele. Adormeceram, tinham que repor as forças para ter prazer uma última vez.

Não teve certeza sobre o que o despertou, não havia música, tudo estava quieto e calmo. Sentiu algo úmido e quente sobre suas mãos e seu corpo, agradável. Ao revirar o lençol, encontrou entre pétalas vermelhas, Berenice degolada e a cama encharcada de sangue. Seu coração pulsava rápido e a cabeça doía com uma ressaca absurda, muito embora tivesse tomado apenas uma ou duas taças de vinho. Lavou-se rapidamente e vestiu-se apressado, deixou o quarto e correu para o estacionamento. No carro ligou o rádio que tocava a versão de Marilyn Manson de Sweet Dreams quando as lágrimas rolaram sobre seu rosto. Encostou-se no volante e se deixou levar pelo desespero, ao se inclinar para trás para retomar o fôlego, uma sombra o agarrou colocando algo sobre seu rosto. Não conseguiu ver pelo espelho nada mais que um vulto de um homem, contudo as palavras em tom sarcástico sussurradas em seu ouvido continuaram ecoando enquanto perdia a consciência.


_Boa noite, Cinderela...


Fora trazido de volta à lucidez por um jato de água fria. Estava nu e vendado, com os pulsos presos por correntes o forçando a ficar em pé. Allan entrou em pânico e começou a gritar sem parar quando um bastão brilhante estalando tocou seu peito. Seus dentes quase trincaram ao se cerrar tentando vencer os músculos das convulsões.

O cheiro de carne queimada provocou-lhe ânsia, mas não havia nada para vomitar a não ser uma saliva negra cheirando a vinho com gosto de bílis. Seu corpo estava em estado de choque. Sem controle, sentiu a urina correr pelas pernas.


_Silêncio! – Allan reconheceu a voz que ecoara em seus pesadelos, mesmo o sarcasmo sendo substituído por uma ordem.


_Muito bem, assim é melhor. – Allan tremia involuntariamente e embora tentasse falar, não podia. Sua garganta estava dolorida e sentia a boca anestesiada. Ouviu algo ser arrastado até sua frente, então o som de algo sendo ligado. Percebeu que o homem estava atrás de si e de repente o nó de sua venda fora desfeito. Seus olhos demoraram a se acostumar com a iluminação precária. Em sua frente estava uma mesa com rodas e sobre ela uma tv com um videocassete embutido.


_Quietinho... Ele ligou a tv com o controle e permaneceu vigiando para que Allan não desviasse os olhos da tela.


“_E agora mais surpreendentes notícias sobre o assassinato de Berenice.” – As imagens eram de um noticiário local mostrando fotos de Berenice e Edgar acompanhadas de uma narrativa sobre a vida de ambos e a dramatização de como Allan, irmão de Edgar teria engravidado Berenice e a assassinado cruelmente. Para fechar a matéria uma curta cena de Edgar tentando fugir dos repórteres e sua resposta furiosa quando perguntado sobre sua opinião a respeito da inocência de seu irmão.


“_Ele me traiu com aquela vagabunda e fez um filho nela. Não me importa se ele a matou, eu mesmo teria dado cabo dela se pudesse! Tudo que quero agora é ver aquele desgraçado morto.”


Os olhos de Allan se encheram de lágrimas, não conseguia acreditar no que acabara de assistir. Começou a repetir consigo mesmo que não podia ser verdade. Então o homem, antes de partir murmurou em seu ouvido:


_Agora preciso ir Allan, vou ver se o quão sério o seu irmão falou sobre você. Sabe, casos de família sempre me comovem... – Terminou de falar e não conteve uma risada sarcástica.

A tv saiu do ar e depois acabou desligando-se sozinha.

Não há como saber quanto tempo Allan permaneceu definhando no escuro com fome e sede. Por isso demorou a perceber a visita. Seu irmão trazia uma cadeira, sentou-se em sua frente e começou a falar. Seus olhos estavam em lágrimas, contudo sua voz era fria. Ele falou sobre a juventude de ambos, e de como sempre ele, Edgar, ajudou e protegeu seu irmão mais novo e o perdoou todas as vezes que ele o prejudicou. Eles nunca conheceram seu pai e sua mãe morreu após o parto de Allan, os irmãos cresceram em reformatórios e tiveram uma infância violenta. Entretanto Edgar conseguiu uma vida, estudar, um bom emprego e a mulher dos seus sonhos. Allan vivia para enfrentar para testar limites, sonhava grande e vivia uma vida medíocre. Depois dos últimos acontecimentos algo dentro de Edgar havia se transformado, a esperança e a bondade que sempre resistiram nele havia ruído com a traição de seu irmão. Contudo, não sabia se teria coragem para fazer o que tinha de fazer.

