sexta-feira, 28 de junho de 2024

ALEXANDRINA - A Grande - PARTE IV

Alexandrina era perspicaz e apesar do desafio de ser uma estrangeira em uma terra estranha aprendeu a ler e a escrever em português sozinha e aprendeu também as orações em nosso idioma para cumprir a promessa de rezar o terço feita para sua mãe. Ela encaminhou os onze filhos na sua fé que fora o seu único abrigo contínuo que encontrou nos árduos anos em que viveu. Seu livro de catecismo escrito em russo é uma das relíquias que o tempo ainda não devorou por completo. A religião pode tanto conectar as pessoas quanto servir de santuário quando elas falham e foi desta última maneira que Alexandrina encontrou abrigo em Cristo.

Isenta da ameaça da epidemia de sarampo blindada por sua fé Alexandrina estava só com os marinheiros no convés. A única passageira virara uma espécie de amuleto da sorte aos olhos dos marinheiros que ela conquistara com sorriso, agulha e linha. Ela se divertia como podia, com os rolos de corda, os transformando com a magia da imaginação em castelos sitiados, lar de princesas, serpentes hipnotizantes, covis de dragões... As lendas e contos foram o que a salvaram da solidão. A imaginação é a ferramenta das crianças, dos loucos e dos poetas para sobreviver à realidade.

O som dos volumes enrolados em lençóis sujos com manchas rubras e que fediam a comida estragada sendo atirados ao mar pelos marinheiros com luvas e lenços sobre o rosto se tornaram cada vez mais comuns. Cordas asseguravam que os corpos ficassem contidos em seus casulos e pedras garantiam o sepultamento no fundo do mar. Os homens não sabiam como lidar com a presença da pequena que os observava com semblante curioso e pensativo enquanto eles cumpriam a tarefa nefasta de dar cabo dos mortos e constrangidos não ousavam lhe dirigir o olhar. Mais ainda Alexandrina rezou naqueles dias e suas preces foram as únicas palavras de despedida das vítimas que em silêncio eram atiradas por mãos rudes.

A menina Alexandrina chegou ao seu limite e contrariando as ordens da mãe correu para as grades do portão do porão para chamar a mãe. Edwiga ninava a irmã de Alexandrina no colo. Ela estava tão pálida, dormia profundamente a ponto de não se mexer. A mulher com um olhar triste sorriu para a filha a salvo. E com uma voz trêmula Edwiga repetiu o pedido para a filha não se aproximar mais do portão deixando a criança falando sozinha desaparecendo nas trevas. Repelir a filha cortava o seu coração, todavia se isso garantiria a sobrevivência de ao menos uma das meninas ela faria o que fosse preciso para que Alexandrina fosse poupada da desgraça que se abatia sobre eles.

Por todo o resto do interminável dia e a noite Alexandrina passou chateada, chorosa, aborrecida. Corvos voavam em volta de sua cabecinha torturando sua mente com coisas que não deveriam lhe dizer respeito. A morte mesmo sem ser totalmente compreendida cavava espaço entre seus pensamentos e plantava dúvida e medos desconhecidos. Ela sentia que algo muito ruim acontecera, porém não tinha naquela idade meios para entender e aceitar a terrível verdade.

 

quinta-feira, 27 de junho de 2024

ALEXANDRINA - A Grande - Parte III


Para se entreter Alexandrina tricotava conforme aprendera com sua mãe e auxiliava remendando as roupas dos passageiros e tripulação sendo paga por seus serviços com presentes como grampos de cabelo e outras quinquilharias que para aquela menina valiam mais que ouro. Os marinheiros ao verem o deslumbramento da menina diante de uma maçã, algo que ela nunca havia visto antes quem dirá provado, lhe deram como forma de pagamento uma destas frutas que ela ficou admirando por sua cor viva segurando-a em suas mãos uma infinitude de tempo antes de finalmente lhe cravar os dentes e provar o seu gosto. Suas primeiras recompensas e descobertas faziam-na sonhar com as possibilidades que a nova terra lhe prometia onde ela poderia enfim crescer, viver e conquistar o que quisesse.

O talento para a costura tornou-se sua profissão herdada por pelo menos uma de suas filhas. Na velhice Alexandrina fazia pequenos tapetes com sacos plásticos de leite que ela vendia e dava de presente para os familiares. A sua imaginação e habilidade com as mãos nunca a deixaram ser ociosa. E enquanto suas mãos empunhavam com maestria as agulhas ostentava um simpático sorriso no rosto.

