sábado, 13 de janeiro de 2018

"A SEMENTE" - Prelúdio


A SEMENTE
Prelúdio

Ninguém sabe ao certo quando o homem branco descobriu a passagem mais acessível entre os paredões de granito do Rio Itararé que corroeu seu leito transformando seu caminho em um abismo. Os bandeirantes podem ter chegado perto ao explorarem o interior de São Paulo, contudo os indígenas selvagens hostis aos grilhões e à cruz podem ter conseguido em uma primeira tentativa impedir que a semente da civilização fosse plantada naquelas matas virgens. Para muitos esta reação violenta dos guaianazes poderia ser um sinal de defesa de domínio territorial, de preservação de seu espaço, contudo, prova-se através de suas lendas que não fora isso que os motivara. Eles consideravam aquela região amaldiçoada e se comportavam como guardiões do local como sentinelas impedindo que a paz fosse perturbada e o mal despertasse e estavam dispostos a morrer por isso.

Quando os tropeiros chegaram no século XVII criando o Caminho do Viamão a situação era outra. A presença indígena já tinha sido subjugada e a passagem por cima do Itararé já era utilizada ou ao menos de conhecimento dos exploradores que rumavam para Sorocaba. Dificultosa, não raro a travessia cobrava vidas e carga, mas não havia outra forma de transpor o desafio natural. Os primeiros registros de passagem de tropeiros contam a má impressão dos mesmos sobre a “Barreira” por sua sensação de opressão e mal-estar como um ambiente devastador e deprimente. Os jesuítas tentaram mudar esta concepção ao celebrar missas ali, porém a influência da bruxa Uariri que vivia na gruta do rio era mais antiga e mais forte que o deus cristão vindo do além-mar.

A terra das três sesmarias doada em 1725 para povoamento embora fértil traz o sangue do povo que ali viveu por eras cultuando entidades sobrenaturais obscuras e resquícios desta adoração pagã ainda sobrevive em pinturas rupestres em paredões e cavernas e demais lendas de cidades próximas. Toda essa riqueza cultural teve um impacto mesmo que indireto na criação de uma consciência coletiva da população que cresceu descrente de esperança e fadada à aniquilação. Tal profecia quase se concretizou em 1930 e os sobreviventes que ficaram conhecidos como covardes e entraram na história ridicularizados só esperam a sorte mudar e o destino finalmente se cumprir.

Os artistas da cidade são comumente afetados por serem mais sensíveis por essa névoa invisível e sofrem de sonhos febris e visões perturbadoras, pesadelos vívidos e alucinações. Suicídios são comuns na cidade e os que possuem uma chance fogem sem olhar para trás deste ninho envenenado. Entretanto como conta a lenda da “água da Barreira”: “aquele que provar das águas naturais da mina da gruta da Barreira está fadado a retornar”. Então a cidade coleciona aprisionados sem oportunidade de fugir e frustrados que fracassaram na sua tentativa de escapar - O Mito da Caverna de Platão.

A semente de um presságio de mau agouro acompanha cada criança nascida e mesmo em sua inocência o brilho dos seus olhos é embaçado pela sombra das andorinhas que sobrevoam a cidade e ao anoitecer retornam para a gruta em uma queda perigosa para se esconder nas paredes úmidas.

Há quem lembre dos tempos perdidos da cidade como tesouros que jamais serão novamente desfrutados. Há quem cante o paraíso perdido que é esta terra e a saudade por estar longe. Há quem pinte a Via-Crúcis da vivência de envelhecer em Itararé. Mas ainda é preciso escrever sobre as sombras que pairam, sobre as pedras, os paralelepípedos cortados um a um por escravos que frequentemente são cogitados de serem cobertos por asfalto na rua principal. Mas é impossível apagar os espectros do passado: os indígenas massacrados e arrancados de suas terras para dar espaço para um novo país. Os tropeiros com cargas e escravos desfilando pela São Pedro. Os posseiros, os grileiros, os coroneis. Os estrangeiros e pobres que construíram os trilhos do Ramal da Fome. O ditador que foi recebido de braços abertos. Da população que cresce lentamente em número, mas não em oportunidade ou qualidade de vida. Dos loucos que perambulam pelas ruas sendo atazanados por crianças que lhes xingam e eles então os perseguem raivosos. Da pequenez de se estar longe demais das capitais e perto demais do abismo.

Parafraseando Nietzsche: “quando se olha tempo demais para um abismo, o abismo olha de volta para você” - esta é a realidade de todo itarareense. Nós carregamos o abismo na alma, um vazio, um vórtex, um buraco negro que engole a tudo e nos devolve apenas mais vazio. A fome que devora e apenas aumenta.

E é nesse poço espiritual que quero gritar a história que cresce e toma meu cérebro para ouvir o que o eco irá responder. Talvez eu possa ouvir assim os Grandes Antigos...


5 comentários:

falfph disse...

Sensacional meu querido.....bela dinâmica.... ótimo texto... Nascimento de um escritor....

Anônimo disse...

Genial!

Unknown disse...

Adooorei! Ótimo conto!!

Unknown disse...

Adooorei! Ótimo conto!!

Andréa Ferraz disse...

Arrepiou até a alma!! Fantástico texto!!