quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Gênesis


No começo existia somente a dor, excruciante, como se sua alma tivesse sido partida ao meio. Devagar ele foi reconhecendo o mundo a sua volta. A sensação da grama úmida sob a pele, a brisa arrepiando os pelos e fazendo seu corpo tremer.
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Seus olhos arderam ao abrir-se pela primeira vez e assim que pararam de queimar ele contemplou o céu negro sobre si e ao levantar-se o homem descobriu-se em um campo aberto, sozinho. Sem lembrança alguma até aquele momento, fraco e confuso começou a caminhar em busca de abrigo. Então clarões rasgaram o firmamento revelando na distância um vulto e logo depois seguiu-se um rugido e tudo fez-se novamente trevas.
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Fora só um relance, o suficiente no entanto para Adão ver a forma daquele ser que lembrava a sua própria. Contudo, mais suave, menor e mais delicada. Com curvas sutis e não com a dureza de suas linhas. Os cabelos longos esvoaçavam ao sabor do vento e ela caminhava tão perdida quanto ele. Novamente aquela dor terrível retornou e o fez cair por terra gritando. Só então sua mão descobriu a enorme cicatriz embaixo de seu braço esquerdo. A última coisa que seus olhos viram antes de ser engolido novamente pela escuridão foi o rosto de Eva.
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Perdidos naquele mundo homem e mulher se descobriram e se amaram tendo a natureza para lhes ensinar. Viviam para se alimentarem e fornicar, como animais, ignorantes de tudo. Eva era serva de Adão e ele a dominava como o predador governa sua presa. A existência era perfeita, até a inocência começar a ouvir sussuros vindos de dentro da noite. Sonhos com outros gostos por coisas estranhas que eles não sabiam como descrever ao acordar. Aos poucos o paraíso começava a se tornar uma prisão de ostracismo. Ambos cada vez mais preferiam andar cada um sozinho e pensar por si, ao existir como um único ser dividido em dois.
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E durante esses passeios Eva descobriu uma bela árvore com um único fruto vermelho, rubro como sangue, guardada por uma criatura igualmente única. Uma serpente de escamas negras reluzentes e asas de couro, o ser mais encantador que Eva tinha conhecido até então. A víbora sibilante falou a Eva sobre segredos desconhecidos, sem revelar nenhum. Subitamente uma fome que a mulher nunca antes havia sentido desabrochou no interior de seu corpo, fazendo-a arder em febre e desejo. Contudo para saborear daquele fruto e conhecer seus segredos era preciso pagar o preço daquele monstro. Confusa, Eva fugiu.
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Enquanto Eva lutava contra sua curiosidade, Adão taciturno olhava para o horizonte, desgostoso. Uma tempestade desabava como a que tomava o céu quando ele nascera, todavia não fora Eva que os relâmpagos revelaram caminhando pela relva, se aproximando rápida. Os movimentos daquela mulher não eram submissos, eram felinos, selvagens. A cada nova explosão de luz ela se aproximava mais e ele a via, orgulhosa e sensual. Temeroso e atraído por aquela fêmea desafiadora, Adão saiu em disparada, temendo o que seria dele caso ela o alcançasse.
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Por algum tempo eles evitaram o que se revolvia em suas mentes e quanto mais tentavam esconder seus desejos, mais evidentes eles se revelavam. Até finalmente a situação se tornar insuportável e um sem consultar o outro partir para pela primeira vez agir obedecendo somente aos próprios anseios.
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Eva correu até a árvore e ao invés da serpente alada de outrora, ela encontrou a vigiar o fruto, um homem com asas negras, belo e terrível, poderoso, sedutor e malicioso. Ele apresentou-se como Samael e determinou que aquela era a hora de se livrar das correntes.
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Adão mal podia se conter, tomado de loucura ele dirigiu-se ao local onde antes a mulher surgira. Novamente ela apareceu, ainda mais bela, com garras e dentes afiados e olhos bestiais. Seu nome era Lilith assim ela dizia e em um bote ela derrubou Adão.
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Eva ajoelhou-se e experimentou o gosto do pecado em sua boca, o beijo sujo da morte que a fez sentir viva pela primeira vez. As mãos, dedos, língua de Samael queimavam e faziam Eva esquecer-se de tudo e desejar apenas ser usada por ele, se deixar levar pelo mistério. Eva afogava seus gemidos cravando os dentes no fruto proibido, vermelho e macio; Samael cravava os dentes em sua carne rósea e perfumada, batendo as asas conforme a violava impiedosamente.
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Adão abatido assistia excitado Lilith cavalgá-lo, movimentando freneticamente os quadris para frente e para trás. Enquanto fazia isso, Lilith rasgava o peito de Adão com as garras e mordia sua boca com tamanha voracidade que chegava a arrancar sangue.
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A tempestade crescia e rugia, o paraíso tremia em condenação enquanto homem e mulher entregavam-se a dêmonios. Eva a ser currada pelo anjo caído Samael, o mais próximo da Luz e o grande rebelde que dividiu as falanges celestiais.
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E Adão a ser vencido por sua primeira mulher, feita do mesmo modo que ele, que se negara a ser sua serva e a obeder a Deus, unindo-se a Samael.
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Embora Adão não se lembrasse de Lilith, para ela, a vitória em humilhá-lo na cópula quase recompensava o asco de deixar-se invadir por tão fraco e prepotente ser. Samael tentava engolir seu desprezo por Eva enquanto a fazia um filho, o primeiro assassino do mundo. Samael e Lilith juraram profanar o trabalho de Deus e pagariam qualquer preço para derrotar seu inimigo.
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Javé pode ter nos amado, mas quem deitou-se conosco foram os demônios.
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3 comentários:

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Essa versão me causa sensações que pairam entre choque e excitação...
Maravilhosa a sua forma de contar isso...
Seria interessante uma versão sua do suposto envolvimento de Jesus com Madalena...

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Sempre encarei mesmo o lance da serpente e da maçã como uma metáfora ao coito (e não à vergonha)... E a serpente é, definitivamente, um símbolo fálico.

E agora José? disse...

Sim, além da imaginação, a minha base foram os ensinamentos judaicos, de onde tirei Lilith e Samael.
E realmente, seria interessante contar a história de Jesus e Madalena. Vou pensar com carinho, prometo.

Fico feliz que você tenha gostado, muito mesmo. O pecado original é bem mais original do que se pode imaginar.