Acostumando-se com a morosidade da viagem tudo estava indo relativamente bem para Alexandrina quando algo perturbou a frágil calmaria da viagem. Empilhadas no navio as pessoas eram forçadas a conviver muito próximas umas das outras com praticamente nenhuma privacidade. Esta situação forçada criava laços de fraternidade entre estranhos que eram obrigados a compartilhar o parco espaço, contudo a falta de isolamento os expunha a ameaças invisíveis que eles sequer suspeitavam. A condição de viagem não era das mais salubres e doenças eram comuns onde o lucro, não o conforto, era prioridade. Um mal repentino surgiu e rapidamente se alastrou. Febre, tosse, feridas, sangue.

 Em uma semana veio a primeira morte. Não havia como saber quantos passageiros haviam sido contaminados. O número de mortos começou a crescer. Os velhos, os doentes e as crianças eram as principais vítimas. Os marinheiros que se mantinham saudáveis por não confraternizarem com os passageiros tendo seu dormitório separado seguiram a contragosto a ordem do capitão de trancafiar todos os passageiros em quarentena nos porões. O líder do navio sabia que nenhum porto os aceitaria se soubessem que as pessoas a bordo carregavam o signo da morte e segundo seu aprendizado era preciso esperar a maldição expurgar quem tivesse que morrer para que os sobreviventes pudessem chegar ao fim da viagem.

Alexandrina não entendeu a razão de toda a sua família ter que ficar no frio, escuro e feio porão do navio. Os gritos de dor, os pedidos de socorro, o suplício de adultos e crianças, sepultados nas entranhas da nau ecoavam abaixo de maneira sinistra como uma sinfonia dantesca. Sua mãe antes de ser escoltada com o resto dos passageiros para a masmorra entregou para a filha um terço rogando a ela para que rezasse enquanto estivesse sozinha pela salvação de todos e a menina por toda a vida cumpriu esta promessa à mãe, Edwiga, rezando diariamente durante toda a sua vida.

domingo, 23 de junho de 2024

ALEXANDRINA - A Grande - Parte II

 


A viagem transcontinental ocorrera durante meses. Os dias se passavam lentos, minutos se transformavam em horas e dias em séculos. Logo a sensação da jovem era estar vivendo uma eternidade presa em uma dimensão paralela feita de ar e água e esta impressão se estabeleceu em seu estado de espírito. Sentia-se como na Arca de Noé imaginando que o mundo todo havia sido engolido pelas águas e que talvez, desta vez, não tivesse sobrado mais nenhuma terra e eles ficariam ali presos até morrer. Apenas com o céu cinzento sobre sua cabeça e o mar escuro ao seu redor a imaginação da menina influenciada pela criação profundamente cristã voava solta e alcançava lugares sombrios. E provou-se de certo modo assustadoramente profética; um dom tão inexplicável quanto o que sua mãe também manifestaria logo mais.

Embora não houvesse de fato um dilúvio este seria o século mais atroz da humanidade e ninguém poderia prever ou sonhar com os horrores que ele geraria. As guerras em proporções globais, o holocausto em escala industrial, as armas de destruição em massa que ameaçam a vida como conhecemos são alguns dos maiores exemplos dos pesadelos hediondos que estes últimos cem anos trouxeram. Somente o ideal de lutar pelo bem comum do ser humano garantiu que no momento mais sombrio não sucumbíssemos ao ódio e assim graças à luta em comum dos trabalhadores o nazismo foi derrotado tornando a menina e o seu povo heróis não reconhecidos da humanidade. Ironicamente seria com este epíteto - heroína da humanidade - que ela seria batizada ao chegar ao Brasil. Mesmo considerada uma traidora da nação por sua pátria-mãe por fugir e vista apenas como mais uma imigrante desesperada que seria explorada à exaustão por aqueles que a aguardavam ao desembarcar, ela venceria tudo e cravaria suas raízes fundo na nossa terra até enfim nela ser enterrada.

Nos registros brasileiros todos esses imigrantes do leste europeu foram catalogados apenas como “eslavos”. Um nome que resumia tudo o que o Brasil não conhecia e tão pouco fazia questão. Apagar as nacionalidades dos imigrantes ao rotulá-los da mesma forma facilitava segundo a lógica irracional da época o processo de imigração ao forçar os imigrantes a abandonarem seu passado para abraçarem a sua nova vida, como se fosse preciso forçar alguém que renunciou a tudo para se integrar a um novo lugar.

