terça-feira, 1 de julho de 2014

EMANCIPAÇÃO

EMANCIPAÇÃO



O sol se escondia no horizonte trazendo uma noite fria em 1901 quando a carta enviada pelo chefe de polícia de São Paulo chegou às mãos do delegado do município de Itararé. Ao receber a correspondência do mensageiro o delegado estava trancando a porta de seu gabinete e ao ler o nome do remetente soube imediatamente que aquilo não eram boas novas. Afinal se tratava de nada menos que Pedro Antônio de Oliveira Ribeiro - o chefe de polícia de São Paulo - figura famosa do alto escalão do governo. Reacendendo o lampião novamente em sua sala o delegado confirmou que o conteúdo tratava de um assunto realmente complicado: o Cônsul da França pedia através do chefe de polícia informações com urgência do paradeiro de Lucien e Marie Foiz, um casal de argelinos que se suspeitava desde 1893 estivessem locados na região. Notícia peculiar e suspeita que arrancou um suspiro de desconsolo do representante da lei, ele teria uma longa noite.

Uma carta de São Paulo do Senhor Pedro Antônio já era ruim, um pedido urgente do Cônsul francês então era com certeza algo que não podia ser ignorado. Uma notícia daquelas precisava ser dada o quanto antes ao intragável Intendente Belarmino Pinheiro de Carvalho e lá se foi o delegado bater em sua porta.

Belarmino adorava o poder e o prestígio de sua posição, mas odiava as responsabilidades de seu cargo - equivalente a prefeito na época. O comerciante rude fora colocado pela aristocracia no poder para trazer para perto da elite os pequenos burgueses em um falso gesto de união e respeito a eles. Belarmino era uma marionete que adorava receber o seu salário e gastá-lo nos botequins, mas detestava ter de se apresentar ao Paço para assinar decretos que sequer lia.

Ao ouvir as novidades ordenou que o delegado averiguasse o caso na mesma hora temendo que qualquer demora em atender o pedido pudesse irritar os políticos da capital e manchasse o nome de seus mestres. Fazer o delegado revirar a cidade noite adentro para encontrar aqueles estrangeiros não era nada se comparado com a garantia de uma boa relação com os poderosos.

O delegado concordou com a cabeça e partiu rumo a igreja, qualquer coisa era melhor do que ouvir aquele desgraçado. E além do mais ele sabia que se aquela cidade que era um ninho de serpentes tinha algo a esconder, mais cedo ou mais tarde eles chegariam aos ouvidos do padre.

O pároco era de idade e não ouvia muito bem, principalmente quando não era de seu interesse, porém depois de o delegado quase pôr a porta da sacristia abaixo ele o recebeu. Se fingindo de senil o velho ao ser indagado evitava comentar sobre o assunto até que a menção sobre os rumores que tanto circulavam às más línguas do velho cristão levando muito à sério a frase “Vinde a mim as criancinhas” o fez mudar de atitude. Ele se fez de rogado e relembrou a sua influência junto às quatro famílias fundadoras da cidade e ameaçou dizendo que eles não admitiriam qualquer injúria contra ele, pois eram “católicos exemplares que não deixariam impune qualquer calúnia contra um homem de Deus”.

Ao menos o velho mostrara as garras pensou o delegado, então tratou de esclarecer que só queria fazer seu trabalho e que se o padre tivesse algo a dizer que o fizesse de uma vez para que ambos pudessem seguir suas vidas.

Sorrindo maliciosamente o velho se aproximou do ouvido do delegado e em um tom confessional sussurrou:

“...eu nunca pergunto a um homem qual é o seu negócio, o que eu pergunto são os seus pensamentos e sonhos. E Lucien sonha coisas que nenhum homem deveria sonhar, sonhos que só monstros e deuses são capazes. Ele e sua mulher acreditam que podem tornar o sonho deles realidade aqui.”


E continuou: “Eles eram simples, mas muito instruídos. Viajaram incógnitos pelo Atlântico junto dos ciganos infiéis que os esconderam mediante pagamento. Lucien procurava o lugar onde o rio escavara a pedra que os franceses Debret e Saint-Hilaire mencionaram em correspondências entre si quase um século antes.”

Aquela história toda de estrangeiros procurando a gruta do Rio Itararé e mistério o incomodava, sua intuição lhe alertava que alguma coisa estava muito errada naquilo tudo, que seria melhor ele se afastar. E este pensamento perturbador o instigava a saber mais, o medo alimentava a sua curiosidade. Mais do que a superstição de um velho sacerdote, ele sentia que realmente estava prestes a desvendar verdades terríveis e ele faria o que fosse preciso para espiar os segredos obscuros daqueles forasteiros.