Viu uma segunda fita sobre a mesa e colocou para rodar. Allan não se calava tentando pedir perdão ao irmão, mas ao ver as imagens dele currando Berenice e perguntando a ela se ela gemia com ele como estava gemendo naquele instante o fizeram se calar. Edgar pegou uma caixa na parte debaixo da mesa e sorriu ao ver as facas. Allan não disse mais nada, sabia que merecia sofrer.

Rogou por misericórdia, pediu perdão, chorou e por fim, quando se deu conta que perderia sua vida, mostrou sua verdadeira face contando a seu irmão tudo que fizera com sua noiva e de como ela gostava e pedia sempre por mais. Edgar ouviu paciente e se despediu de sua humanidade a cada pedaço que arrancou do corpo de Allan. No fim, estava sorrindo e feliz com o bem que o mal lhe fizera.


Mais uma alma semeada no Jardim.


***

Esperei até a baixa estação, não queria correr risco de encontrar alguém. Lembro que fazia muito frio, as folhas úmidas de orvalho calavam nossos passos. Passamos o dia seguindo rastros, checando armadilhas. Conseguimos muito pouco, as trilhas se desfaziam com facilidade. O humor do meu pai após a morte de minha mãe tinha ficado pior, insuportável. Então a alça do rifle arrebentou e ele foi obrigado a me dar a arma já que precisava das mãos livres para abrir a mata com o facão. Isso o deixou no limite, ele nunca me deixava carregar o rifle, não confiava em mim.

Então meu pai encontrou algumas pegadas frescas na lama. Aguardamos em silêncio até que de trás de um arbusto surgiu a nossa presa. Era uma fêmea de cervo com um filhote morto ainda preso nela. Seu sofrimento era tão belo, como de minha mãe. Devagar, engatilhei o rifle. Ao ouvir o barulho da arma, meu pai desesperado pediu para eu baixar a arma. Ele entrou na minha mira e o animal aproveitou para fugir. Meu dedo coçava no gatilho, seria tão fácil, a tentação era enorme. Não podia ser assim, simples. Baixei a arma, aquele imprevisto me fez lembrar de uma citação de Samuel Butler: "A vida vale a pena? Isso não é pergunta que se faça a um homem, mas a um embrião." – e como por encantamento, estas palavras deram novo ânimo a meu pai, para minha sorte.

Decidimos dar o dia por encerrado e eu o convenci a pegar um atalho para voltarmos quando de repente o chão se abriu debaixo de seus pés e ele caiu em um fosso. Aquele cervo havia deixado meu pai distraído, mesmo com a camuflagem, não podia garantir que ele não perceberia a armadilha. (...) Enfim, na cova rasa com as estacas transpassando seu corpo meu pai me fitou com aqueles olhos de espanto que sempre vou lembrar e eu, mirando em sua testa, puxei o gatilho.

3 comentários:

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Acho que esse ficou mais cruel que o primeiro... Li com o rosto franzido e tenso...
E as outras partes? Fiquei curiosa...

Caolho disse...

Pois é, só faltou o Edgar ter um caso com a Ligéia e depois fazerem um swing no final e todo mundo cair no Oba Oba.

Gostei muito da primeira parte Zé, a relação entre pai e filho me lembrou um pouco vidas secas, quando o filho deveria adotar a ombridade do pai, como único meio de ser homem (mas no teu caso, longe de uma mera necessidade parece existir até mesmo um fetiche pelo pai querer que seu filho seja assim)Mas será que este personagem não passaria por reviravoltas, vivendo numa contraditória sombra dos valores de seu pai?

Aguardo a segunda parte.

sel disse...

ola caro amigo,qto tempo heim...voltando a ler-te...na realidade nunca te abandono,só fico meio fora do ar,sem tempo...o jardineiro,pois é conheço esta obra desde o principio...muito bom mesmo!!!hehehe...hehe!bjos é oooooootimo estar aqui!