Então não apenas destituímos os imigrantes de suas identidades como também os recriamos à nossa imagem e semelhança ao reescrevermos seus nomes e sobrenomes com a justificativa que seria mais fácil para os brasileiros pronunciarem os termos estrangeiros. A recém república que nunca superou a colonização realizava o sonho doentio de deixar de ser oprimido para se tornar o opressor alimentando o ciclo vicioso de violência.

Por isso a nossa protagonista recebeu o nome de “Alexandrina” (nome de origem grega que significa “defensora da humanidade”). Nunca saberemos seu nome verdadeiro. Só podemos cogitar qual seria, pois, ao rebatizá-la lhe comunicaram que o novo nome se parecia o suficiente com o original e seria melhor para ela agora que era brasileira.

Apesar de todas as tentativas de apagar um povo a coragem prevalece. Alexandrina escondeu dentro de si seus tesouros de além-mar onde ninguém poderia saquear seu legado. E é graças à sua força de vontade e tenacidade de espírito que estou aqui para registrar esta história singularmente épica.


quarta-feira, 19 de junho de 2024

ALEXANDRINA - A Grande - Parte I

 

A inocente menina de pele clara e bochechas rosadas nunca mais esqueceria a primeira vez que os seus olhos azuis viram o leviatã de ferro e vapor que se agigantava à sua frente. A besta mecânica colossal movida a carvão em brasa que expelia colunas incessantes de fumaça galgando as alturas celestiais parecia para ela, uma simples camponesa, uma visão vinda dos sonhos. Então ela soube através de sua mãe que aquilo era o que iria levá-la para a sua nova casa no outro lado do mundo.

Sentiu-se nervosa. Parcialmente curiosa pelo futuro que se apresentava e maravilhada pelas possibilidades que o mundo reservava, mas também ao mesmo tempo triste pois mesmo com poucos anos ela já era capaz de entender que havia ali também uma despedida implícita que determinaria sua vida para sempre; ela jamais retornaria à sua terra natal.

Sua humilde casa de dois andares onde vivera até então os seus dez anos permaneceria apenas em suas lembranças. E tais memórias ficaram marcadas profundamente em sua mente como quando no inverno sua família compartilhava a casa com os animais que dormiam no chão enquanto eles se deitavam no andar superior e desta forma com o calor das bestas o interior do lar se mantinha aquecido permitindo que eles pudessem resistir ao frio implacável. O lar de sua infância seria deixado para trás ao pisar a bordo do navio de imigrantes. Como Jonas ela fora engolida por aquela baleia de aço e o seu derradeiro destino se iniciaria quando enfim desembarcasse.

Os pais da garota, sua irmã pequena, a avó materna e os avós e tios paternos sonhavam com uma terra menos árdua, gélida e hostil. Toda sua família estava cansada de lutar pela sobrevivência e compreensivelmente desejava uma vida melhor. O novo século trazia em si o augúrio de profundas mudanças que se formavam como uma tempestade por sobre o mundo. A menina e sua família só queriam se abrigar antes da tormenta chegar.

E um pouco antes da dinastia dos czares encontrar o seu fim chegou até eles o rumor de um convite a um paraíso onde bastava plantar para colher em abundância e o verão era eterno. Se tratava de um país do outro lado do mundo que eles nunca haviam ouvido falar. Esta terra encantada estava de braços abertos convidando os trabalhadores europeus para construírem seus lares em seu regaço. Cheios de esperança eles ganharam o mar arriscando tudo por tal promessa sem saber o preço que este sonho iria custar.

Este embuste brasileiro atraiu milhares de imigrantes para trabalharem nos campos ocupando o lugar da mão de obra barata que os fazendeiros desejavam para explorar na lavoura após o fim da abolição da escravatura. Os imigrantes também serviriam para serem triturados nas engrenagens dos tempos modernos que exigiam gente para se arriscar nos rincões selvagens e pavimentar as novas estradas e trilhos do futuro. Sem saber a menina e sua família fugiam do epicentro dos maiores conflitos da humanidade para cair na armadilha de uma nova república que ainda funcionava como uma colônia: sempre parasitando o povo em prol dos interesses dos ricos.