O delegado era um homem parrudo e corajoso, combatente formidável da Guerra Civil da Revolução Federalista “da degola” onde dez mil homens tombaram na tentativa sulista de dar um golpe por não aprovar o presidente Floriano Peixoto. As memórias dos combates selvagens nos rincões do Paraná chacinando os inimigos sem qualquer misericórdia atormentavam seus sonhos, os feitos cruéis que renderam-lhe seu atual posto surgiam em sua mente cada vez que fechava os olhos. Ele não temia o combate, entretanto o que não podia ser enfrentado com os punhos, adaga e pólvora começava a devorar-lhe por dentro.

A noite escureceu ainda mais enquanto o delegado cavalgava estrada a fora rumo ao Paraná. Ao ganhar as trilhas abandonou o cavalo por não poder enxergar direito o terreno irregular e temer que o animal pudesse quebrar uma perna e prosseguiu empunhando o seu lampião. Ele caminhou no ermo até que começou a ouvir o barulho das águas turbulentas contra as muralhas de pedra. Até que enfim chegou descendo um pouco as pedras com cuidado para não escorregar, sozinho, à entrada da gruta.

 O som das águas ecoava na caverna aumentando a sua força, o delegado mesmo conhecendo a gruta sentiu que encarava a entrada do inferno. O ar era gélido, úmido e trazia em si o cheiro dos segredos da terra. Desceu até o interior tateando com cuidado e segurando o lampião até que chegou no coração do Rio Itararé.

Era como pisar em um templo esquecido, uma aura de grandiosidade e pavor emanava de todos os cantos, mas o mais aterrorizante era uma grande mancha no chão que se assemelhava demasiadamente a sangue seco.

O delegado se aproximou e se ajoelhou para verificar de perto e quando tocou a mancha algo além dos limites de sua compreensão aconteceu.

Ele testemunhou o que se passara ali na gruta oito anos antes, em 1893, quando Lucien com uma faca estripou a sua esposa que o acompanha grávida para retirar a criança de seu ventre. O sofrimento de ter seu filho arrancado de suas entranhas a fazia gritar e a caverna multiplicava o seu desespero ao infinito amplificando a sua dor até alcançar as estrelas. No entanto quando finalmente a criança chorou ela sorriu e se alegrou, não pela vida que concebera, mas por poder continuar com o plano doente de seu marido.

Lucien sem ao menos limpar o sangue sobre a sua filha a enrolou em trapos com símbolos mágicos e entoando cânticos profanos ofereceu aos “deuses que dormem” aquela alma prometendo que a partir daquele sacrifício a gruta se tornaria um lugar de adoração e que mesmo sem entender a mensagem, quem pisasse naquele solo sentiria o poder que irradiava da estrelas. Então ele encheu o pano no qual enrolara a criança de pedras para quando atirasse o recém-nascido dentro das águas ela não corresse o risco de não afundar. Chorando alto ele arremessou a menina que desapareceu nas profundezas do rio. Segundos depois surgiram boiando dezenas de peixes mortos, um sinal de que a oferenda fora aceita.

Lucien abraçou sua mulher e alegres, rindo e chorando permaneceram juntos até ela morrer.

Já era dia quando o delegado recobrou a consciência e para sua desgraça aquele sonho alucinado ainda estava gravado em sua mente, porém desconexo, uma cicatriz em sua alma que jamais se curaria. A mancha de sangue havia desaparecido, os pássaros saudavam o sol e tudo parecia ter sido apenas um pesadelo. Entretanto o delegado sabia, no fundo, que aquilo acontecera e não teria como provar nada.

O Intendente o chamou de incompetente e ameaçou tirá-lo do cargo por não conseguir nenhuma pista do paradeiro dos estrangeiros, mas depois do ataque de raiva, voltou atrás. Óbvio que o delegado não disse uma palavra sobre o que a revelação que tivera e mesmo com a chance de manter o seu cargo desistiu de seu posto e partiu da cidade, era impossível para ele continuar a conviver tão perto da insanidade que ele começava a recordar.

Ele precisava de respostas para as questões que rondavam sua cabeça como moscas atraídas pelas memórias podres que ele guardava gravadas a ferro e fogo em seu cérebro. Por que eles fizeram aquilo com a própria filha? Como um homem e uma mulher poderiam fazer aquilo com uma criança? Que credo doente e monstruoso obrigaria seus seguidores a cometerem tamanha atrocidade?

De noite, na estrada, o perturbado delegado se deparou com uma caravana de ciganos e para seu azar seus desejos foram enfim atendidos. Lucien estava com eles e lhe revelou a verdade do Universo.


O delegado morreu em uma casa para doentes mentais gritando para quem quisesse ouvir que os Deuses Antigos estavam despertando e que Itararé era a porta para o inferno por onde eles voltariam para destruir o mundo. Enterrado como indigente seu nome foi apagado da história e seus avisos nunca foram levados a sério. 

Nenhum comentário: